Arquivo do mês: abril 2013

Amour – Os Limites Extremos do Amor, da Vida e da Morte

Há uns três meses, eu estava de noite em um restaurante de uma cidade do estado americano do Illinois. Após fazer o pedido da janta, dei uma passada no banheiro. Na volta, notei que uma mesa próxima do nosso grupo foi ocupada por um casal jovem, ele tinha uma longa barba negra e ela era ruiva com um corte de cabelo curto.

Quando o pedido deles chegou, a moça puxou o prato do rapaz para o seu lado e começou a cortar o carne que havia no prato. Pensei que eles fariam aquela prática comum entre casais de provar os dois pratos e ela seria a responsável pela divisão. Desviei minha atenção da mesa da frente e, quando dei uma nova espiada, achei estranho que ela estava picando a carne em pedaços pequenos, enquanto o rapaz olhava para o prato com aquele mesmo olhar de uma criança para um sorvete na expectativa de comê-lo. Somente neste momento, prestei mais atenção e percebi que ele não estava sentado numa cadeira normal do restaurante, estava numa cadeira de rodas motorizada, ele era tetraplégico.

Tetraplégico

Tetraplégico

Depois do jantar, a caminho do hotel, a imagem do rapaz não saía da minha cabeça. Tentei me imaginar no lugar dele, como eu reagiria numa situação destas? Totalmente dependente dos outros para atender as necessidades mais básicas, como ir ao banheiro, tomar banho, se alimentar ou se vestir… Como tudo que é desagradável, achamos melhor botar uma pedra em cima e fazemos uma racionalização simples:

– Por que criar um problema que não existe?

Ontem assisti ao filme francês “Amour”, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Se você busca um filme leve e romântico com final feliz, não assista a esta impactante obra cinematográfica. A densidade dramática deste filme pode ser comparada àquelas estrelas de nêutrons, cuja gravidade suga tudo ao seu redor, inclusive a luz.

No filme, são mostrados os dias finais da vida de um casal de professores de música aposentados, Georges e Anne, interpretados magistralmente por Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva. Assista ao trailer abaixo.

No início do filme, o casal tinha uma vida normal, morava num amplo apartamento em Paris e aparentemente ambos nutriam sentimento de amor e respeito mútuos. A situação começa a mudar, quando Anne sofre um “apagão” no momento em que tomavam café da manhã. Detecta-se uma obstrução na artéria carótida. Esta seria uma operação de baixo risco, mas ocorre uma complicação e Anne fica com um lado do corpo paralisado e, quando volta para casa, passa a usar cadeira de rodas. Neste momento, acontece uma cena que sela o destino dos protagonistas, Anne obriga Georges a prometer que não a internaria mais. A partir deste momento, ele tenta várias alternativas para tornar a vida do casal melhor, mas a saúde de Anne vai se deteriorando. Ela sofre outro derrame, não consegue mais se comunicar razoavelmente, passa a usar fralda geriátrica e conclui que não quer mais viver. Georges, por seu lado, suporta sozinho um fardo pesadíssimo em nome da lealdade por sua esposa e leva seu compromisso até as últimas consequências.

Cena do "apagão de Anne no filme Amour

Cena do “apagão” de Anne no filme Amour

O diretor Michael Haneke, após pouco mais de duas horas de filme, nos leva a pensar sobre a velhice e seus problemas, sobre os limites do amor, sobre o que esperamos dos nossos relacionamentos e o que aceitamos dar em troca, sobre a vida e a morte…

Neste momento, volto para minha pergunta-chave deste post:

– Como eu reagiria numa situação destas?

O caso do rapaz de Illinois parece mais fácil para mim hoje. Quando se é jovem e se tem toda a vida pela frente, um “acidente” de percurso como ficar tetraplégico, apesar de extremamente traumático pelas limitações impostas, pode se transformar na força motriz para encontrar novas vocações e propósitos para a vida. Como me considero um jovem de 47 anos, acredito que conseguiria ir em frente.

O caso de Georges, apesar da dor de ver a pessoa amada naquele estado, também diria que seguiria em frente. Acredito que meu amor pela Claudia me transformaria no seu serviçal fiel. Mas meu Amorzin, já te disse que tu vais ser uma viúva linda. Então não deverei passar por isto.

