Arquivo do mês: setembro 2021

Coringa, Osho, Krishnamurti e…

Qual é a relação entre o enlouquecido personagem de ficção Coringa, o polêmico guru Osho e o filósofo indiano Krishnamurti? Este breve artigo fará alguns comentários sobre estes personagens e seus impactos nos indivíduos e na sociedade.

O filme Coringa (Joker em inglês) foi um dos mais instigantes que eu assisti nos últimos anos. Não me lembro de outro filme tão aberto para a interpretação dos espectadores. Afinal nós podemos decidir o que aconteceu e o que era alucinação do Coringa e de sua mãe. Aliás, toda a história pode ser alucinação ou fantasia do personagem principal.

O ponto do filme que eu gostaria de destacar é a forma como a população de Gotham City revoltou-se contra os poderosos da cidade, escolhendo Coringa como símbolo de seu descontentamento, inclusive usando máscaras de palhaço. Talvez a inspiração dos roteiristas tenha sido a máscara de Guy Fawkes, usado inicialmente pelo anarquista personagem principal e depois pela população de Londres em “V de Vingança”. Pessoas descontentes com sua própria vida normalmente canalizam suas frustrações para o exterior. Algumas vezes, existe um alvo fixo; em outras, há alvos difusos. Assim, Coringa transformou-se em um líder improvável seguido pelos descontentes.

Bhagwan Shree Rajneesh, mais conhecido atualmente como Osho, foi um guru cercado por polêmicas. O excelente documentário da Netflix “Wild Wild Country” ajuda a conhecer a história da mudança de seu centro de meditação de Pule, na Índia, para o estado americano do Oregon. Em um rancho no meio do nada, foi criada do zero uma cidade autossuficiente batizada como Rajneeshpuram. Alguns milhares de seguidores, chamados de sannyasins e rajneeshees, largaram tudo para participar da construção da cidade e, depois, trabalharam e viveram nesta comunidade. No documentário, vemos a xenofobia e o preconceito dos habitantes antigos da pequena cidade próxima contra as pessoas da nova comunidade. Por outro lado, a forma como a comunidade reagiu às ameaças dos locais foi absurda – tráfico de armas, criação de uma milícia armada, escutas ilegais, planejamento de assassinatos e bioterrorismo, através da contaminação da comida de restaurantes da cidade de The Dalles com a perigosa bactéria Salmonela.

Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho

Provavelmente apenas uma minoria dos membros de Rajneeshpuram tinha conhecimento do que foi apresentado no documentário da Netflix. Por outro lado, fica claro que Ma Anand Sheela, secretária e pessoa de confiança de Rajneesh, extrapolou em muito o aceitável e muitos membros da comunidade tornaram-se mais fiéis a ela do que ao próprio Rajneesh.

E agora eu chego a Jiddu Krishnamurti… Aos treze anos de idade, ele foi considerado pela Sociedade Teosófica como o “Instrutor do Mundo”. Dois anos depois, foi fundada a Ordem da Estrela do Oriente, com Krishnamurti como chefe, mas, aos 30 anos de idade, ele deixa esta posição. A partir daí, torna-se um filósofo e palestrante independente.

Jiddu Krishnamurti

Este parágrafo extraído do livro de Krishnamurti “A Primeira e Última Liberdade” ajuda a compreender sua escolha de não ser guru ou mestre e de evitar seguidores.

Mas esta é a última coisa que desejamos:  conhecer a nós mesmos. Ela é, no entanto, seguramente, a única base sobre a qual podemos criar. Mas antes de podermos construir, antes de podermos transformar, antes de podermos condenar ou destruir, precisamos conhecer aquilo que somos. Sair por aí procurando, mudando de instrutores, de gurus, praticando ioga, técnicas de respiração, realizando rituais, seguindo mestres, e todo o resto, é inteiramente inútil, não acham? Isso não tem nenhum sentido, mesmo que as próprias pessoas a quem seguimos digam: “Estudem a si mesmos” – porque o mundo é o que somos. Se somos mesquinhos, invejosos, superficiais, gananciosos – isso é o que criamos ao nosso redor, isso é a sociedade em que vivemos.

Para Krishnamurti, as diversões são formas de fugir da batalha que chamamos viver. Entre as diversões, além das óbvias, ele cita as religiões estabelecidas com seus líderes e sacerdotes. A palavra religião, neste artigo e em textos ou palestras de Krishnamurti, não tem o sentido de religação espiritual, o que é desejável e necessário, ela diz respeitos às religiões “oficiais”, como o Cristianismo (e todas suas vertentes), ao Judaísmo, ao Islamismo, ao Budismo, e demais. Deste modo, o tédio diário de uma existência superficial é aliviado, por exemplo, quando se segue um guru espiritual, mas também pode ser um guru de outras áreas como negócios, arte, esporte ou política. Seguir alguém traz segurança.

