Arquivo da categoria: Arte

Introduzindo “A Revolta de Atlas” de Ayn Rand e Por Que os Conservadores Brasileiros Não Exaltam Sua Autora?

Enfim terminei a leitura das mais de 1.200 páginas do livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Este livro foi a última obra de ficção desta autora que após sua publicação passou a escrever livros apenas para divulgar sua própria filosofia, o Objetivismo. Ela iniciou a redação em 1946 e concluiu dez anos depois. Conta-se que ela demorou dois anos somente para finalizar o discurso de John Galt que apresenta as bases do Objetivismo. A primeira edição foi publicada nos Estados Unidos em outubro de 1957.

Este é o primeiro artigo de uma nova série que publicarei no blog. Diferentemente da série sobre o livro “As Seis Lições” de Ludwig Von Mises, iniciarei com algumas considerações sobre Ayn Rand e as razões que a impedem de ser popular entre os conservadores brasileiros.

Ayn Rand nasceu na Rússia em 1905, antes da Revolução Bolchevique, cresceu sob o regime comunista soviético, viajou ainda jovem para visitar parentes nos Estados Unidos e nunca mais voltou para seu país de origem. Sua filosofia privilegia o individualismo, o egoísmo e a razão em detrimento dos sentimentos. Ela considera o altruísmo definitivamente um mal.

Ayn Rand

Deste modo, ela tornou-se um ícone do Liberalismo clássico, defendendo o Estado mínimo que teria como função somente e tão somente a segurança (interna e externa do país) e a Justiça. E tudo mais seria realizado pela iniciativa privada. Ou seja, não é função do Estado cuidar, por exemplo, de educação, saúde, assistência social, saneamento básico e infraestrutura básica. O sucesso dos indivíduos, obtido através de um competente esforço egoísta, traria prosperidade para toda sociedade. Os Estados Unidos seriam o melhor exemplo deste modelo. Como podemos perceber suas ideias estão muito bem alinhadas aos pensamentos do economista liberal austríaco Ludwig Von Mises.

Rand escreveu seu livro para defender seus pontos de vista e o Objetivismo. Na reta final do livro, há o longo discurso de 70 páginas do personagem principal, John Galt, sobre o racionalismo, egoísmo e toda a filosofia. Além deste extenso texto, em outras passagens personagens abordam inúmeras questões sensíveis: Francisco d’Anconia fala sobre o dinheiro; o “pirata” Ragnar Danneskjöld define-se como um anti-Robin Hood e defende a meritocracia; Ellis Wyatt defende a riqueza. Analisarei estes discursos nos próximos artigos.

O livro trata da reação de empresários, cientistas e artistas que desaparecem em um ambiente de intervenção estatal crescente nos Estados Unidos do futuro. Está divido em três partes com dez capítulos cada. Em alguns capítulos a história prende e a leitura é fluida; em outras, a leitura é maçante. Existem repetições exaustivas de algumas situações, como se a autora quisesse gravar em nossas mentes sua concepção de mundo. Seguramente poderia haver um bom enxugamento no conteúdo do livro.

Pode-se afirmar que o livro possui quatro personagens principais: três masculinas – John Galt, Francisco d’Anconia e Hank Rearden) – e uma feminina, Dagny Taggart. Dagny era a vice-presidente de operações (hoje chamaríamos COO) da ferrovia Taggart Transcontinental. Ela era uma mulher independente, competente, ética e determinada. Incrivelmente Dagny teve relacionamentos amorosos com os três personagens principais masculinos. Desconfio que Dagny seja alter ego de Ayn Rand…

Em meados da década de 1950, Rand teve um caso amoroso com o psicanalista Nathaniel Branden, vinte e cinco anos mais jovem do que ela. Segundo algumas informações, seus cônjuges tinham conhecimento do fato. Ou seja, Ayn Rand não se encaixa no padrão princesa que se casa com o príncipe encantado para formar uma “família tradicional”.

Ayn Rand e seu marido no casamento de Nathaniel Branden (Fonte: The New York Times)

Além disso, ela era ateia, considerava que havia apenas uma vida. Deste modo, considerava que havia apenas esta vida para o homem buscar seu “maior propósito moral”: alcançar sua própria felicidade.

Também era contra a proibição do aborto por restringir a opção das mulheres e a busca pela felicidade. O embrião não teria direitos inicialmente, o direito à vida só iniciaria a partir do nascimento. E era favorável a descriminalização das drogas por defender o direito de escolha dos indivíduos.

Sua visão sobre as religiões era extremamente negativa. Dizia que os “místicos do espírito” (religiosos) pedem que o sofrimento presente seja suportado para receber a compensação em outra dimensão. Defendia a completa separação entre Estado e religião. Para exemplificar a coerência de suas posições, Rand se recusou a votar no liberal Ronald Reagan para presidente dos Estados Unidos, na década de 1980, devido a sua posição antiaborto e a favor da religião.

Ex-Presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan

No livro, durante o longo discurso de John Galt, há uma passagem sobre a não-violência que transcrevo abaixo.

“Tudo está aberto à discordância, menos um ato mau, o ato que homem nenhum pode cometer contra os outros, aprovar nem perdoar. Enquanto os homens quiserem viver em comunidade, nenhum homem pode tomar a iniciativa – estão me ouvindo? –, nenhum homem pode tomar a iniciativa de usar a força física contra os outros.

Interpor a ameaça da destruição física entre o homem e sua percepção da realidade é negar e paralisar seu meio de sobrevivência. Forçá-lo a agir contra seu discernimento é como forçá-lo a agir contra sua própria visão. Todo aquele que, com qualquer objetivo e em qualquer grau, tome a iniciativa de lançar mão da força, é um assassino que parte da premissa da morte, mais ainda do que o assassino propriamente dito: a premissa de destruir a capacidade de viver do homem.

Não venham me dizer que sua mente os convenceu de que vocês têm o direito de forçar minha mente A força e a mente são coisas opostas. A moralidade termina onde começa a força da arma”.

Sem dúvida, além da violência física, todas as formas de coação, chantagem e assédios são condenadas.

Assim fica difícil para os conservadores brasileiros exaltarem Ayn Rand, porque ela era uma mulher defensora da liberação sexual, a favor do aborto, antirreligiosa, a favor da descriminalização das drogas e defensora ampla da não-violência.

Outro ponto é a separação entre o público e o privado. Nas páginas da “Revolta de Atlas”, existem inúmeros casos de empresários que buscam privilégios através de suas relações com o Governo. Este tipo de conluio é execrado por Rand. Em um Estado mínimo, as empresas deveriam vencer a competição no mercado exclusivamente através de seus próprios méritos, sem ajudas ou reservas de mercado. Nós sabemos como muitos empresários brasileiros atuam com lobbies no Executivo e no Legislativo para favorecer seus negócios, restringindo a livre concorrência, são os falsos liberais.

Nos próximos artigos, abordarei outros pontos como as mensagens subliminares do livro, o Objetivismo, o egoísmo ético e o Liberalismo Laissez-faire de Rand.

Publicidade

1 comentário

Arquivado em Arte, Ética, Economia, Filosofia, História, Literatura, Política, Psicologia

Matrix Resurrections – A Fuga da Obviedade

Na última semana do ano, eu e minha filha, Júlia, fomos ao cinema assistir a Matrix Resurrections. Desde que vi, em setembro, o primeiro trailer oficial com trilha sonora da música White Rabbit da banda Jefferson Airplane, jurei que não perderia oportunidade de “voltar à Matrix”.

Todos os comentários que detonaram o filme causam-me um certo estranhamento. Afinal o filme não era tão ruim para ser atacado de formas tão incisivas. Eu considero um bom filme, nota 7,0 ou 7,5. Por outro lado, não foram atendidas as expectativas destas pessoas. Ou, talvez, as expectativas eram elevadas demais.

Matrix (1999) é uma obra-prima das, hoje, irmãs Wachowski. Este é um filme que transcendeu o cinema e, em muitos aspectos, foi absorvido pela cultura popular. Já escrevi um artigo onde comparo a Matrix com a alegoria da Caverna de Platão. As duas continuações, lançadas em 2003, não chegam perto da qualidade e profundidade filosófica do primeiro filme. Provavelmente, as cenas de ação sejam as maiores lembranças dos dois últimos filmes da trilogia.

Mesmo assim, em Matrix Reloaded, há um espetacular diálogo entre Neo e o Arquiteto (criador da Matrix), quando ele classifica Neo como o resultado de uma anomalia da Matrix. Também informa que aquela era a sexta versão da Matrix. No final, o Arquiteto avisa que Zion, cidade onde vivem os últimos humanos livres, será destruída novamente e Neo teria a missão de selecionar algumas mulheres e alguns poucos homens para reiniciar o processo. Mas, naquele exato momento seu amor, Trinity, estava correndo sério risco de vida. Então Neo opta por salvar Trinity. Logicamente, esta opção não faria sentido, porque, no caso de desaparecimento da humanidade, ele e Trinity também morreriam. O Arquiteto avalia brilhantemente a escolha de Neo:

“Esperança. É a quintessência da auto-ilusão humana, simultaneamente, a fonte de sua maior força e de sua maior fraqueza.”

Quando revi recentemente o terceiro filme, Matrix Revolutions, existe um diálogo entre Neo e o agente Smith em uma das últimas cenas. Agente Smith quer entender o motivo que Neo continuava lutando mesmo sabendo que seria derrotado. A resposta de Neo é simples e marcante e vale por todo o filme:

“Porque eu escolhi (Because I choose to)!”

Esta é uma expressão clara do livre arbítrio. Voltarei a este ponto específico, durante a análise do novo filme.

Decidi que escreveria este artigo somente após rever o filme na HBO Max. Deste modo, pude confirmar algumas impressões e ver outros pontos que passaram despercebidos na primeira vez.

Em primeiro lugar, o filme não foi desrespeitoso com a trilogia. Em minha opinião, foi um grande tributo. A solução para trazer de volta Neo e Trinity foi muito aceitável. As mudanças da nova versão da Matrix e a paz entre humanos e máquinas também são apresentados. Certamente, as informações são insuficientes para aqueles que não se lembram ou não assistiram os filmes anteriores, mas não era este o público da esmagadora maioria dos espectadores.

A rejeição injusta não veio dos neófitos da Matrix, mas daqueles que são fãs desta trilogia. Como já mencionei, neste artigo, Matrix de 1999 é uma obra-prima, incrivelmente original, o que torna praticamente impossível a missão de igualá-la em qualidade. Quem foi ao cinema com esta expectativa só poderia se frustrar.

Aqueles que esperavam cenas de ação inovadoras, como o “bullet-time” do primeiro filme, também se decepcionaram. Muitas cenas de luta do Matrix Resurrections são caóticas. Uma das primeiras até causou-me um desconforto pela quebra da minha expectativa. Por incrível que pareça, achei estas cenas melhores de assistir na tela da TV do que numa sala de cinema IMAX.

Talvez os decepcionados esperavam por grandes revelações como, por exemplo, novas camadas de Matrix. Assim poderia existir uma Matrix dentro de outra Matrix, dentro de outra Matrix, dentro de outra Matrix… Seria quase um “Inception” (a Origem de 2010), onde as camadas da Matrix substituiriam as camadas de sonhos.