O caso da Anne me assusta! Não quero me tornar um fardo para as pessoas que eu amo. Seria muito cruel…

Apesar de muita gente não acreditar, temos poder para conduzir nossas vidas, mas ainda há uma parcela expressiva que não controlamos. Podemos ter uma vida saudável, fazer exercícios físicos regularmente, manter a mente ativa, mas a “maldita” genética pode nos fulminar na esquina. Se este avião no qual estou voando para Saskatoon, enquanto escrevo este post, cair provavelmente ninguém irá lê-lo, ficará eternamente inédito. No caso do filme “Amour”, Anne escolheu seu destino e Georges usou seu livre arbítrio para aceitá-lo, com todas as consequências para si. Ou seja, ao tomarmos uma decisão devemos analisar se não haverá desequilíbrios para um dos lados, porque não é justo submeter as pessoas a quem amamos a um ônus demasiadamente pesado e o contrário também vale, não podemos simplesmente nos anular por causa de quem amamos.

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Os Psicopatas, os Hiperativos, os Estranhos e os Normais

Na semana passada, no mural do Facebook do Nilson, companheiro de tantas jornadas importantes do nosso Inter no Beira-Rio, havia uma interessante palestra do jornalista e documentarista britânico Jon Ronson sobre psicopatia. Se quiser assisti-la, com legendas em português, basta clicar abaixo.

Com é difícil provar a normalidade! Parece que todos somos anormais, psicopatas ou, pelo menos, temos alguns transtornos de personalidade ou de comportamento. Por incrível que pareça, há mais de um século, nosso maior escritor, Machado de Assis, tratou deste assunto na grande obra “O Alienista” (leia o post sobre este conto ou novela).

No início do mês, li uma reportagem na Folha de São Paulo, originalmente publicada no New York Times, cuja manchete era “Nos Estados Unidos, 11% dos estudantes têm transtorno de deficit de atenção”. Fui atraído pela manchete, li a matéria e fui atrás da fonte (jornal americano) para obter mais informações. Abaixo você pode ver o gráfico com a distribuição deste distúrbio por faixa etária e sexo nos Estados Unidos.

Distribuição das crianças diagnosticadas comTDAH nos Estados Unidos. [Fonte: New York Times]

Distribuição das crianças diagnosticadas com TDAH nos Estados Unidos. [Fonte: New York Times]

O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH ou ADHD em inglês) caracteriza-se pela desatenção, dificuldade de manter o foco em uma atividade específica, hiperatividade e impulsividade. Esta síndrome pode causar problemas e dificuldades na escola, durante a infância e juventude, e nas atividades profissionais na idade adulta.

O primeiro questionamento que faço a respeito do aumento da ocorrência deste tipo de problema entre os estudantes americanos é a mudança do ambiente atual em comparação com algumas décadas atrás. Hoje existem muito mais estímulos para as crianças e jovens, temos TV a cabo, Internet, videogames, notebooks, celulares, iPods, iPhones, iPads… Por outro lado, as aulas mudaram pouco nos últimos quarenta anos, predominantemente são expositivas. Só houve evolução na tecnologia para apresentar as informações, do quadro negro e giz, passando pelas lâminas de retro-projetor, até chegar às apresentações preparadas em PowerPoint e projetadas através de um data show. A essência continua a mesma, o professor passa o conhecimento, enquanto os alunos deveriam absorvê-lo. A questão básica é como alguém que vive em um ambiente com alta interatividade se interessará por uma aula com este formato?

Não existe um teste laboratorial para medir o TDAH, como acontece, por exemplo, no caso de suspeita de anemia no qual um simples exame de sangue define a questão. O diagnóstico da TDAH é feito através de questionários aplicados ao paciente (ou seria impaciente) e aos que o cercam, pais, professores, irmãos, colegas… Ou seja, tudo é muito subjetivo, porque depende da percepção de cada um.

