Este texto é a Parte 3 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Na Parte 1, discuti a ordem de grandeza do mercado de drogas no Brasil; na Parte 2, simulei como a legalização da maconha poderia mexer no caixa das facções.
Agora, a pergunta muda: se a maconha for regulada, o que o Estado faz com essa oportunidade? Aqui entro em cenários de política criminal e saúde pública, para além da lógica puramente repressiva.
6. Três caminhos de política criminal depois da legalização
Legalizar a maconha não é, por si só, uma política de segurança pública; é apenas mudar uma peça importante no tabuleiro. O impacto real sobre violência, facções e sistema prisional vai depender de qual política criminal vem na sequência: manter a inércia, focar na macrocriminalidade ou integrar segurança, saúde e finanças leva a resultados muito diferentes usando o mesmo ponto de partida.
Foram construídos três cenários muito simples de política criminal, resumidos na Tabela 6:
- Cenário 1 – Inércia reativa
- A lei muda, mas a prática não.
- Continua-se gastando muita energia em varejo e “peixe pequeno”, agora menos com maconha e mais com cocaína e crack.
- Resultado: o P&L cai 26% porque a maconha foi regulada, mas não cai muito além disso. Violência e encarceramento seguem altos.
- Cenário 2 – Foco em drogas pesadas e macrocriminalidade
- Aproveita-se o “alívio” de recursos na maconha para redirecionar os esforços para:
- rotas de cocaína;
- laboratórios e depósitos de crack;
- e, principalmente, lavagem de dinheiro.
- A lógica deixa de ser “quantos presos” e passa a ser “quanto de prejuízo financeiro para as facções”.
- Nesse cenário, é razoável imaginar o P&L de drogas caindo perto de 40%, com cocaína e crack perdendo espaço através da ação, principalmente, da Polícia Federal e polícias estaduais.
- Aproveita-se o “alívio” de recursos na maconha para redirecionar os esforços para:
- Cenário 3 – Estratégia integrada Segurança + Saúde + Finanças
- Mantém o foco duro do Cenário 2,
- mas inclui dois braços a mais:
- saúde, usando parte da arrecadação da maconha para tratar dependência, reduzir danos e cuidar de saúde mental em territórios vulneráveis;
- sistema financeiro, com COAF, Receita Federal, Banco Central e órgãos reguladores atacando lavagem de dinheiro, empresas de fachada e instrumentos financeiros usados para esconder o dinheiro do crime.
- Aqui não é só cortar receita, é também mexer na demanda (menos gente presa no ciclo crack–prisão–rua) e no “colchão” financeiro das organizações.
Tabela 6 – Três linhas de política criminal pós-legalização (visão comparada)
(Toda esta tabela é análise qualitativa da IA, inspirada em literatura sobre macrocriminalidade e políticas de drogas.)
| Indicador | Cenário 1 – Inércia | Cenário 2 – Foco macro (drogas pesadas) | Cenário 3 – Integrado (Segurança + Saúde + Finanças) |
| Queda no P&L de drogas (base hoje) | ~26% (só maconha) | ~40% | ~40 – 45% |
| Queda no P&L com maconha | ~70% | ~70% | ~70% |
| Impacto em cocaína/crack | Pequeno | Alto | Alto |
| Redução de homicídios | Baixa | Média | Média/Alta |
| Redução de internações / danos sociais | Baixa | Baixa/Média | Alta |
| Redução da população prisional | Baixa | Média | Média/Alta |
| Ganho fiscal líquido | Médio | Médio/Alto | Alto |
| Complexidade de implementação | Baixa | Média | Alta |
Na prática, os três cenários mostram que legalizar maconha é condição necessária, mas não suficiente. Se a política criminal não se recalibra, troca-se um tipo de guerra por outro. Se ela se recalibra bem, abre-se uma janela rara para:
- tirar dinheiro do crime;
- aliviar pressão sobre comunidades e sistema prisional;
- e ainda financeiramente sustentar políticas de saúde e prevenção.
7. E a saúde? Não dá para varrer os riscos para debaixo do tapete
Qualquer conversa honesta sobre legalização precisa encarar o outro lado: quais são os riscos reais do consumo de maconha?
A Tabela 7 resume as principais evidências:
- Efeitos agudos: vão do relaxamento e da “larica” até crises de ansiedade, paranoia e prejuízo de reflexos. Dirigir ou operar máquina sob efeito é perigoso.
- Dependência: não é mito nem é igual a heroína. Algo como 1 em 10 usuários pode desenvolver dependência; o risco sobe se o uso começa cedo e é diário.
- Saúde mental: uso frequente, com produtos de alta potência em THC, aumenta o risco de quadros psicóticos, especialmente em pessoas com vulnerabilidade genética.
- Adolescentes: aqui o consenso é amplo. Cérebro em desenvolvimento mais uso regular é igual a mais problemas escolares, mais risco de dependência, mais chance de desfechos psiquiátricos adversos.
- Pulmão e coração: fumar implica exposição à fumaça (bronquite, irritação) e aumenta frequência cardíaca e pressão por um tempo – o que importa em quem já tem doença cardiovascular.