Esta Matrix de 2021 foi muito mais psicológica e sociológica do que filosófica, como o filme de 1999.

Thomas Arderson (Neo) está trabalhando em um novo jogo chamado Binary. Várias passagens do filme nos apresentam algumas destas polaridades, muitas vezes difíceis de distinguir, como se tudo fosse binário no mundo:

  • real x imaginário;
  • desejo x medo;
  • livre arbítrio x destino;
  • Thomas Anderson x Agente Smith (em um certo momento do filme até mesmo este antagonismo desaparece temporariamente).

Bugs, jovem e idealista comandante de uma nave da frota, fala para Niobe, que agora é a líder dos humanos livres na nova cidade de IO, que Niobe estava mais preocupada em cultivar vegetais do que libertar mentes. Assim, Niobe estaria mais interessada nas sensações do que no real. Também percebemos este ponto com o céu falso de IO.

Niobe também demonstra claramente medo que a paz com as máquinas termine por causa da liberdade de Neo e do seu interesse em resgatar Trinity. Ou seja, é a paz baseada em uma ética utilitarista, na qual os sofrimentos de Neo e Trinity seriam irrelevantes frente à paz em si.

A nova versão da Matrix foi criada pelo Analista. Ele coloca que os humanos decidem através dos sentimentos ao invés da razão. As versões anteriores, criadas pelo Arquiteto, eram baseadas unicamente em equações matemáticas, na razão. Esta nova versão previa esta característica humana, assim os humanos presos na Matrix ficavam confortáveis. Qualquer semelhança com realidade e distrações, no mundo atual, não é mera coincidência.

Em minha opinião, a principal reflexão deste filme é sobre a motivação das nossas escolhas. Elas seriam resultado do nosso livre arbítrio ou apenas obra do destino? Se for obra do destino, então todo o livro já está escrito e só nos resta a tarefa de encenar o texto, com pequena liberdade para alguns “cacos” menos importantes. Podemos pensar, por outro lado, que devemos fazer o que é certo. Este conceito nos alinha a ética do filósofo Immanuel Kant. Assim, o livre arbítrio seria fazer o que deve ser feito sem distrações e procrastinações. Como o novo Morpheus fala para Neo:

“A escolha é uma ilusão. Você já sabe o que deve fazer”.

Niobe, no filme, decide apoiar o plano para dar a Trinity a oportunidade de decidir sobre sua saída da Matrix. Ela fez o deveria fazer.

Matrix Resurrections também é uma grande história de amor entre Neo e Trinity – um amor “impossível” entre duas pessoas que estão próximas, mas separadas dentro e fora da Matrix.

Como eu e a Júlia achamos que não haveria uma cena pós-créditos, perdemos a piadinha do “The Catrix”, que faz sentido nos dias atuais, e a bela dedicatória de Lana Wachowski para seus pais:

Para papai e mamãe:

“O amor é a gênese de tudo”

O que é a mais pura verdade!

Para finalizar este artigo, o Analista faz a seguinte declaração para Neo e Trinity no final do filme:

“As ovelhas não vão a lugar nenhum. Eles gostam do meu mundo. Eles não querem esse sentimentalismo. Eles não querem liberdade ou empoderamento. Eles querem ser controlados. Eles anseiam pelo conforto da certeza.”

Talvez a esmagadora maioria das pessoas que odiaram o filme buscassem, na verdade, o “conforto da certeza” e Lana Wachowski não lhes deu isso.

2 Comentários

Arquivado em Arte, Ética, Cinema, Filosofia, Geral, linkedin, Psicologia, Tecnologia

Coringa, Osho, Krishnamurti e…

Qual é a relação entre o enlouquecido personagem de ficção Coringa, o polêmico guru Osho e o filósofo indiano Krishnamurti? Este breve artigo fará alguns comentários sobre estes personagens e seus impactos nos indivíduos e na sociedade.

O filme Coringa (Joker em inglês) foi um dos mais instigantes que eu assisti nos últimos anos. Não me lembro de outro filme tão aberto para a interpretação dos espectadores. Afinal nós podemos decidir o que aconteceu e o que era alucinação do Coringa e de sua mãe. Aliás, toda a história pode ser alucinação ou fantasia do personagem principal.

O ponto do filme que eu gostaria de destacar é a forma como a população de Gotham City revoltou-se contra os poderosos da cidade, escolhendo Coringa como símbolo de seu descontentamento, inclusive usando máscaras de palhaço. Talvez a inspiração dos roteiristas tenha sido a máscara de Guy Fawkes, usado inicialmente pelo anarquista personagem principal e depois pela população de Londres em “V de Vingança”. Pessoas descontentes com sua própria vida normalmente canalizam suas frustrações para o exterior. Algumas vezes, existe um alvo fixo; em outras, há alvos difusos. Assim, Coringa transformou-se em um líder improvável seguido pelos descontentes.

Bhagwan Shree Rajneesh, mais conhecido atualmente como Osho, foi um guru cercado por polêmicas. O excelente documentário da Netflix “Wild Wild Country” ajuda a conhecer a história da mudança de seu centro de meditação de Pule, na Índia, para o estado americano do Oregon. Em um rancho no meio do nada, foi criada do zero uma cidade autossuficiente batizada como Rajneeshpuram. Alguns milhares de seguidores, chamados de sannyasins e rajneeshees, largaram tudo para participar da construção da cidade e, depois, trabalharam e viveram nesta comunidade. No documentário, vemos a xenofobia e o preconceito dos habitantes antigos da pequena cidade próxima contra as pessoas da nova comunidade. Por outro lado, a forma como a comunidade reagiu às ameaças dos locais foi absurda – tráfico de armas, criação de uma milícia armada, escutas ilegais, planejamento de assassinatos e bioterrorismo, através da contaminação da comida de restaurantes da cidade de The Dalles com a perigosa bactéria Salmonela.

Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho

Provavelmente apenas uma minoria dos membros de Rajneeshpuram tinha conhecimento do que foi apresentado no documentário da Netflix. Por outro lado, fica claro que Ma Anand Sheela, secretária e pessoa de confiança de Rajneesh, extrapolou em muito o aceitável e muitos membros da comunidade tornaram-se mais fiéis a ela do que ao próprio Rajneesh.

E agora eu chego a Jiddu Krishnamurti… Aos treze anos de idade, ele foi considerado pela Sociedade Teosófica como o “Instrutor do Mundo”. Dois anos depois, foi fundada a Ordem da Estrela do Oriente, com Krishnamurti como chefe, mas, aos 30 anos de idade, ele deixa esta posição. A partir daí, torna-se um filósofo e palestrante independente.

Jiddu Krishnamurti

Este parágrafo extraído do livro de Krishnamurti “A Primeira e Última Liberdade” ajuda a compreender sua escolha de não ser guru ou mestre e de evitar seguidores.

Mas esta é a última coisa que desejamos:  conhecer a nós mesmos. Ela é, no entanto, seguramente, a única base sobre a qual podemos criar. Mas antes de podermos construir, antes de podermos transformar, antes de podermos condenar ou destruir, precisamos conhecer aquilo que somos. Sair por aí procurando, mudando de instrutores, de gurus, praticando ioga, técnicas de respiração, realizando rituais, seguindo mestres, e todo o resto, é inteiramente inútil, não acham? Isso não tem nenhum sentido, mesmo que as próprias pessoas a quem seguimos digam: “Estudem a si mesmos” – porque o mundo é o que somos. Se somos mesquinhos, invejosos, superficiais, gananciosos – isso é o que criamos ao nosso redor, isso é a sociedade em que vivemos.

Para Krishnamurti, as diversões são formas de fugir da batalha que chamamos viver. Entre as diversões, além das óbvias, ele cita as religiões estabelecidas com seus líderes e sacerdotes. A palavra religião, neste artigo e em textos ou palestras de Krishnamurti, não tem o sentido de religação espiritual, o que é desejável e necessário, ela diz respeitos às religiões “oficiais”, como o Cristianismo (e todas suas vertentes), ao Judaísmo, ao Islamismo, ao Budismo, e demais. Deste modo, o tédio diário de uma existência superficial é aliviado, por exemplo, quando se segue um guru espiritual, mas também pode ser um guru de outras áreas como negócios, arte, esporte ou política. Seguir alguém traz segurança.

Na ficção de Gotham City, a falta de esperança era compensada, seguindo-se um palhaço. A violência preencheu o vazio. Não assistimos situações semelhantes no mundo real?

Os milhares de seguidores de Osho, ao invés de mudar primeiro a si e, consequentemente, ao mundo ao seu redor, preferiram criar seu próprio mundo e idolatrar cegamente seus líderes. Eram arrogantes, acreditavam que eram superiores aos demais, consideravam-se como os escolhidos. Esta presunção de superioridade acirrou o conflito e aumentou a distância em relação aos demais habitantes do estado do Oregon, nos Estados Unidos. Não assistimos outros grupos religiosos com as mesmas atitudes nos dias de hoje?

E assim também podemos entender outras distorções. O nacionalismo é outra diversão, assim como a religião, para preencher o vazio existencial das pessoas. O Estado é uma criação dos indivíduos e deveria estar a serviço dos indivíduos. Encare a frase “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” de outra forma, com sua real dimensão. Ela traz conforto e segurança para muitas pessoas e, deste modo, existe muita resistência para questioná-la e abandoná-la.

Deixe um comentário

Arquivado em Arte, Ética, Cinema, Filosofia, Geral, História, linkedin, Psicologia, Religião

Fragmentados – Somos Kevin Crumb

Quem assistiu ao Filme “Fragmentado” de M. Night Shyamalan ficou espantado com o número de personalidades diferentes do personagem principal, Kevin Wendell Crumb. O ator James McAvoy representou incrivelmente algumas das 24 personalidades de Crumb, desde o menino Hedwig de 9 anos, passando pela adolescente Jade, o designer de moda Barry e pelo violento Dennis até chegar à mortal Besta.

James McAvoy interpretou as diferentes personalidades de Kevin Wendell Crumb.

Talvez haja surpresa ou contrariedade com o que apresentarei a seguir, mas todos nós somos fragmentados. Somos pelo menos um fragmento com nossos pais (às vezes, um diferente para o pai e outro para a mãe). Somos pelo menos um fragmento diferente com nossos filhos (às vezes, um diferente para cada um). Somos um outro fragmento com nosso esposo ou nossa esposa. Somos pelo menos um fragmento no trabalho. Muitos agem de uma forma com o chefe; de outra, com os pares; e ainda de outra, com os subordinados. E assim por diante, somos fragmentos diferentes na escola, no futebol, com os amigos… E há aqueles que se parecem com a personalidade Besta de Kevin Crumb quando estão interagindo nas redes sociais da Internet.

Eu nem falei dos efeitos da autoridade e do poder que geram outros fragmentos nas pessoas.