A Folha de São Paulo, ao resumir a reportagem do New York Times, omitiu uma parte muito importante da reportagem do New Yok Times – o uso de medicamentos e as ações de seus fabricantes. Hoje os pais têm se preocupado cada vez mais com o desempenho escolar dos filhos. Em um ambiente de alta competição, como o americano, a necessidade de ter um alto desempenho na escola para garantir uma vaga em uma universidade de ponta é fundamental para o sucesso na carreira. Percebendo este filão, os laboratórios de medicamentos iniciaram campanhas maciças para estimular os diagnósticos de TDAH e o uso de medicamentos para reduzir a hiperatividade e aumentar o foco das crianças e jovens. Cerca de dois terços dos que receberam diagnóstico positivo passaram a consumir estimulantes como Ritalina, Adderall, Concerta e Vyvanse. Para se ter uma ideia o faturamento com a venda destes remédios passou de US$ 4 bilhões em 2007 para US$ 9 bilhões em 2012.

A reportagem do NYT, por example,cita um panfleto da Shire fabricante do Vyvanse (dimesilato de lisdexanfetamina), vendido no Brasil com a marca Venvanse, que mostra uma mãe olhando para seu filho e dizendo:

– Eu quero fazer tudo que eu posso para ajudá-lo a ter sucesso.

Bela mensagem! Eu poderia escrever diferente:

– Sou uma boa mãe, me preocupo com meu filho e vou dar um estimulante, uma anfetamina, que podem causar vício, mas estarei ajudando-o a melhorar seu desempenho escolar e ter um futuro melhor.

Outro panfleto do Laboratório Shire sobre o Vyvanse

Outro panfleto do Laboratório Shire sobre o Vyvanse

Se você acha que esta é mais uma invenção restrita apenas ao território norte-americano, está enganado. Segundo site do Dr. Drauzio Varella, o Brasil é o segundo mercado do mundo da Ritalina (metilfenidato) produzido pela Novartis. Este remédio tem o apelido de “droga da obediência”, devido ao efeito zumbi que pode causar uma espécie de apatia ou letargia.

A discussão agora é ser mais severo no diagnóstico do TDAH,. Assim cada vez mais crianças, adolescentes e jovens serão tratadas com estas drogas. Meu maior receio é a padronização do comportamento das pessoas que passam a agir como robôs. Como disse Jon Ronson, no final da sua palestra, você não deve rotular as pessoas pelos seus limites mais loucos. O mundo não gosta de áreas cinzas, mas, nestas áreas, encontramos a complexidade, é onde a gente encontra a humanidade e é onde encontramos a verdade. Eu diria mais, encontramos a diversidade, talento, criatividade e a inovação.

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A Bruxinha Totute

Clara era uma menina que não tinha amigos. Sua família havia mudado de uma pequena cidade do interior para a capital do estado. Como Clara era muito tímida, não conversava com seus novos colegas na escola.

Todos os colegas da escola pegavam no pé dela, debochavam do jeito que ela falava. Quando fazia desenhos, todos falavam que os trabalhos eram feios. Quando cantava, todos tapavam os ouvidos e diziam que ela desafinava. Ninguém brincava com ela na hora do recreio.

Ela foi crescendo e a situação não mudava… Cada dia ficava mais triste com aquela solidão. Com o passar do tempo, começou a se revoltar. Jurou que se transformaria numa bruxa e usaria os mais poderosos feitiços para se vingar de todos que a desprezavam.

Procurou livros com palavras mágicas para enfeitiçar os colegas, mas todos os termos eram tão difíceis de pronunciar… E se ela dissesse alguma palavra errada e a praga se voltasse contra ela mesma? Melhor achar outra forma para se vingar…

Depois Clara se lembrou da história da Branca de Neve e de sua madrasta, a bruxa má, que fazia poções mágicas e venenos poderosos. Ela acabou desistindo também, porque precisava de tantos ingredientes complicados. Onde encontrar asa de morcego, baba de sapo, pelo do rabo de mula-sem-cabeça? Esquece…

E aqueles bonequinhos de vodu? Parece bem mais fácil de aprender a fazer o feitiço. Afinal é só fazer um bonequinho e espetar alfinetes. O problema é que Clara nunca foi boa em artes e o boneco poderia ficar muito diferente dos seus inimigos. Imagina se um inocente leva a espetada por causa de um bonequinho de vodu malfeito? Tem que haver mais alternativas…