Na ficção de Gotham City, a falta de esperança era compensada, seguindo-se um palhaço. A violência preencheu o vazio. Não assistimos situações semelhantes no mundo real?

Os milhares de seguidores de Osho, ao invés de mudar primeiro a si e, consequentemente, ao mundo ao seu redor, preferiram criar seu próprio mundo e idolatrar cegamente seus líderes. Eram arrogantes, acreditavam que eram superiores aos demais, consideravam-se como os escolhidos. Esta presunção de superioridade acirrou o conflito e aumentou a distância em relação aos demais habitantes do estado do Oregon, nos Estados Unidos. Não assistimos outros grupos religiosos com as mesmas atitudes nos dias de hoje?

E assim também podemos entender outras distorções. O nacionalismo é outra diversão, assim como a religião, para preencher o vazio existencial das pessoas. O Estado é uma criação dos indivíduos e deveria estar a serviço dos indivíduos. Encare a frase “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” de outra forma, com sua real dimensão. Ela traz conforto e segurança para muitas pessoas e, deste modo, existe muita resistência para questioná-la e abandoná-la.

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Fragmentados – Somos Kevin Crumb

Quem assistiu ao Filme “Fragmentado” de M. Night Shyamalan ficou espantado com o número de personalidades diferentes do personagem principal, Kevin Wendell Crumb. O ator James McAvoy representou incrivelmente algumas das 24 personalidades de Crumb, desde o menino Hedwig de 9 anos, passando pela adolescente Jade, o designer de moda Barry e pelo violento Dennis até chegar à mortal Besta.

James McAvoy interpretou as diferentes personalidades de Kevin Wendell Crumb.

Talvez haja surpresa ou contrariedade com o que apresentarei a seguir, mas todos nós somos fragmentados. Somos pelo menos um fragmento com nossos pais (às vezes, um diferente para o pai e outro para a mãe). Somos pelo menos um fragmento diferente com nossos filhos (às vezes, um diferente para cada um). Somos um outro fragmento com nosso esposo ou nossa esposa. Somos pelo menos um fragmento no trabalho. Muitos agem de uma forma com o chefe; de outra, com os pares; e ainda de outra, com os subordinados. E assim por diante, somos fragmentos diferentes na escola, no futebol, com os amigos… E há aqueles que se parecem com a personalidade Besta de Kevin Crumb quando estão interagindo nas redes sociais da Internet.

Eu nem falei dos efeitos da autoridade e do poder que geram outros fragmentos nas pessoas.

Se concordarmos que em cada papel que exercemos temos comportamento diferente e agimos como se fôssemos outra pessoa, ficará mais fácil aceitar que consideramos nossa própria fragmentação como natural e necessária. Mesmo assim vivemos em conflito, não estamos satisfeitos com o trabalho, com as relações e assim por diante. Sentimos, muitas vezes, um tédio e um vazio interior preenchido com diversões e drogas lícitas ou ilícitas.

A aceitação do pensamento sobre a naturalidade e inevitabilidade da fragmentação da vida torna naturais outras formas de fragmentação no mundo como, por exemplo, nacionalidades, etnias, religiões, ideologias e classes sociais. Nestes casos, a fragmentação gera a divisão e distanciamento do “nós” e “outros”. Estes “outros” são muitas vezes desumanizados pelo “nós”. O resultado final é o ódio e sua contínua realimentação.

Como podemos desejar um mundo com paz e menos iniquidade, se nós mesmos vivemos em eterno conflito e admitimos a naturalidade da fragmentação em nós e no mundo?

Fica claro que, sem resolver o problema dos conflitos no indivíduo, não solucionaremos os conflitos no mundo.

Afinal quem nós realmente somos?

Felizmente temos mais controle sobre nossos fragmentos (papéis e personalidades) do que o personagem Kevin Crumb. O poema “If” de Rudyard Kipling nos passa a mensagem que ao nos comportarmos de modo digno e único, não importando a situação ou ambiente, seremos um ser humano integral.

If you can fill the unforgiving minute

With sixty seconds’ worth of distance run

Yours is the Earth and everything that’s in it,

And – which is more – you’ll be a Man, my son.

Precisamos estar atentos a nossa forma de pensar e agir para tornarmo-nos uma única pessoa ao invés de um grande mosaico de pequenos cacos zumbis. Só assim nos pacificaremos internamente e, externamente, levaremos esta paz e a justiça aos nossos lares e ao mundo.

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