Se concordarmos que em cada papel que exercemos temos comportamento diferente e agimos como se fôssemos outra pessoa, ficará mais fácil aceitar que consideramos nossa própria fragmentação como natural e necessária. Mesmo assim vivemos em conflito, não estamos satisfeitos com o trabalho, com as relações e assim por diante. Sentimos, muitas vezes, um tédio e um vazio interior preenchido com diversões e drogas lícitas ou ilícitas.

A aceitação do pensamento sobre a naturalidade e inevitabilidade da fragmentação da vida torna naturais outras formas de fragmentação no mundo como, por exemplo, nacionalidades, etnias, religiões, ideologias e classes sociais. Nestes casos, a fragmentação gera a divisão e distanciamento do “nós” e “outros”. Estes “outros” são muitas vezes desumanizados pelo “nós”. O resultado final é o ódio e sua contínua realimentação.

Como podemos desejar um mundo com paz e menos iniquidade, se nós mesmos vivemos em eterno conflito e admitimos a naturalidade da fragmentação em nós e no mundo?

Fica claro que, sem resolver o problema dos conflitos no indivíduo, não solucionaremos os conflitos no mundo.

Afinal quem nós realmente somos?

Felizmente temos mais controle sobre nossos fragmentos (papéis e personalidades) do que o personagem Kevin Crumb. O poema “If” de Rudyard Kipling nos passa a mensagem que ao nos comportarmos de modo digno e único, não importando a situação ou ambiente, seremos um ser humano integral.

If you can fill the unforgiving minute

With sixty seconds’ worth of distance run

Yours is the Earth and everything that’s in it,

And – which is more – you’ll be a Man, my son.

Precisamos estar atentos a nossa forma de pensar e agir para tornarmo-nos uma única pessoa ao invés de um grande mosaico de pequenos cacos zumbis. Só assim nos pacificaremos internamente e, externamente, levaremos esta paz e a justiça aos nossos lares e ao mundo.

Deixe um comentário

Arquivado em Arte, Ética, Cinema, Filosofia, Geral, Gestão de Pessoas, linkedin, Psicologia

Descartes, Hamlet, Hilel e Dona Ladi

No início deste mês, Dona Ladi, minha mãe, faleceu em Porto Alegre. Muitas vezes tenho pensamentos que acabam colidindo com outros, aparentemente desconexos, mas tornam-se pontos de partida para solucionar outras questões. Quando transcrevo minhas ideias para o papel, muitas lacunas são preenchidas e ganham coerência (pelo menos para mim). E assim, gostaria de passar rapidamente por algumas frases famosas para explicar todo o reconforto que eu sinto, apesar da tristeza.

O filósofo René Descartes é autor da famosa frase “penso, logo existo”. Eu gostaria de reescrevê-la da seguinte forma:

– Penso, logo tenho a consciência de minha existência.

René Descartes

Pedras, plantas e, até mesmo, animais existem sem a consciência de suas existências.

Então, quando pensamos, conscientemente existimos, mas só somos, quando fazemos algo. Esta reflexão atinge um de seus pontos mais altos com o monólogo do Príncipe Hamlet no final do primeiro ato da tragédia escrita por Shakespeare. “O ser ou não ser, eis a questão” diz respeito ao ser através das ações. Somos aquilo que fazemos. Se deixarmos de fazer aquilo que devemos fazer, também deixamos de ser.

“Hamlet e Horácio no Cemitério” de Delacroix

Não somos o que pensamos, como poderíamos deduzir através do “penso, logo existo” de Descartes. O que nos torna realmente humanos não são nossos pensamentos e ideias; e sim, nossos atos.

Quando Seu Flávio, meu pai, faleceu, há quase 25 anos, a divisão das tarefas do lar era muita clara. Todo o controle de contas bancárias e pagamentos estava nas mãos dele. Minha mãe se reinventou passou a cuidar desta parte e, depois, virou síndica do prédio onde morava, cuidando com austeridade das contas.

Dona Ladi assumiu o pleno controle de sua própria vida. Ela continuou a seguir, mesmo sem conhecer, as três perguntas de Hilel, o Ancião:

Se não for por mim, quem o será?

Se não for agora, quando?

Se eu for por mim, quem eu serei?

Hilel o Ancião

Minha mãe fez de seus atos a expressão mais completa e acabada do que é ser. Foi uma supermãe, carinhosa e educadora. Amava a vida e a liberdade que foi cerceada com o agravamento de seu estado de saúde.

No hospital em que estava internada, conversamos muito. Já havia passado das 22 horas, quando chamei a enfermeira para fazer os preparativos para o sono. Pouco depois da meia-noite, seu estado agravou-se e ela voltou para a UTI. Na madrugada de sábado para domingo, eu pedi ao médico do plantão que não fossem feitos procedimentos dolorosos ou inúteis, como a intubação. Ela estava sedada, quando agradeci por tudo que ela fez e falei que ela estava livre.

Dona Ladi nos deixou na hora do almoço daquela segunda-feira. Ela, sem dúvida, foi, é e será… E eu a amei, a amo e a amarei…

Foto da minha família (Dona Ladi está com a Luiza no colo),São Paulo, julho de 2013

4 Comentários

Arquivado em Arte, Filosofia, Geral, linkedin, Literatura

Os Nossos Pensamentos São Realmente Nossos?

Este post é o pontapé inicial para uma reflexão mais profunda sobre a origem de nossas ideias. Sabemos que não temos liberdade para fazermos o que surgir em nossas cabeças, mas teríamos a liberdade plena no pensar? Qual é a origem dos nossos pensamentos – nossos cérebros, influências externas ou algo divino?

A maioria responderá que é dono e responsável pelo nascedouro de suas ideias. Começo com um exemplo simples. Todos os dias o Sol nasce no leste e se põe no oeste. A Lua segue a mesma lógica e, todas as noites, cruza os céus, percorrendo seu caminho através das constelações que compõem o Zodíaco. Através desta simples observação, deduziríamos que a Terra está no centro do universo e o Sol, a Lua, demais planetas e estrelas giram ao nosso redor. Por que pensamos que, na verdade, é a Terra que gira ao redor do Sol, apesar de nossos sentidos nos mostrarem o contrário?

Adotamos a concepção Heliocêntrica, não intuitiva, ao invés da Geocêntrica, contraditória em relação à nossa percepção, porque fomos convencidos (ou educados) que este modelo é o correto.

Agora vamos pensar em todos os fenômenos naturais que nos cercam. Alguém, por exemplo, pode chegar à conclusão que as aves voam, porque têm penas. Em uma conversa com outra pessoa, pode convencê-la que isto é verdade.

Nos dois casos, a matéria prima para os pensamentos veio do exterior e o resultado foi uma simples repetição de um conceito, independentemente da sua assertividade.

Poderíamos dizer que devemos basear nossos pensamentos na ciência, mas a própria ciência muda seus conceitos com o passar do tempo. A Astronomia passou de Geocêntrica para Heliocêntrica. A Mecânica desenvolvida por Isaac Newton, que funciona perfeitamente conforme nossos sentidos, virou um caso particular na Mecânica Relativística de Albert Einstein.

Isaac Newton e Albert Einstein [Fonte: BBC]

E a medida que nos distanciamos das chamadas ciências exatas, mais problemas temos para definir o que é o certo e o errado. Assim assistimos a discussões intermináveis sobre ideologias políticas, papéis do Estado ou direitos e deveres dos indivíduos na sociedade. Ao aceitarmos os conceitos e as imagens que julgamos corretos, nós nos apropriamos deles e acreditamos que verdadeiramente fazem parte dos nossos pensamentos. Mas por que aceitamos algumas ideias e refutamos outras?

Darei as primeiras pinceladas neste tema complexo, usando as definições de duas palavras alemãs – Zeitgeist e Weltanschauung.

Zeitgeist pode ser definido como o espírito definidor de um determinado período da história, demonstrado pelas crenças e ideias desta época. Ou seja, sofremos forte influência do Zeitgeist, o espírito do nosso tempo. O estilo da Arte em cada época nos mostra claramente isso. Movimentos libertários pipocaram simultaneamente em vários lugares do mundo muito antes da evolução dos meios de comunicação. Como explicar isto?

Weltanschauung é uma filosofia ou visão de vida particular, a visão de mundo de um indivíduo ou grupo. Assim os pensamentos são condicionados por esta visão de mundo que, por sua vez, é baseada nos valores de cada pessoa ou grupo.

Deste modo, a primeira hipótese para a origem dos nossos pensamentos vem da submissão total ao Zeitgeist da época e ao Weltanschauung do grupo.

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset é o autor da famosa frase:

– “O homem é o homem e a sua circunstância”.

Filósofo espanhol José Ortega y Gasset

Para Ortega y Gasset, não é possível considerar o ser humano como sujeito ativo sem levar em conta simultaneamente tudo o que o circunda, incluindo o contexto histórico em que se insere.

Como superar esta circunstância, ou Zeitgeist e Weltanschauung, para ser realmente livre no pensar?

Voltarei ao tema…

Deixe um comentário

Arquivado em Arte, Ciência, Filosofia, Geral, Gestão de Pessoas, linkedin, Psicologia

O Amor Constrói, a Paixão e o Ódio Arrasam Quarteirões

No grande conto de Guimarães Rosa, “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, Nhô Augusto, cego pelo ódio, vai até a chácara de seu inimigo Major Consilva em busca de vingança. Seus ex-capangas, agora comandados por Consilva, aplicam um brutal espancamento em Augusto. Guimarães Rosa descreve de forma brilhante como Augusto se dá conta de sua desventura.

“E Nhô Augusto fechou os olhos, de gastura, porque ele sabia que capiau de testa peluda, com cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem capaz de guardar o passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e ir buscar na rua outras raivas pequenas, tudo para ajuntar à massa-mãe do ódio grande, até chegar o dia de tirar vingança.”
Guimarães Rosa com sua esposa Aracy de Carvalho e seus gatos

Já ouvi muitas vezes que o contrário do amor é o ódio. Em minha opinião, o contrário do ódio é a paixão. E o contrário do amor seria o desamor ou a indiferença.

A paixão é um sentimento extremo de simpatia. Quando estamos apaixonados, não enxergamos os defeitos do objeto da nossa paixão. Por outro lado, o ódio é um sentimento extremo da antipatia. Qualquer coisa que vier do objeto do nosso ódio servirá para alimentá-lo, independentemente da sua natureza. Esta antipatia é tão grande no ódio que a rejeição é feita a priori, sem qualquer tipo de análise, como disse Oswald de Andrade sobre um romance de José Lins do Rego:

– Não li e não gostei!

Oswald de Andrade, quadro pintado por Tarsila do Amaral

Ninguém deveria tomar decisões importantes, quando está ardendo em um dos dois extremos.

Por exemplo, ninguém deveria casar, quando está apaixonado. Para uma união funcionar, deve haver amor! Os bons momentos do relacionamento devem ser gostosos como um banho morno depois de um dia difícil. A paixão é uma fogueira que tudo consome. Após extinguir as chamas, muitas vezes, as diferenças são irreconciliáveis e a paixão transmuta-se em ódio, acendendo uma nova fogueira.

A regra vale também para o ódio. Sempre que tomamos uma decisão importante motivados pelo ódio, as perdas podem ser muito importantes, talvez irreversíveis. Quando se age como os ex-capangas de Matraga e guarda-se os pequenos ódios “para ajuntar à massa-mãe do ódio grande”, a consequência, provavelmente será desproporcional.