Clara ainda não tinha descoberto qual feitiço usaria para se vingar dos colegas insensíveis. Um dia ela viu um pai passeando com sua linda filha. A menina falava para seu pai assim:

– Pai, você não vai me pegar para fazer “totutes”…

A menina saiu correndo, mas o pai alcançou-a e começou a fazer cócegas na barriguinha dela. Ela gritava desesperada e o pai sorria sadicamente…

Clara pensou que este tal de “totute” poderia ser o feitiço para a realização da sua grande vingança. Ela não sabia o que aquela pobre menina tinha feito para sofrer aquela tortura impiedosa. Hummm, “totute” deveria significar tortura em alguma língua antiga. A partir daquele dia ela passaria a ter um nome secreto – Bruxa Totute, e se vingaria de todos seus colegas através deste terrível feitiço…

Mas antes de começar a usar este novo feitiço, ela decidiu treinar alguns dias nas suas bonecas. Clara fazia “totutes” nas barriguinhas, nas axilas, nas coxinhas, nas solas dos pezinhos, nos pescocinhos…

Depois testou suas novas técnicas no seu gatinho Mingau. Que estranho, parecia que Mingau gostava, mas gatos e pessoas são tão diferentes…

Finalmente chegou o grande dia! Clara decidiu atacar o colega que ficasse sozinho com ela na sala de aula. Todos saíram para o recreio e Clara, como sempre, ficou na sala sozinha. De repente, o colega Guilherme, mais conhecido como Gui, voltou para a sala, porque ele tinha se esquecido de pegar seu lanche. Chegou a hora da Bruxa Totute. Enquanto ele procurava o lanche na sua mochila, Clara veio sorrateiramente por trás e começou a fazer cócegas no pescoço do Gui. Depois fez nas axilas. Gui riu até perder as forças e cair no chão. Ele pedia para parar, mas Clara impiedosa partiu para cima dele e atacou a barriga com cócegas frenéticas. Depois de alguns minutos, tocou o sinal do final do recreio e Clara fugiu correndo e deixou Gui estirado no chão da sala.

Clara, a Bruxinha Totute em ação. Figura feita com uso de inteligência artificial do Dall-E-3.

Os colegas voltaram para a sala e viram Guilherme no chão, tentando se levantar. Correram em direção da mesa do Gui para saber o que havia acontecido com o colega. Após sentar na sua cadeira, ele recuperou o fôlego e disse:

– Fui atacado por alguém que fez cócegas até eu perder a força e cair no chão.

Carol, curiosa como sempre, perguntou:

– Gui, você viu quem te atacou?

Guilherme pensou um pouco e respondeu:

– Quando entrei na sala, só a Clara estava sentada na mesa dela. Depois fui pegar um sanduíche na minha mochila e não vi se a Clara saiu da sala. Aí fui atacado por trás e não vi quem foi.

Tiago, o Ti, que ouvia atentamente tudo, comentou:

– Não consigo imaginar a Clara fazendo brincadeira com alguém da turma. Não foi ela, foi alguém de outra turma…

A professora entrou na sala conversando com a Clara e todos foram para suas mesas. Carol levantou o braço e a professora fez sinal para ela falar:

– Profe, alguém invadiu nossa sala e atacou o Gui.

A professora preocupada olhou para o Guilherme e perguntou:

– Tudo bem contigo, Gui?

Guilherme procurou tranquilizar sua professora:

– Tudo bem! Não foi nada!

Depois disto a aula recomeçou, mas todos estavam inquietos com o incidente ocorrido. Por outro lado, Clara estava feliz, porque a primeira etapa de sua vingança teve sucesso.

Na semana seguinte, o episódio já estava praticamente esquecido e Clara decidiu que estava na hora da Bruxa Totute voltar ao ataque.

Na hora do recreio, Carol disse para os outros colegas que ficaria na sala, porque estava com sono e queria descansar um pouco. Na noite anterior, seu irmãozinho havia chorado várias vezes e ela não dormiu bem.