Tabela 7 – Efeitos do consumo de maconha (resumo)
| Dimensão | Evidência principal |
| Efeitos agudos | Relaxamento, alteração da percepção, aumento de apetite; mas também ansiedade, taquicardia, paranoia e piora de reflexos e coordenação. |
| Dependência | Cerca de 1 em 10 usuários desenvolve algum grau de dependência; risco maior (aproximadamente 1 em 6) se iniciar na adolescência e usar com frequência. |
| Saúde mental | Uso frequente (principalmente diário e com alta potência de THC) está associado a maior risco de psicose; relação dose–resposta documentada em meta-análises. |
| Ansiedade/depressão | Associação bidirecional: pessoas com sofrimento psíquico tendem a usar mais, e uso pesado pode piorar sintomas em parte dos casos. |
| Cognição | Prejuízos em atenção e memória de curto prazo; uso precoce e intenso pode associar-se a desempenho escolar pior e déficit cognitivo duradouro. |
| Pulmão | Fumar implica exposição a fumaça e produtos da combustão → risco de bronquite crônica e irritação de vias aéreas, similar em lógica ao tabaco. |
| Coração | Aumento transitório de frequência cardíaca e pressão; cautela em pessoas com cardiopatias. |
| Gravidez | Uso na gestação associado a possíveis efeitos adversos no desenvolvimento fetal e neurológico → recomendação geral é evitar. |
| Adolescentes | Consenso de maior risco: cérebro em desenvolvimento, maior risco de dependência e de desfechos psiquiátricos adversos. |
A Tabela 8 tenta traduzir isso em desenho regulatório:
- Se adolescentes são mais vulneráveis, então faz sentido ter idade mínima e proibir marketing direcionado a jovens.
- Se alta potência aumenta risco de psicose, então faz sentido limitar THC em produtos recreativos e exigir rotulagem clara.
- Se fumar faz mal para o pulmão, então faz sentido permitir formas não combustíveis (óleos, comestíveis), com regulação rígida de dose.
- Se gestantes e pessoas com histórico de psicose correm mais riscos, então faz sentido ter alertas específicos e protocolos de aconselhamento na rede de saúde.
Tabela 8 – Riscos e regulação (exemplos)
| Risco identificado | Medida regulatória coerente |
| Maior risco em adolescentes | Idade mínima (18 ou 21 anos), proibição de marketing para jovens. |
| Risco de psicose com uso pesado / alta potência | Limites de THC, rotulagem clara de concentração, avisos de risco. |
| Danos respiratórios ao fumar | Permitir produtos não combustíveis (óleos, vaporização regulada, comestíveis) e informar riscos de fumar. |
| Dependência e uso problemático | Destinar parte da arrecadação para prevenção e tratamento, triagem em atenção primária. |
| Risco para gestantes | Advertências específicas em rótulos e campanhas públicas direcionadas. |
Em outras palavras: legalizar não é liberar geral. É trocar um mercado sem regras por um mercado com regras que incorporam o que a ciência sabe sobre riscos e danos.
8. Fechando a conta
Se você juntar as peças:
- um mercado bilionário de drogas,
- um aparato repressivo que mira desproporcionalmente o elo mais fraco,
- operações letais como a do Rio,
- e um conjunto de evidências sobre riscos e possibilidades de regulação da maconha,
a pergunta deixa de ser “legalizar é certo ou errado?” e passa a ser:
Que combinação de regulação, política criminal e atenção à saúde minimiza os danos e o poder econômico do crime organizado?
As tabelas e figuras das três partes deste artigo não dão uma resposta definitiva (nem poderiam), mas ajudam a fazer uma coisa que o debate público brasileiro raramente faz: colocar números na conversa, explicitar premissas, separar o que é dado do que é cenário, o que é convicção do que é evidência.
Se a gente continuar respondendo com a mesma lógica que produziu a operação mais letal da história recente, é provável que vejamos outras grandes operações, outras dezenas de mortos, e o varejo do tráfico funcionando como se nada tivesse acontecido.
Se a gente conseguir tirar a discussão apenas do gatilho e trazê-la também para a planilha e para o SUS, talvez não resolvamos o problema das drogas – mas teremos, pelo menos, parado de repetir a mesma guerra com as mesmas vítimas de sempre.
O que é dado e o que é estimativa da IA:
- As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
- O resumo dos efeitos de saúde da maconha (Tabela 7) é baseado em revisões sistemáticas e meta-análises recentes sobre cannabis, psicose, dependência e outros desfechos de saúde, além de relatórios do UNODC.
- Todas as tabelas com rótulos “2025E”, “Brasil realista” e os cenários de política criminal (Tabelas 2, 3, 4, 5 e 6) são estimativas de IA, construídas a partir:
- dos números de 2015,
- da inflação (IPCA) acumulada,
- de tendências globais descritas no World Drug Report e em estudos sobre mercados legais de cannabis (Canadá, Califórnia etc.).
- Esses cenários não devem ser lidos como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza e efeitos relativos.
Fontes principais:
- Teixeira, Luciana da Silva (2016). Impacto econômico da legalização das drogas no Brasil. Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa. Repositório Câmara dos Deputados
- UNODC (2025). World Drug Report 2025. ONU – Escritório sobre Drogas e Crime_Relatório 2015
- UNODC (2020). In Focus – Cannabis Legalization. ONU – Escritório sobre Drogas e Crime_Cannabis
- Estatísticas oficiais do Canadá sobre cannabis (2018–2024). Health Canada / Statistics Canada. Canadá_Cannabis
- Relatórios sobre o mercado de cannabis na Califórnia. Department of Cannabis Control / “California Cannabis Market Outlook 2024”. California_Cannabis
- Meta-análises sobre cannabis e psicose/dependência. Marconi et al. 2016; Di Forti et al. 2009; Robinson et al. 2023; Petrilli et al. 2022; Li et al. 2025. Schizophrenia Bulletin_Cannabis Risk
- Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD (Análise Executiva da Questão de Drogas no Brasil). Serviços e Informações do Brasil






