Nosso país, atualmente, vive uma ruptura causada por parcelas expressivas da população apaixonadas por um lado que odeiam o outro lado. A racionalidade foi deixada de lado e os ódios são realimentados. O viés da confirmação é o modelo mental mais empregado, onde o que não confirma o credo é abandonado ou, pior, hostilizado. Quaisquer postagens absurdas de WhatsApp ou Facebook são compartilhadas se estiverem alinhadas com o próprio pensamento.

Viver na paixão ou no ódio não é saudável. Devemos buscar o equilíbrio, a virtude aristotélica, longe dos extremos. Eu sei que, muitas vezes, não é uma missão fácil, mas é a única forma de se sentir pleno com paz de espírito.

Aristóteles

Deixe um comentário

Arquivado em Arte, Educação, Geral, Gestão de Pessoas, linkedin, Literatura, Política, Psicologia

Por que Netflix Errou ao Lançar o Filme Radioactive sobre Marie Curie?

Nestes tempos de reclusão, uma das opções é assistir a um bom filme em alguma das plataformas de streaming. Na sexta-feira passada, foi a vez de “Radioactive”, filme sobre a vida da grande cientista Marie Curie.

Gostei do elenco e de suas atuações, especialmente Rosamund Pike como Marie Curie, Sam Riley como Pierre Curie e Anya Taylor-Joy como a jovem Irene Curie.

Como a história dos Curie é pública, não me preocuparei com os spoilers neste post. Se você não a conhece, talvez prefira assistir ao filme antes de ler este texto.

Quando vi o anúncio de Radioactive, pensei que se tratava de uma minissérie. Para minha surpresa, era um filme com menos de duas horas de duração. Assim o que vemos do início ao fim do filme é uma sucessão de fatos com muitos cortes estranhos para os que não conhecem a história da cientista. As dificuldades e vitórias aparecem e desaparecem rapidamente da tela, sem tempo suficiente para assimilação.

Marie Curie nasceu Maria Skłodowska na Polônia. A única cena da sua infância é sobre a morte da mãe, quando Maria tinha 10 anos. Não há nenhuma menção ao seu pai, Władysław Skłodowski, que era um professor. Os problemas financeiros que a família passou também não aparecem.

Uma oportunidade perdida no filme é a omissão que seu pai ensinou os filhos a usarem os equipamentos de laboratório de química. A Polônia, neste tempo, estava sob o domínio do Império Russo e as autoridades acabaram com as aulas de laboratório nas escolas polonesas. Assim ele levou muitos equipamentos para a casa da família e montou um laboratório.

Todo o período na Polônia foi ignorado: seu trabalho como governanta para levantar fundos para estudar em Paris ou, por exemplo, seus estudos em uma universidade clandestina que aceitava mulheres.

Seu período de estudos em Paris também é esquecido.

O pedido de casamento de Pierre à Marie não foi aceito imediatamente, como no filme. Marie desejava voltar para a Polônia e desenvolver seu trabalho em seu país natal, mas não foi aceita na universidade por ser mulher.

Após o nascimento da filha mais velha, Irene, Marie também passa a lecionar para ajudar na renda do casal. O filme passa a ideia de que apenas Pierre dava aulas, enquanto Marie trabalhava exclusivamente nas suas pesquisas.

As descobertas científicas deveriam ter sido melhor exploradas. Tudo começa com uma passagem muito rápida, praticamente um flash, sobre a observação do cientista Henri Becquerel sobre a propriedade do urânio emitir espontaneamente raios. A partir do trabalho de Becquerel, Marie Curie resolve desenvolver seu trabalho. Sua hipótese era ousada, o processo aconteceria a nível atômico. Até aquele momento, a química era baseada no pressuposto que os átomos eram estruturas estáveis e as mudanças aconteceriam a nível molecular (interações entre átomos).

O grande momento “eureca” do filme acontece quando Marie mede a atividade do minério que contém urânio e percebe que ela é maior do que a do urânio concentrado. Ou seja, haveria um outro elemento químico no mineral, ainda desconhecido, muito mais ativo do que o próprio urânio. Após processar toneladas de minério, foram descobertos dois novos elementos o Polônio e o Rádio. Além disto, a palavra radioatividade foi criada para explicar a emissão da radiação pelos núcleos dos átomos. A cena, onde o anúncio destas descobertas é apresentada pelo casal, chega a ser ridícula. Além de absurdamente curta, todos aceitam a destruição de um dos grandes paradigmas da química, a estabilidade dos átomos, com uma facilidade incrível.

O Prêmio Nobel de Física de 1903 foi dividido entre Henri Becquerel e o casal Curie pelos trabalhos sobre os fenômenos de radiação. É verdade que Pierre pediu a inclusão de Marie na nominata dos premiados. O prêmio não foi buscado imediatamente, porque Marie e Pierre continuavam trabalhando intensamente em suas pesquisas. A segunda filha do casal Éve nasceu em 1904 e o casal viajou para a Suécia apenas no ano seguinte para receber o prêmio, diferentemente do que aparece no filme. Pierre parecia não ser muito afeito a festas e solenidades, mas, para receber o Nobel, o laureado precisa fazer uma palestra para receber o prêmio. Lembrem-se do caso de Bob Dylan, quando recebeu o Nobel de Literatura.

Marie e Pierre Currie, Radium [Revista Vanity Fair, 1904]

Após a morte de Pierre em 1906, Marie se envolve com Paul Langevin. Este caso acaba gerando muitas dificuldades na vida de Marie. Ela sofre com inúmeras manifestações misóginas e xenófobas. É interessante lembrar que Langevin foi um cientista importante na sua época. Foi sua a formulação do famoso “Paradoxo dos Gêmeos” da Relatividade. Ele trabalhou com piezoeletricidade (descoberta pelos irmãos Pierre e Jacques Curie) e possuía duas patentes de seu uso para a construção de sonares para detecção de submarinos. Além disto, foi um duro opositor do fascismo e do nazismo.

O segundo Prêmio Nobel de Marie Curie foi de Química em 1911 pela descoberta do Polônio e do Rádio, além do isolamento deste último. Como o processo de isolamento era muito longo devido às baixas concentrações destes elementos no minério, Marie não conseguiu isolar o Polônio. Se pegarmos 1 grama de Polônio puro, metade se transformará em chumbo em pouco menos de cinco meses.

Sua atuação na Primeira Grande Guerra Mundial, ao lado da filha mais velha Irene, salvou ou, pelo menos, melhorou as vidas de milhares de soldados. Algumas estimativas citam um milhão de pessoas tratadas por seus vinte veículos radiológicos (Petit Curies) e duzentas unidades radiológicas em hospitais de campanha. Marie e Irene não receberam nenhum reconhecimento formal do governo francês no pós-guerra por suas contribuições.

Praticamente nada aparece no filme sobre a vida de Marie entre o final da guerra e sua morte em 1934. Por exemplo, sua batalha levantamento de fundos para a criação do Instituto do Rádio (atual Instituto Curie) que pesquisa o uso de radiação na luta contra o câncer. Nada aparece de suas viagens pela Europa, Estados Unidos e até ao Brasil, para promover o uso do Rádio no tratamento do câncer.

Inauguração do Instituto Curie, em primeiro plano Marie Curie e Claudius Regaud.

Outro ponto esquecido no filme foi sua ligação com seu país natal, a Polônia. Ela fez inúmeras viagens a este país, incluindo a criação de uma sucursal do Instituto do Rádio em Varsóvia, atual Instituto Nacional de Pesquisa Oncológica Maria Sklodowska-Curie.

Marie sofreu com muitos problemas de saúde. Nem ela, nem Pierre imaginavam os malefícios à saúde que estavam expostos por causa da radioatividade. Mesmo suas unidades de raio-X portáteis não tinham a blindagem necessária para proteger Marie e sua filha Irene da radiação.

Na última cena do filme, aparece uma foto maravilhosa da Conferência Solvay de 1927. Nada menos do que 17 dos 29 participantes desta foto receberam o Prêmio Nobel. Marie Curie, a única mulher na foto, está sentada entre Max Planck e Hendrik Lorentz. Na direita de Lorenz, estão Albert Einstein e Paul Langevin, o ex-amante de Marie. Na foto, aparecem outros grandes cientistas como Niels Bohr, Louis de Broglie, Wolfgang Pauli, Max Born, Erwin Schrödinger (sem o gato) e Werner Heisenberg (com certeza).

Conferência Solvay de 1927

Marie teve duas filhas. Irene, a mais velha, casou-se com Frédéric Joliot. O casal adotou o sobrenome um do outro. O casal Joliot-Curie recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1935 pelo seu trabalho com radioatividade artificial. Este prêmio tornou a família Curie a maior vencedora do Nobel. O casal teve uma luta destacada contra o fascismo e nazismo. Irene morreu de leucemia aos 58 anos. Outra vítima da radioatividade.

A segunda filha, Ève, foi música, escritora, jornalista e humanista. Como curiosidade, ela foi casada com Henry Richardson Labouisse, diretor executivo da UNICEF, quando esta agência da ONU foi agraciada com o Prêmio Nobel da Paz em 1965. Esta é mais uma prova da atração irresistível do Nobel com os Curies. Como Ève não se expôs à radiação teve uma vida longa, falecendo em New York aos 102 anos.

A filha de Irene, Helene, é uma física nuclear. Ela foi casada com Michel Langevin, neto de Paul Langevin, ex-amante de sua avó Marie Curie. Parece até novela…

Depois de ler este post, você deve ter chegado à mesma conclusão, Netflix poderia ter feito uma grande série sobre a vida de Marie Curie e, talvez, a sua família. A radioatividade, por exemplo, poderia se tornar um assunto mais fácil para os leigos. Marie Curie defendia o direito das mulheres à educação e ao trabalho, não se deslumbrou com a fama e tinha a dimensão de como seu trabalho poderia ajudar a humanidade. Sem dúvida, havia assunto suficiente para mais de uma temporada.

1 comentário

Arquivado em Arte, Ciência, Cinema, Educação, História, Inovação, Lazer, linkedin, Política, Psicologia, Tecnologia

A Origem do Mormaço de Porto Alegre – As Férias de Verão das Sílfides

Quem já passou um verão em Porto Alegre sabe como é desagradável o mormaço a que são submetidos seus habitantes. As temperaturas elevadas, muitas vezes próximas aos 40°C, aliadas à alta umidade e à ausência de uma brisa refrescante exigem a refrigeração dos ambientes e, quando possível, a fuga para alguma praia do litoral.

Mas, houve um tempo em que uma suave brisa atenuava o calor do verão porto-alegrense. As Sílfides passavam o dia inteiro balançando suas asas e voavam de um canto a outro. Elas apreciavam especialmente as ilhas do Lago Guaíba que banha a capital gaúcha.

Tudo começou a mudar em 1752, quando sessenta casais de portugueses chegaram ao pequeno vilarejo. Logo a vila ficou conhecida como Porto dos Casais e sua população começou a crescer. Algumas das Sílfides foram em busca de lugares mais tranquilos próximos a outras grandes massas de água. Assim chegaram ao litoral, mas acharam o local muito frio e inóspito no inverno e combinaram voltar no verão.