Todos saíram da sala, deixando Carol sozinha. Depois de dez minutos, Clara espiou e viu que Carol estava quase dormindo. Então decidiu que a Bruxa Totute devia aproveitar a oportunidade. Entrou na sala sem ser percebida e atacou Carol, fazendo cócegas em várias partes do corpo ao mesmo tempo. Ela não tinha força para reagir ou falar, apenas chorava de forma estranha.

Com medo de que aparecesse alguém, Clara parou e saiu correndo da sala. Foi a sua sorte, porque a professora resolveu voltar um pouco antes para preparar a próxima atividade. Ao ver a Carol no chão, assustou-se e correu para ver o que aconteceu com sua aluna. Abaixou-se ao lado da menina, segurou no seu ombro e perguntou:

– Carol, o que houve? Está tudo bem contigo? Você está sentindo alguma coisa?

Carol abriu os olhos e disse:

– Profe, que bom que você está aqui! Fui atacada! Deve ter sido a mesma pessoa que atacou o Gui…

Neste instante, tocou a sirene, anunciando o final de mais um recreio. Os colegas começaram a voltar para a sala e viram a professora ajudando Carol a sentar-se na sua cadeira. Todos cercaram as duas e queriam saber o que havia acontecido. Quando Carol contou a história, a preocupação tomou conta de todos. Afinal este já era o segundo ataque. No resto da manhã, não houve mais aula. A professora chamou a pedagoga responsável que chamou a diretora. Todos, incluindo Clara, disseram que não viram nada. Por outro lado, havia muitas perguntas no ar:

– Quem estava por trás destes ataques? Qual era seu objetivo?  Quando seria o próximo ataque? Quem seria a próxima vítima?

Como fazia frequentemente, Tiago criou uma teoria surpreendente para explicar o que estava acontecendo:

– Pessoal, já sei! Um fantasma está atacando quem fica na sala na hora do recreio, por isso ninguém enxerga ele.

Guilherme não concordou com Tiago:

– Mas que bobagem, Ti! Meu pai disse para mim que fantasmas não existem. Além disso, por que este fantasma nunca atacou a Clara que fica quase todos os recreios na sala?

Tiago não se deu por vencido e retrucou:

– Gui, nem este fantasma quer brincar com a Clara!

Neste momento, a professora interferiu na discussão:

– Amigos, por favor, mais respeito! Vocês podem conversar, mas não vamos ofender os colegas, certo?

As semanas passaram e ninguém mais ficava sozinho na sala de aula durante o recreio. Se alguém precisasse pegar alguma coisa na mochila, outro colega o acompanharia. Assim Clara não teve nova oportunidade de usar o feitiço totute contra seus colegas.

Um dia Tiago teve uma ideia e chamou seu amigo Guilherme para contá-la:

– Gui, já sei como pegar o fantasma “cosquento”. Num recreio, fico na sala sozinho e você fica escondido e aparece na sala de surpresa para ver o que está acontecendo…

Guilherme ficou admirado com a coragem do amigo e aceitou a missão na mesma hora. Combinaram que no dia seguinte colocariam o plano em prática.

No dia seguinte, conforme o combinado, Tiago voltou para a sala na metade do recreio. Quando Clara viu o colega voltando sozinho para a sala quase não acreditou. Será que a Bruxa Totute teria chance de executar mais uma etapa da sua vingança? Quando ela espiou pela porta da sala de aula, viu Tiago com a cabeça dentro da mochila, procurando alguma coisa. Ela chegou silenciosamente e começou mais uma sessão de cócegas. Ele tentava chamar o Guilherme, mas não conseguia. Clara estava tão empolgada com suas “totutes” que não percebeu que Guilherme estava na porta vendo tudo. Quando ele viu quem era o “fantasma” deu um grito:

– Clara, eu não acredito!!! Você! Não pode ser!

Clara ficou paralisada, não conseguia fazer mais nada… Foi descoberta e agora o que seria dela?

Os outros colegas e a professora, quando ouviram o grito de Guilherme, foram correndo para a sala e viram a cena. Tiago estava finalmente com a cabeça fora da mochila, recuperando o fôlego. Clara estava mais branca do que aquelas camisetas de propaganda de sabão em pó. Todos gritavam… A professora pediu calma, olhou para Clara e perguntou por que ela havia feito aquilo com seus colegas. Ela tentou responder, mas não conseguiu, começou a chorar e saiu correndo da sala. Entrou no banheiro e trancou a porta. A professora pediu que todos ficassem na sala, enquanto foi conversar com a desesperada Clara. Bateu na porta do banheiro e disse:

– Clara, estou sozinha. Por favor, abre a porta para conversarmos!

