Há três meses, a Revista dos Vegetarianos publicou uma matéria sobre a soja. Como eu e Claudia não concordamos com vários pontos, resolvemos enviar uma mensagem com nossos comentários. Mandamos o e-mail no dia 22-02-2015 e não recebemos qualquer retorno. Deste modo, decidimos publicar a íntegra de nossa mensagem para que os leitores da Revista dos Vegetarianos tenham um contraponto para as informações apresentadas naquela matéria.
Prezados senhores(as),
Minha esposa e eu somos ovo-lacto-vegetarianos e, por iniciativa dela, assinamos a Revista dos Vegetarianos. Costumo ler e confiar na veracidade e precisão dos conteúdos de seus artigos. Na última edição, esta credibilidade ficou abalada após ler a reportagem de capa apresentada como um “dossiê definitivo” sobre a soja. Em primeiro lugar, quase nada é “definitivo” com os avanços científicos atuais. Em segundo lugar, a reportagem apresenta erros e inconsistências que seriam evitados com a consulta de pesquisadores e técnicos da área.
Trabalhei vinte anos em uma empresa que fabricava produtos derivados de soja. Neste período, atuei em diferentes áreas como pesquisa, engenharia de processo, projetos, tecnologia e produção de óleo, lecitina, farinhas, proteína isolada, proteína concentrada e proteína texturizada de soja (PTS). Por este motivo, fiquei perplexo com a demonização que o PTS sofreu nesta reportagem.
Em relação ao ácido fítico, responsável pela indisponibilidade de ferro e zinco, a forma da preparação do PTS pode praticamente eliminar o problema. Pode-se hidratar a proteína com água acidulada com suco de limão ou vinagre de arroz. O pH ácido aumenta a solubilidade do ácido fítico e reduz a solubilidade das proteínas. Na sequência, a massa pode ser enxaguada e prensada entre as mãos. Com esta operação, o ácido fítico e os oligossacarídeos são eliminados. Isto normalmente é feito pelos vegetarianos.
https://vicentemanera.com/2014/09/23/segredinho-no-preparo-da-proteina-texturizada-de-soja/
A revista poderia fazer uma reportagem, mostrando o preparo correto do PTS.
Segundo o Dr. Luciano Giacaglia, “a soja é rica em fibras alimentares que dificultam a absorção de colesterol”. O PTS possui toda a fibra dietética da soja. Em outros produtos, como o leite de soja e o tofu, toda a fibra é removida, gerando um novo produto chamado okara. Ou seja, em relação ao consumo de fibras, o PTS é mais completo do que outros derivados de soja.
O PTS é apresentado como um “subproduto altamente manipulado industrialmente”. O PTS é um dos derivados de soja menos processados. Normalmente é produzido apenas usando farinha desengordurada de soja como matéria prima. Após misturar água e farinha, a massa passa por um extrusor, onde através de alta pressão e temperatura, a maior parte dos fatores antinutricionais, como o inibidor de tripsina, é inativada. Diferentemente do afirmado pelo Chef Flávio Passos na matéria, a maioria destes inibidores enzimáticos não resistem às condições de temperatura dos processos industriais e perdem suas atividades.
O principal motivo das fermentações no tubo digestivo não é a digestão incompleta das proteínas, como o Chef Flávio Passos afirmou, mas a incapacidade de nosso organismo de hidrolisar os oligossacarídeos presentes na soja como a estaquiose e a rafinose. Geralmente só quebramos polímeros de glicose, como o amido, ou dissacarídeos como a maltose, a sacarose (açúcar da cana) e, com mais dificuldade, a lactose (açúcar do leite). Os oligossacarídeos são fermentados pelas bactérias que vivem em nosso intestino, produzindo gases como o metano e o gás carbônico.
Resumindo, dizer, como está na legenda da foto da página 19, “carne de soja – apesar de versátil na culinária, ela não deveria ser consumida porque não é saudável” não tem apoio científico. Além disto, se for bem preparada, a grande maioria dos problemas listados na reportagem são eliminados.
Gostaria de comentar outros problemas que encontrei na reportagem. A farinha de soja normalmente não é obtida através do processo aquoso descrito na página 20. Os dois principais produtos são obtidos através da moagem de soja descascada (farinha full fat) ou de farelo de soja desengordurado após e extração do óleo. Por sinal, a farinha desengordurada é a matéria prima do PTS.
Muitas fórmulas nutricionais para bebês são formuladas com proteína isolada de soja ao invés de extrato de soja (leite de soja). Desta forma, o ácido fítico e os oligossacarídeos são removidos do produto.
Na página 21, está escrito que o óleo de soja “pode ser hidrogenado para ser transformado em gordura vegetal hidrogenada, ou seja, margarina”. Existe um processo chamado interesterificação que não gera gordura trans. Estas gorduras atualmente são ingredientes para a produção de margarinas, solucionando este problema.
O Chef Flávio Passos também afirma que o edamame (soja verde) tem ômega-3, “algo que não se encontra no feijão maduro”. Na verdade, soja é uma das principais fontes vegetais de ômega-3. O óleo de soja (produzido a partir de soja madura) tem em torno de 7% de ácido linolênico (também conhecido como ALA, um dos principais ômegas-3 ao lado do EPA e DHA).
Normalmente, aqui em nossa casa, seguimos o conselho final da reportagem, procuramos variar o cardápio. Usamos diferentes tipos de feijões, lentilhas e grão de bico. Sabemos que a combinação de leguminosas (feijão, lentilha ou soja) com arroz supre nossa necessidade de aminoácidos essenciais. O que nos causou surpresa foi o radicalismo da reportagem contra o PTS que, como todo alimento, não deve ser consumido todos os dias.
Atenciosamente,
Vicente Manera Neto
Engenheiro Químico
Especialista em Tratamento de Resíduos Industriais
Mestre em Engenharia de ProduçãoClaudia Von Frihauf – assinante da Revista dos Vegetarianos
Engenheira Química
Mestranda em Engenharia Química – USP