No final daquele ano, as Sílfides que foram até as praias gaúchas convenceram as demais companheiras a fazerem a mesma jornada para conhecer o novo local. Gostaram tanto que resolveram retornar somente no início de março. Tão felizes ficaram que adoravam se reunir fantasiadas de nuvens, principalmente à tarde, para todas juntas baterem bem forte as suas asas. Criaram o Vento Nordestão…

Desde aquele tempo, as Sílfides saem de Porto Alegre no início de dezembro e veraneiam nas praias gaúchas até o final de fevereiro. E os porto-alegrenses sobrevivem como podem em “Forno Alegre”.

Moradores de Porto Alegre, chegou a hora de saudar o retorno das Sílfides e os lindos dias de outono, luminosos e agradáveis. Não quero estragar a alegria, mas, em breve, as Sílfides do Polo Sul começarão a bater suas asas e o Vento Minuano – vento sudoeste, gelado, cortante que atravessa roupas e ossos, começará a soprar.

Deixe um comentário

Arquivado em Arte, Geral, História, Literatura

A Origem dos Beija-Flores – A Revolta das Sílfides

As Sílfides passam o dia inteiro carregando o pólen de flor em flor. Este trabalho incansável não é notado pela esmagadora maioria dos seres humanos que não enxerga os seres elementais.

Algumas Sílfides reclamavam muito disto:

– Nós somos responsáveis por todo o esplendor da flora; pelo surgimento das mais saborosas frutas; pelo sustento de todos animais. E os humanos desprezam nossa existência. Aqueles que nos enxergam são chamados de loucos. Tudo isso é muito injusto!

As Sílfides mais ponderadas sempre davam exemplos para confortar as mais exaltadas:

– Todos os seres têm seu lugar no mundo. Devemos fazer o melhor para manter a harmonia na natureza. Se um nó nesta grande rede falhar, pode aparecer um enorme rombo e trazer desgraças para todos os seres da natureza. Imagina se os minúsculos seres responsáveis pela decomposição das plantas e animais mortos achassem sua missão pouco nobre e desistissem de executá-la? A Terra ficaria coberta de cadáveres e os nutrientes destes corpos não retornariam ao solo. Em pouco tempo, a natureza seria severamente prejudicada.

Mas estes argumentos não traziam paz às Sílfides rebeldes:

– A maioria das pessoas sabem da existência destes seres que trabalham na decomposição dos corpos das plantas e animais. E reconhece sua importância. E nosso caso como fica? Acreditam que tudo é obra do acaso. Ah, estes humanos tolos sempre vendo obras do acaso por todos os lados… Mal sabem eles que, na polinização, nós somos o acaso.

As discussões foram se tornando cada vez mais fortes entre os dois grupos de Sílfides. Em um destes momentos, uma Sílfide mais radical propôs uma greve por tempo indeterminado.

Um grupo mais moderado de Sílfides das duas correntes de pensamento se reuniu secretamente para tentar encontrar uma solução para a crise, numa noite, no tronco de uma jabuticabeira. Depois de muita discussão, apareceu uma alternativa:

– As Sílfides devem prosseguir com a missão de polinizar as plantas. Assim devem continuar voando de flor de flor. Para os humanos vê-las, elas deveriam estar nos corpos de pássaros. Preferencialmente estas aves devem ser lindas e delicadas, modéstia à parte, como nós Sílfides somos.

A ideia foi apresentada para todas as Sílfides e aprovada por unanimidade. Deste modo, os beija-flores foram criados para abrigar as Sílfides rebeldes. E as pessoas param tudo que estão fazendo por breves instantes quando veem estas lindas aves voando de flor em flor.

Deixe um comentário

Arquivado em Animais, Arte, Geral, Lazer

A Origem das Jabuticabas – As Sílfides e a Jabuticabeira

Não existe outra árvore como a jabuticabeira! Além dela, qual árvore possui deliciosas frutas presas diretamente nos seus troncos e galhos? Mas houve um tempo em que a jabuticabeira não dava frutos e ela sentia uma profunda tristeza ao ver outras árvores floridas ou cheias de frutas ao seu redor.

Numa noite, uma jabuticabeira acordou de sono assustada ao sentir a presença de inúmeros seres sobre seu tronco e seus galhos. Ela sussurrou:

– Quem está sobre mim? Sei que não pousaram sobre meu corpo insetos ou outros seres conhecidos por mim!

Várias vozes falaram em coro:

– Somos Sílfides. Somos pequenas fadas da mata. Trabalhamos durante todo o dia, levando o pólen de uma flor para outra. Ajudamos as árvores desta floresta a frutificarem. Seus frutos serão alimentos para todos animais que aqui vivem e as sementes destes frutos, ao encontrarem solo fértil e água, gerarão novas árvores.

A Jabuticabeira retrucou:

– E por que vocês pousaram em mim? Sou uma pobre árvore estéril. Vocês estão vendo flores nas pontas dos meus ramos, como nos espetaculares ipês, flamboyants ou jacarandás? Vocês acham que todos esperam ansiosos minha floração como acontece com as cerejeiras que ainda produzem frutos deliciosos? Ah que injustiça…

Uma das Sílfides, constrangida, confessou:

– Na verdade, viemos descansar. Trabalhamos o dia inteiro, polinizando os ipês e procuramos um lugar, sem flores, para nos recuperarmos depois de um dia duro de trabalho. Sabe, não é bom levar o trabalho para casa…

Gotas de água começaram a verter por todas as folhas da Jabuticabeira até virarem uma chuva. As Sílfides fugiram para outra árvore com medo daquela tempestade causada pela tristeza da pobre árvore estéril.

Naquela noite, ninguém dormiu. Elas sugeriram diversas alternativas para acabar com o sofrimento daquela Jabuticabeira solitária. Uma sugeriu que ela tivesse flores lindas como as rosas; outra, flores delicadas como os lírios. Outra sugeriu que tivesse frutas como amoras; outra, como abacates ou goiabas. Finalmente, uma delas deu uma ideia incrível:

– Vamos fazer algo inédito! A Jabuticabeira terá flores parecidas conosco, pequeninhas e delicadas. Ao invés de nascer na ponta dos ramos, estas flores aparecerão no tronco e galhos grossos da árvore.

– E as frutas, como serão? – As outras perguntaram curiosas.

– Serão bolinhas escuras de uma doçura incrível. Os mais velhos se deliciarão catando-as do tronco e seu sabor ativará a memória dos tempos de criança, quando escalavam seus galhos, disputando com os pássaros desta mata cada frutinha.

Todas as Sílfides adoraram a ideia e naquela noite mesmo a colocaram em prática.

Pela manhã, a Jabuticabeira sentiu uma estranha comichão por todo seu corpo. Não entendeu o que estava acontecendo. Depois milhares de florzinhas pequenas e delicadas surgiram sobre seu tronco e galhos. Abelhas e Sílfides dançavam freneticamente em volta dela. O zumbido das asas era uma sinfonia, o fim do silêncio solitário.

Passados alguns dias as flores foram, progressivamente, substituídas por pequenas bolinhas verdes que foram crescendo e escurecendo até ficarem do tamanho de bolinhas de gude.

Insetos, pássaros e crianças passaram a disputar seus deliciosos frutos. As sementes voltaram para o solo e novas jabuticabeiras nasceram.

A Jabuticabeira ficou feliz. As Sílfides se orgulharam da sua criação. E nós somos imensamente gratos a elas.

1 comentário

Arquivado em Arte, Lazer, Literatura

Lula e Sérgio Moro Aplicam o Mesmo Modelo Ético

Muitas pessoas ao lerem o título deste artigo já ficaram tão injuriadas que não seguiram a leitura nem desta primeira frase. Claro que isto inclui os seguidores inquestionáveis de Lula e os de Sérgio Moro. Neste artigo, não defenderei os erros de nenhum dos lados. Apenas demonstrarei meu ponto de vista, tanto Lula, quanto Moro empregam o mesmo modelo de ética.

Recentemente assisti novamente ao filme Watchmen. Os principais personagens adotam diferentes modelos de ética. Recomendo que assistam ao filme (disponível no Netflix) dirigido por Zack Snyder ou leiam o livro em quadrinhos (romance gráfico), escrito por Alan Moore e ilustrado por Dave Gibbons. A Revista Time considerou este livro um dos cem melhores romances publicados em inglês desde 1923. A seguir apresento o modelo ético de alguns personagens do filme.

Rorschach segue o modelo da Deontologia, também conhecido como a ética de Kant. É o agir pelo dever. Pode parecer estranho, mas só pode ser atingida através do livre arbítrio. Só a vontade pode embasar a moralidade e suplantar os instintos. Para Rorschach, tudo é preto no branco; é olho por olho, dente por dente.

immanuel-kant

Immanuel Kant

Ozymandias e Dr. Manhattan seguem o modelo teleológico, também conhecido como Utilitarismo. Foi defendido pelos filósofos e economistas britânicos Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Pode ser resumida na frase “agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar”. Para Ozymandias, pessoas podem ser prejudicadas para o benefício da maioria.

bentham_mill

Jeremy Bentham e John Stuart Mill

Coruja II segue a ética da virtude clássica, a ética do filosofo grego Aristóteles. Ele busca o equilíbrio, o caminho do meio, entre os extremos.

aristoteles_busto

Aristóteles

Se já viu o filme ou não pretende vê-lo, siga a leitura. Caso contrário, os próximos parágrafos serão spoilers. Volte ao artigo após a foto dos super-heróis do filme. E quando for assistir ao filme, lembre-se de que é um filme de super-heróis só para adultos.

O filme se passa nos anos 80, onde uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética é iminente. Ozymandias traça um plano para destruir algumas das principais cidades do planeta, usando uma tecnologia desenvolvida através dos poderes do Dr. Manhattan. Quando isto acontece os EUA e a URSS se unem contra um inimigo comum (Dr. Manhattan) e o mundo entra em um período de paz. Ou seja, Ozymandias mata milhões para salvar a vida de bilhões, seguindo o utilitarismo.

Rorschach e o Coruja tentam impedir o plano sem sucesso. Dr. Manhattan e Espectral aparecem e, ao verem na TV o discurso do presidente americano, Nixon, os heróis se dão conta que contar a verdade poderia destruir a paz obtida através do plano de Ozymandias. Rorschach não se conforma e, mesmo sabendo que provavelmente aquele seria o último ato de sua vida, diz que denunciaria o plano de Ozymandias, porque todos têm o direito de saber a verdade.

Temos então o seguinte diálogo:

Ozymandias – Será mesmo Rorschach, se me denunciar irá sacrificar a paz pela qual milhões morreram hoje.
Coruja II – Paz baseada em uma mentira.
Ozymandias – Mas é paz, apesar de tudo.
Dr. Manhattan – Ele está certo.
Espectral – Não, não podemos fazer isso!
Dr. Manhattan – Você me ensinou o valor da vida humana, se quisermos preservá-la aqui, temos que ficar em silêncio.
Rorschach – Fiquem vocês com suas mentiras! Não faço acordos, nem mesmo
diante do Armagedom.