Após alguns segundos de hesitação, a menina abriu a porta com os olhos vermelhos e soluçando. A professora abraçou-a, ajeitou seu cabelo, fez um carinho no rosto e falou com uma voz doce:

– Clarinha, você é uma menina tão bem comportada. Nunca se meteu em brigas ou confusões. Por que você fez isto com seus colegas? Você não gosta deles?

Clara, entre soluços e lágrimas, respondeu:

– Profe, ninguém gosta de mim! Ninguém brinca comigo! Sou desprezada por todos desde que cheguei aqui.

A professora conteve o impulso inicial de dizer que aquilo não era verdade e pensou um pouco. Realmente ela não se lembrava de ter visto Clara brincando com os outros colegas. A menina raramente sorria ou expressava suas opiniões durante as aulas. Como ela não havia percebido isto antes? Agora não era mais hora de chorar sobre o leite derramado, era hora de resolver esta situação definitivamente. Ela perguntou para Clara se ela gostaria de ir para casa mais cedo.

Clara disse que sim. A professora falou que a condição seria ela vir normalmente à escola no dia seguinte. Depois levou Clara até a pedagoga que ficou conversando com ela, enquanto a professora telefonava para a mãe da menina. Inicialmente ela ficou muito preocupada, mas foi tranquilizada pela professora que disse que naquela hora Clara precisava de muita compreensão e de todo o carinho. A mãe da menina entendeu a mensagem e foi imediatamente à escola para levá-la para casa.

Quando a professora voltou para a sala, todos queriam saber o que aconteceu com a Clara, se ela voltaria ou sairia da escola. A professora pediu silêncio e perguntou se alguém sabia o que era “bullying”. Como ninguém conhecia a palavra, ela explicou:

– “Bullying” é uma palavra inglesa que significa o tratamento ruim que uma pessoa sofre todos os dias de seus colegas ou, no caso de uma escola, dos seus professores.

Carol levantou o braço e perguntou:

– Por que tratam mal esta pessoa? O que ela fez de errado?

A professora sorriu e respondeu:

– Boa pergunta, Carol! Geralmente a pessoa não fez nada errado, apenas é diferente, pode ser a altura, o peso, a cor da pele, o local onde nasceu, a religião que segue… Outras vezes, a pessoa tem mais dificuldade para aprender, ou troca algumas letras para falar, ou é gaga, ou o sotaque é diferente. E, às vezes, a pessoa apenas mudou de escola e não fala com os outros colegas porque é tímida.

A maioria da turma entendeu o que a professora queria dizer. Clara foi isolada, desprezada e sofreu com o deboche da turma. Eles fizeram “bullying” só porque Clara era tímida. Aqueles ataques foram a forma que ela encontrou para vingar-se deles. Desta vez, foi Tiago que levantou o braço e falou:

– Profe, a gente não sabia que estava maltratando a Clara. Agora nós entendemos e não vamos repetir, mas o jeito que ela encontrou para se vingar foi muito engraçado.

Todos começaram a rir. A professora então perguntou como poderiam resolver este problema. Guilherme foi o primeiro a falar:

– Eu quero ir até a casa da Clara para pedir desculpas e dizer que queremos que ela volte.

Carol e Tiago se ofereceram para acompanhar Guilherme. A professora disse que telefonaria para a mãe de Clara para combinar a visita.

Depois de acertar tudo, os três visitaram Clara na tarde daquele dia. Ela pediu desculpa pelos ataques. Os colegas disseram que estava tudo bem e, da mesma forma, pediram desculpas pelo modo que a tratavam na escola. Depois disso, conversaram animadamente e brincaram durante toda tarde. Clara explicou o que eram as “totutes” e os quatro riram muito…

Este foi o primeiro dia de uma grande amizade que durou por todas as vidas de Gui, Ti, Carol e Clara, a Fada Totute.

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