Fora do palácio de Ozymandias, Rorschach encontra Dr. Manhattan e o diálogo prossegue.

Dr. Manhattan – Rorschach, você sabe que não posso permitir isso!
Rorschard – Se tivesse se importado desde o começo com a humanidade nada disso aconteceria.
Dr. Manhattan – Posso mudar quase tudo Rorschach, mas não posso mudar a natureza humana.
Rorschach – Claro, deve proteger a utopia de Veidt (nome verdadeiro de Ozymandias). Um cadáver a mais não faz diferença. Muito bem, o que está esperando, vai me mate, me mate…

Dr. Manhattan explode Rorschach, porque também aderiu ao utilitarismo. A morte de Rorschach garantiria a paz e, deste modo, as vidas de bilhões estariam salvas. Por outro lado, Rorschach seguiu a ética de Kant até o último instante de sua vida. A justiça e a verdade devem estar acima de tudo, não importam as consequências.

watchmen

Watchmen – da esquerda para direita: Ozymandias, Dr. Manhattan, Espectral II, Rorschach, Coruja II e Comediante

 

Voltando agora a Lula e Sérgio Moro…

No livro “Uma ovelha negra no poder”, dos jornalistas Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz, lançado em 2015 sobre a vida do ex-presidente uruguaio, Pepe Mujica, há um trecho sobre o Mensalão, escândalo que assolou o primeiro mandato de Lula. Abaixo transcrevo a página do livro traduzida para o português.

Lula teve de enfrentar um dos maiores escândalos da história recente do Brasil: o mensalão, uma mensalidade cobrada por alguns parlamentares para aprovar os projetos mais importantes do Poder Executivo. Compra de votos, um dos mecanismos mais antigos da política. Até José Dirceu, um dos principais assessores de Lula, está processado por esse caso.

“Lula não é corrupto como era Collor de Mello e outros presidentes brasileiros”, disse Mujica, referindo-se ao caso. Contou também que Lula viveu aquele episódio com angústia e com um pouco de culpa. “Neste mundo tenho que lidar com muitas coisas imorais, chantagens”, disse Lula com pesar a Mujica e Astori, algumas semanas antes de assumirem o governo do Uruguai. “Essa era a única forma de governar o Brasil”, se justificou. Eles tinham ido visitá-lo em Brasília, Lula sentiu necessidade de esclarecer a situação. “O mensalão é como este país, tudo é enorme”, refletiu.

“O mensalão é mais velho do que o agujero del mate (expressão uruguaia que se refere a algo velho)”, opina Mujica. Grandes políticos da história tiveram de recorrer a mecanismos semelhantes. “Às vezes, este é o preço infame das grandes obras”, argumentou ao lembrar-se Abraham Lincoln, justo nos dias em que havia estreado um filme de Steven Spielberg sobre a vida do presidente dos Estados Unidos, no qual ele mostrou como ele tinha que entregar algo em troca de votação para seus projetos.

De acordo com Mujica, Lula aceita pagar o mensalão para viabilizar o seu governo. O pagamento a deputados para votarem a favor das leis propostas pelo governo é ilícito e imoral. Este ato vai contra a Deontologia (a ética de Kant), porque afronta a justiça e a verdade. Por outro lado, ao aprovar rapidamente essas leis, o governo obteve o que precisava para a execução do seu plano. Ou seja, a ética usada foi utilitarista.

O pior no utilitarismo é que pode seguir aquela máxima de que os fins justificam os meios. E isto fica claro nos escândalos de corrupção que visavam financiar a permanência do PT no governo, investigados pela Operação Lava-Jato.

Sérgio Moro cometeu um ato ilegal ao divulgar a escuta telefônica em que Lula conversava com a então presidente Dilma Rousseff. Ele despachou às 11:13 do dia 16/03/2016, suspendendo a escuta telefônica contra o ex-presidente Lula. No mesmo dia, às 13:32 foi gravada a conversa de Lula com Dilma, onde é combinada a assinatura do termo de posse de Lula como Ministro da Casa Civil. Apesar da escuta ser considerada ilegal, Moro derrubou o sigilo e liberou sua divulgação. Não estou nem discutindo a questão do foro para autorizar a divulgação de grampo telefônico de uma presidente no exercício do cargo.

Moro, no seu despacho que autoriza a divulgação dos áudios, arremata:

“A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras.”

Eu sei que você ficou em dúvida se Moro agiu como Rorschach, seguindo a ética kantiana numa luta para punir o mal, ou como Ozymandias, seguindo o utilitarismo em que os fins justificam os meios.

A condenação de Lula no caso do “Triplex do Guarujá” pode dirimir esta dúvida. Moro condenou Lula a 9 anos e meio de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O problema é que o triplex nunca saiu do nome da OAS, foi inclusive usado como garantia na Caixa. A condenação foi baseada em alguns depoimentos e mensagens, sem provas realmente concretas.

lula_moro

Lula e Moro no interrogatório do Processo do Triplex do Guarujá  (Fonte: Folha de São Paulo).

Para Kant, o Estado não pode punir um cidadão para inibir os outros a cometerem ilícitos. Neste caso, o utilitarismo seria aplicado. A pena é uma retribuição ética que se justifica pela moral, fundamentando a pena tão somente pelo mal que o condenado já praticou e não como uma maneira utilitária de promover o bem de outros ou do próprio condenado.

Sérgio Moro agiu em relação à Lula de acordo com a perspectiva do utilitarismo. Mesmo sem provas suficientes para condená-lo, ele decidiu fazê-lo, removendo Lula do processo eleitoral brasileiro no ano passado.

Para completar, Moro suspendeu os novos interrogatórios de Lula para evitar exploração política que pudesse interferir nas eleições. Por outro lado, há seis dias do primeiro turno das eleições presidenciais, quebrou o sigilo da delação de Antônio Palocci que fazia acusações contra Lula. Assim Moro, mais uma vez, agiu de modo utilitarista, reduzindo as chances eleitorais do PT. Afinal, na sua visão, seu objetivo de combater a corrupção seria prejudicado com a volta de Lula, ou pelo menos de alguém do PT, à presidência de República.

E você segue qual perspectiva ética – kantiana, utilitarista ou aristotélica?

Deixe um comentário

Arquivado em Arte, Ética, Cinema, Filosofia, Geral, História, linkedin, Literatura, Política, Psicologia

Eu e o Persistente 2017 que Insiste em Não Acabar

Faz cinco meses que eu não publico nada no blog. Esta deve ser a mais longa inatividade desde a sua criação há nove anos. O pior é que não faltaram assuntos…

Quando escrevi o post “2017 – O Ano que Ainda Não Terminou em Alguns Sons e Imagens”, havia tomado a decisão de voltar para a vida de consultor independente. Reativei minha rede de contatos para ver potenciais parcerias. Em abril, fechei um contrato de um ano com alta carga horária mensal para reestruturar as áreas de engenharia e tecnologia de uma empresa. Iniciei as atividades em maio. O trabalho é muito interessante, tenho aprendido muito sobre processos biotecnológicos. Só tem um detalhe, a empresa está localizada a mais de 500 km da minha residência. Deste modo, praticamente todas as semanas, nas segundas-feiras, eu pego o primeiro voo para o aeroporto mais próximo da cidade onde fica a empresa e retorno no último voo na noite de sexta-feira.

Também decidi que eu não deixaria passar oportunidades de negócio. Fechei um contrato spot como uma empresa de alimentos na Europa para solucionar um problema de qualidade de uma de suas linhas de produtos. Assim passei uma semana, acompanhando testes na planta deles no início de agosto. Tive sucesso e agora estou em negociação para um contrato maior. E recentemente, fechei um contrato com meu antigo empregador para uma consultoria técnica na área ambiental, mais especificamente na nova estação de tratamento do esgoto sanitário e na modernização da estação de tratamento de efluentes industriais de uma planta no Rio Grande do Sul.

Ou seja, meus dias têm sido intensos. Os trabalhos são interessantíssimos, temas variados em regiões geográficas bem diferentes.

Há cinco anos, escrevi o artigo “Empresário ou Empregado – Contatos Quentes e Frios”. Nele descrevi as limitações da vida de consultor. A principal é a contratação quase exclusiva por alguém que te conhece ou recebeu indicação de quem te conhece (os chamados contatos quentes). Além disso, quase sempre você é contratado para fazer aquilo que comprovadamente sabe fazer. A chance de fazer coisas novas é normalmente muito pequena.

Neste ano, só investi nos contatos quentes e poupei energia com os frios. Todos meus contratos são provenientes de contatos quentes. E confesso que desta vez fiz coisas inéditas, aprendi novas tecnologias, negociei contratos no exterior, emiti invoices em inglês, fechei contratos de câmbio…

E consultas para novos projetos continuam chegando…

Para completar, continuo estudando Antroposofia em um curso de formação da pedagogia Waldorf. Esta atividade ocupou um final de semana por mês, além de uma semana inteira em julho. Tenho inclusive tentado pintar algumas aquarelas como a apresentada abaixo.

aquarela

Minha família continua me apoiando nesta correria quase insana. Sem o amor e compreensão da Claudia e das gurias, eu não aguentaria este ritmo.

Por falar em correria, continuo correndo e, segundo o App Runkeeper, já percorri mais de 700 km, desde que iniciei as corridas no final de julho do ano passado. Participei de mais uma corrida de rua, dessa vez foram 10 km em São José do Rio Preto.

Corrida_SJRP

Vamos ver se 2017/ 2018 será encerrado na Corrida de São Silvestre que eu e meu filho Leonardo vamos participar em 31 de dezembro deste ano pelas ruas de São Paulo. Já estamos inscritos!

 

Se existe alguém com saudades de meus artigos sobre política, não perca, na próxima semana, o artigo “A Sérvia e a Eleição Presidencial Brasileira”.

 

Deixe um comentário

Arquivado em Arte, Esporte, Gerenciamento de Projetos, Gestão de Pessoas, Lazer, linkedin

Deixem as Crianças Crescerem

Comecei recentemente a ler o livro “Memórias de Vida e Luz”, autobiografia de Jacques Lusseyran, um herói cego da Resistência Francesa na Segunda Guerra Mundial. Em uma passagem do livro, Lusseyran mostra sua gratidão pela forma que seus pais encararam sua cegueira e arremata com este conselho para pais de crianças cegas:

“Por isso eu digo aos pais cujos filhos ficaram cegos que tenham confiança. A cegueira é um obstáculo, mas só se torna uma miséria quando se cai na insensatez. Digo-lhes que sejam tranquilos, jamais contrariando o que seu pequeno filho ou filha anda descobrindo. Nunca deveriam dizer ‘Você não pode saber isso porque não enxerga’, e o mais ocasionalmente possível ‘Não faça isso, é perigoso’. Para uma criança cega existe uma ameaça maior do que todos ferimentos e galos, os arranhões e a maioria das batidas: é o perigo do isolamento dentro de si mesma.”

Jacques_Lusseyran

Jacques Lusseyran

Ou seja, não diga ao seu filho cego que ele não sabe ou é incapaz de fazer algo, simplesmente porque ele não enxerga. Se os pais fizerem isto, estarão limitando a evolução de seu filho, colocarão uma armadura que o isolará do mundo.

Mas este conselho poderia ser dado a pais com filhos com outros tipos de necessidades especiais: deficientes auditivos, crianças com dificuldades de locomoção ou com algum tipo de retardo intelectual. Afinal o excesso de proteção também poderá isolar o filho e limitar sua interação com outras pessoas e com o mundo.

criancasPensando bem, este conselho de Jacques Lusseyran vale para todas as crianças. Nós pais temos o dever de proteger e educar nossos filhos, mas, neste processo, não devemos tolher suas iniciativas ou moldar seus pensamentos de forma que eles se tornem simples cópias do senso comum.

Mais uma vez estamos frente a frente com o desafio de encontrar o equilíbrio.

Deixe um comentário

Arquivado em Arte, Ética, Educação, Geral, linkedin, Literatura, Psicologia

2017 – O Ano que Ainda Não Terminou em Alguns Sons e Imagens

Parece que temos mais histórias para contar em alguns anos do que em outros. O ano de 2017 está entre os mais ricos em novas experiências da minha vida. Na manhã do dia 14 de janeiro, tive uma fratura grave na tíbia e fíbula da perna direita, jogando um inocente futebol com minhas filhas e uma colega da mais velha no quintal da minha casa. Dois vizinhos, Fernando e Toni, me levaram ao Hospital São Luiz no Morumbi. Minha fratura foi reduzida e no dia seguinte fui operado.

Gravei este áudio com a narração do acidente em estilo de transmissão pelo rádio de um jogo de futebol e coloquei algumas fotos do quintal de casa.

A radiografia abaixo mostra o tamanho do estrago. Agora tenho uma haste metálica dentro da tíbia fixada por dois parafusos na altura do joelho e por outros dois no tornozelo. Além disto, tenho duas placas fixadas por seis parafusos na lateral da perna próximo ao tornozelo que ajudaram na consolidação da fíbula.

Fratura_15-01-2017

Pelo menos não precisei engessar a perna, usei uma imobilização removível chamada Robofoot que eu tirava para dormir, tomar banho ou quando estava sentado na sala.

Com menos de uma semana, passei a tomar banho sozinho sem qualquer ajuda. Dois meses depois, já subia escadas.

Passei por vários momentos no processo de recuperação. Desde os tempos iniciais em que não podia encostar o pé no chão aprendi a andar de muletas até a hora tive que largá-las, no final de abril. Para isto fiz muita fisioterapia, com longas sessões de exercícios e choques. Tive que reaprender a andar.

Para ajudar na recuperação comecei com caminhadas na metade de junho e depois com corridas leves. A figura abaixo mostra minha primeira caminhada mais longa.

Runkeeper_17-06-2017

Peguei gosto pelas corridas e perdi mais ou menos 6 quilos em um ano, minha saúde melhorou. Um dia depois de completar 52 anos, participei pela primeira vez de uma corrida de rua.

foto 25-03-2018

Comecei a estudar Antroposofia em um curso de formação da pedagogia Waldorf. Uma vontade de dar aulas de química para pré-adolescentes e adolescentes começou a crescer dentro de mim… O futuro dirá se concretizarei esta vontade.

Durante o curso, junto com aulas teóricas, temos aulas de arte. Sempre me considerei um grande nada como artista. Tinha certeza absoluta da minha incompetência para todas as formas de artes. Com o transcorrer das atividades de modelagem em argila consegui superar esta certeza negativa e saíram algumas peças, como o “Urso” e o “Tio Gervásio”, cujo resultados finais me agradaram.

Urso_argila

Tio Gervasio

O curso de Antroposofia era no Sítio das Fontes em Jaguariúna. Lembro-me de um sábado que eu e alguns colegas acordamos bem cedo para ver o nascer do sol no equinócio da primavera. Repare que na segunda foto aparecem dois sóis.

Equinocio-1

Equinocio-2

No período que fiquei em casa, aproveitei as horas economizadas por não pegar a Rodovia Raposo Tavares nos deslocamentos até o escritório em São Paulo para ler mais e ver filmes e documentários.

No documentário “The Corporation”, havia participação destacada de Ray Anderson, fundador e ex-presidente da Interface, um dos maiores fabricantes mundiais de carpete modular para aplicações comerciais e residenciais. Ele era conhecido nos círculos ambientais por sua posição avançada e progressiva sobre ecologia industrial e sustentabilidade. Em um de seus depoimentos, ele citou dois livros que ajudaram a moldar seu pensamento, “A Ecologia do Comércio” de Paul Hawken e “Ismael” de Daniel Quinn. Descobri que tinha o livro Ismael em casa. Li e fiquei impressionado com a visão de Quinn sobre como o ser humano está destruindo o planeta, através da agricultura.

thecorporation

O pensamento de Quinn baseia-se na premissa que as populações de animais entram em equilíbrio com a disponibilidade de alimentos na região em que vivem. Se a disponibilidade aumenta, a população aumenta; na sequência, isto causa uma redução da disponibilidade de alimentos e a população diminui. Ou seja, na natureza, existe um equilíbrio dinâmico entre alimentação e crescimento populacional.

Daniel Quinn

Daniel Quinn

O ser humano quebrou este equilíbrio através da agricultura. Invadiu áreas, destruiu ecossistemas e matou outros animais que competiam pela mesma fonte de alimentos. Quanto maior se tornava a disponibilidade de alimentos, mais rapidamente cresciam as populações humanas. Consequentemente mais alimentos eram necessários, aumentavam-se as áreas para agricultura, novos ecossistemas eram destruídos, novas espécies eram extintas. Ao invés do equilíbrio dinâmico de outrora, temos hoje uma espiral ascendente de destruição causada pela agricultura em nível planetário. Tudo isto é agravado pelo consumismo que estimula o consumo de alimentos e bens de forma insustentável.

Como tornar a ação humana mais sadia para o planeta? Comecei a estudar agricultura e como, suas práticas ajudam a mudar clima da Terra e a destruir o solo, as reservas de água doce e a biodiversidade. Tentei então imaginar como as diversas vertentes da agricultura orgânica poderiam ajudar a recuperar o meio ambiente ao mesmo tempo que alimentam a população humana. Fiz um curso de agricultura biodinâmica.

Escrevi um trabalho sobre o assunto. Propus alternativas onde novas tecnologias digitais e robótica ajudariam a agricultura, evitando a aplicação massiva de fertilizantes sintéticos, pesticidas e herbicidas nas lavouras. Quando o trabalho estava pronto para ser apresentado, fui informado que minha área na empresa, inovação global, seria extinta. Após reflexões e sonhos reveladores, achei melhor sair e reativar a empresa de consultoria que a Claudia fundou e entrei de sócio em 2008. A ideia de deixar a empresa, onde trabalho há quase oito anos, já estava em maturação desde o período em que fiquei recuperando-me da fratura em casa.

Recentemente esbarrei numa frase do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard:

“A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para frente.”

Soren_Kierkegaard

Soren Kierkegaard

Na época, não entendi porque quebrei a perna. Hoje percebo que precisava parar e pensar. Minha ligação com nossa filha menor, Luiza, cresceu. Não podia mais ser levado pela vida como aconteceu nos dois ou três últimos anos. Não podia mais viver, acumulando reservas, sem ousar com a justificativa que precisava garantir a estabilidade da minha família. Preciso construir um novo caminho e continuo contando com o amor e apoio da minha família nesta construção.

Daqui a alguns anos, quero parar (de maneira menos dramática) e olhar para trás e entender o sentido das mudanças de 2017 e 2018. Depois voltarei a seguir em frente certo que tudo fez sentido nesta jornada incrível que chamamos de vida.

 

1 comentário

Arquivado em Arte, Cinema, Economia, Educação, Esporte, Filosofia, Geral, Inovação, Lazer, linkedin, Literatura, Meio Ambiente, Psicologia, Saúde

A Estranha Educação da Língua Portuguesa

Queremos que as pessoas tratem umas às outras com educação. Deste modo, é importante pedir com cordialidade, agradecer e retribuir. A língua portuguesa usa algumas expressões consagradas pelo uso diário que eu considero ruins.

porfavor_obrigado_denada

Se queremos, por exemplo, alguma informação, começamos a frase por um educado “por favor”. Como se a pessoa que pede a informação passasse a dever a retribuição deste “favor”. E isto fica muito claro, quando, após receber a informação solicitada, a pessoa diz obrigado (ou obrigada). Ou seja, ela confirma categoricamente que está obrigada a retribuir o “favor”. Ela ficou com uma dívida com a outra.

O Profeta Gentileza, no Rio de Janeiro ensinava que “em lugar de ‘muito obrigado’ devemos dizer ‘agradecido’ e ao invés de ‘por favor’ devemos usar ‘por gentileza’, porque ninguém é obrigado a nada e devemos ser gentis uns para com os outros e relacionarmo-nos por amor e não por favor”.

profeta_gentileza

José Datrino, o Profeta Gentileza.

A terceira expressão é a resposta educada para o “obrigado”, “de nada”. Neste contexto, o “de nada” soa como uma desobrigação de retribuir o “favor”.

Em Pelotas, no Rio Grande do Sul, os habitantes locais substituíram o “de nada” pelo “merece”. Assim fica a mensagem que a pessoa “merece” a “gentileza” recebida.

Se unirmos os ensinamentos do Profeta Gentileza à forma pelotense de retribuir um agradecimento, teríamos o seguinte diálogo:

– Por gentileza…
– Agradecido (ou grato)!
– Merece!

Podíamos encerrar 2017 e seguir 2018, sendo educados e exercitando esta forma de pedir e agradecer, porque como dizia o Profeta:

– Gentileza gera gentileza.

Deixe um comentário

Arquivado em Arte, Ética, Geral, História, linkedin

E se o Príncipe Hamlet Fosse um Ovo, uma Semente ou uma Pedra?

Já imaginou se o príncipe Hamlet da Dinamarca, personagem principal da magistral peça de William Shakespeare, não fosse um ser humano? E se ele fosse o ovo de uma ave, ou a semente de uma árvore ou uma simples pedra?

Para relembrar, há alguns anos escrevi um artigo sobre Hamlet, a versão de Millôr Fernandes para o famoso monólogo “Ser ou Não Ser” está apresentada na sequência.

Hamlet_Delacroix

Hamlet e Horácio no cemitério de Eugène Delacroix

Ser ou não ser – eis a questão
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra um mar de angústias –
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono – dizem – extinguir
Dores do coração e mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer – dormir –
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sonho da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Não obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mundo, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis.
Podendo ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal? Quem aguentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão porque o terror de alguma coisa após a morte –
O pais não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar os males que já temos,
A fugirmos para outro que desconhecemos?
E assim a reflexão faz todos nós covardes.
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento,
E empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas demais, saem de seu caminho,
Perdem o nome de ação.

Ovo_Sementes_Pedras

Se Hamlet fosse um ovo, poderia ser assim seu famoso monólogo:

Ser ou não ser – eis a questão
Ser mineral ou ovo?
Enquanto sou simples ovo, sou como mineral, meu relógio está parado – sem riscos,
Mas diferente dos minerais, posso me transformar!
Com ar ou sem ar – eis a questão
Sem ar, o tempo não existe,
Com ar, o cronômetro dispara…
Não serei mais ovo,
Serei uma ave!
Toda água que preciso para me transformar em ave já está dentro de mim,
Quando estiver pronta bicarei o invólucro mineral que me protege – a casca,
Colocarei minha cabeça para fora e inspirarei o ar para meus pulmões pela primeira vez.
Depois ao expirar, emitirei o primeiro som da minha vida.
Inspirarei e expirarei de forma rítmica enquanto viver.
Aprenderei a suprir meu próprio alimento.
Caçarei animalzinhos menores e fugirei dos meus predadores.
Alternarei períodos de sono com períodos de vigília.
Crescerei e procriarei.
Colocarei ovos que poderão gerar aves semelhantes a mim.
Seguirei meus instintos todos os dias.
Sentirei o mundo ao meu redor.
Até o dia em que perderei minhas forças, envelhecerei.
Me tornarei presa fácil e, um dia, expirarei pela última vez.
Terei morrido!
Meus restos voltarão para a terra e uma parte voltará a ser mineral.
Mas se alguns dos ovos que botei, ao longo da minha vida, virarem aves,
Todo o ciclo da vida recomeça e esta história poderá ser recontada.

E se fosse uma semente?

Ser ou não ser – eis a questão
Ser mineral ou planta?
Enquanto sou simples semente, sou como mineral, meu relógio está parado – sem riscos,
Mas diferente dos minerais, posso me transformar!
Com água ou sem água – eis a questão
Sem água, o tempo não existe,
Com água, o cronômetro dispara…
Não serei mais semente,
Primeiro virarei broto,
Crescerão raízes, caule e folhas,
Minhas raízes buscarão na terra a água e os minerais que preciso,
Minhas raízes chegarão até a rocha-mãe e a desintegrarei lenta e carinhosamente,
A água e os minerais absorvidos pelas raízes formarão a seiva bruta,
Que subirá, através do xilema, pelo meu caule até minhas folhas.
De dia o sol iluminará minhas folhas,
Absorverei o gás carbônico do ar
E, através do milagre da fotossíntese, liberarei oxigênio e produzirei açúcares.
Através do floema mandarei para baixo esta nova seiva nutritiva.
Crescerei um pouco a cada dia.
No final de cada ciclo, florescerei e frutificarei.
Farei sementes iguais à que eu fui um dia.
E voltarei a crescer até um dia em que pararei de crescer e morrerei.
O tempo, materializado em meu corpo, estará encerrado para mim.
Voltarei a ser mineral, voltarei para a terra…
Mas minhas sementes, se receberem água, contarão de novo esta história.

Mas tudo seria mais simples, se Hamlet fosse uma pedra:

Ser ou não ser – eis a questão,
Simples, apenas ser…
E suportar tudo – eternamente,
Ser pisoteada por homens e animais,
Despencar da encosta de uma montanha,
Ser chibatada pelas águas do mar ou de um rio,
Ou lavada gentilmente pela chuva,
Ser erodida pelos ventos,
Ou partida pela violência de um raio.
Passar os tempos no alto de uma montanha,
No fundo de um rio,
Ou nas profundezas da terra, onde as raízes de plantas roubam meus minerais.
Se eu for totalmente fragmentada, desintegrada,
Continuo a ser a mesma, porque sou apenas a soma de minhas partes.
Tenho a eternidade.

 

Deixe um comentário

Arquivado em Animais, Arte, Filosofia, Geral, linkedin, Literatura

Meu Cinquentenário

Não é todo dia que se completa 50 anos. OK, vale o mesmo para 20, 32, 45 ou qualquer outra idade. A questão é o simbolismo dos 50 ou meio século se preferirem…

Passei um ano muito mais complicado do que o normal. Pensei muito no que já fiz e, principalmente, no que tenho que fazer para frente. Isto gerou uma tensão, porque não é fácil vislumbrar o próprio futuro. Só recentemente comecei a digerir a ideia que continuar minha jornada neste caminho incrível da vida é a melhor, talvez a única, alternativa.

Fiz amizades que gostaria que fossem para toda a vida. Não converso com a maioria destas pessoas há anos. É provável que, se eu encontrar alguns destes amigos do passado, o tempo tenha nos afastado de tal forma que nossa conversa será apenas social. Em compensação, conheci novas pessoas por causa dos meus novos interesses. Muitos dos novos amigos não têm a menor semelhança com os antigos. Será que eu continuo pelo menos, parecido com o Vicente de 20, 30 ou 40 anos atrás? Sinto-me como um agricultor que progressivamente foi trocando as plantas da sua fazenda.

De volta para a jornada, hoje tenho certeza que mais importante do que chegar a algum lugar é prestar atenção no caminho. Muitas vezes, estamos tão certos de que precisamos de alguma coisa que colocamos viseiras, como fazem com os cavalos de carroças, e o mundo ao nosso redor desaparece. Quantas oportunidades são perdidas assim? Nos convencemos que estamos apaixonados por alguém, sofremos loucamente com perdas, cobiçamos uma certa posição, desejamos bens materiais cada vez mais caros. E como ficam os amores maduros, o amor pelos filhos, a alegria de aprender coisas novas, os trabalhos que nos levam à autorrealização ou aquele lugar com atmosfera mágica?

Por exemplo, eu tive diversos tipos de chefes, alguns foram maravilhosos; outros, terríveis. Hoje eu compreendo a importância do sofrimento pelo qual passei nos períodos em que tive estes chefes terríveis. Tornei-me menos orgulhoso, entendi que não podia fazer apenas o que eu queria. Com o tempo também passei a ouvir melhor os outros e refletir se não havia outros caminhos para fazer a mesma atividade. Fiquei mais flexível, menos dono da verdade. Afinal o que é a verdade?

Voltando a falar sobre a jornada, às vezes, esbarramos em alguma coisa que passa a ser uma fonte inesgotável de prazer. Pode ser um hobby, uma música, um filme ou um livro. Para matar o tempo em uma conexão de voo, entrei numa livraria e vi, em uma estante, uma coleção de livros no formato pocket da L&PM. Entre estes livros, estava Hamlet de William Shakespeare. Apanhei o livro e li a primeira página da peça e entendi o que estava escrito. A tradução do Millôr Fernandes era simples; e a leitura, fluida. Comprei e devorei o livro. Depois li outros – Otelo, MacBeth, Júlio César, Rei Lear, Henrique V… O bardo inglês virou meu companheiro fiel de viagens!

No Rei Lear, o bobo da corte, que não tinha nada de bobo, disse para o rei que ele não deveria ter ficado velho antes de ter ficado sábio. Nos últimos anos tenho estudado assuntos muito diferentes dos meus velhos estudos de engenharia – genética, agricultura, filosofia, história… Quanto mais estudo, mais eu percebo que sei quase nada. Sócrates tinha razão! Não tenho a arrogância de me comparar a ele. Assim corro o risco de cair em um dilema. Poderia pensar que é melhor não estudar mais, porque à medida que tenho contato com diferentes disciplinas, me dou conta que meu conhecimento é uma fração cada vez menor do todo. Prefiro me esforçar, sem ansiedade, para, até o dia do meu último suspiro, chegar o mais próximo possível do zero. Aprender todos os dias é uma das belezas desta jornada.

No dia em que Steve Jobs morreu, assisti ao vídeo de uma palestra para formandos da Universidade de Stanford. Jobs deu quatro conselhos valiosos. O primeiro estabelece que só é possível unir os pontos da vida quando se olha para o passado. O segundo manda seguir o seu coração. O terceiro conselho é para não desperdiçarmos nossa vida, vivendo a vida de outra pessoa. E finalmente “stay hungry, stay foolish”. Seja humilde e não sacie nunca sua fome de novos conhecimentos e experiências.

De volta para Shakespeare, qual foi a melhor frase do príncipe Hamlet da Dinamarca? Todos pensarão que é o “ser ou não ser” que ele fala sem segurar uma caveira como muitos pensam. A melhor frase da peça não é de Hamlet e sim de Polônio, um bajulador do rei Cláudio. Quando seu filho Laertes está de saída para passar uma temporada no exterior, depois de vários bons conselhos, Polônio arremata de forma inesquecível:

– E, sobretudo, isto: sê fiel a ti mesmo. Jamais serás falso pra ninguém.

Muito antes de ler esta frase, já tentava seguia este conselho…

O grande David Bowie, que voltou para as estrelas neste ano, fez sucesso com a música “Changes” há 45 anos:

Look out you rock ‘n rollers
Pretty soon you’re gonna get a little older
Time may change me
But I can’t trace time

Se substituirmos a palavra tempo por jornada, posso afirmar que minha jornada me transformou. Felizmente não tenho total controle sobre minha jornada. Esta é a beleza da vida… Esta é a maravilha de olhar para trás e ver 50 anos e desejar viver ainda mais. Que jornada!

Talvez esta seja minha cara daqui umas décadas...

Talvez esta seja minha cara daqui umas décadas…

 

4 Comentários

Arquivado em Arte, Filosofia, Literatura, Música, Psicologia

David Bowie Vive entre as Estrelas

Acordei na segunda-feira com a notícia da morte do artista inglês David Bowie. No final de semana, ouvi seu novo disco, “Blackstar” lançado no dia de seu aniversário na última sexta-feira. Vi e revi os clipes de três músicas – Blackstar, Lazarus e Sue. Li as letras das músicas. Prestei atenção no som dos instrumentos. Mostrei o clipe de Sue e um antigo de Space Oddity, onde Bowie canta a música como seu personagem Ziggy Stardust, para minha filha Júlia. Na tarde do domingo, estava impressionado com o trabalho de Bowie e escrevi na minha página do Facebook:

David Bowie Ziggy Stardust

David Bowie comemorou seu aniversário de 69 anos com o lançamento do seu novo álbum “Blackstar”. O que mais me impressionou foi Bowie ter realizado um trabalho totalmente diferente dos anteriores da sua longa e exitosa carreira. Ouvi todas as sete músicas impregnadas de jazz com lindos solos de saxofone.

O clipe da música título do álbum, além de impactante, nos traz aquela sensação que a pior escolha de nossas vidas é seguir cegamente algum profeta. Não esqueça que os falsos profetas estão por toda parte, não apenas na religião…

Este gênio me traz a inspiração de que nunca é tarde para recomeçar ou tentar algo novo.

Vida longa para este “ET” incrível, Major Tom, David Bowie!

Redescobri Bowie há quase três anos com o lançamento de seu álbum “The Next Day”. Fazia dez anos que ele não gravava um álbum com músicas inéditas. Confesso que comecei a ouvir as músicas com baixa expectativa, porque muitos artistas, nestes retornos, criam obras muito abaixo de seus melhores trabalhos. Cada música que eu ouvia, eu gostava mais e mais. “The Next Day” é um grande disco de rock! Ouvi algumas vezes o disco e depois comecei a ouvir novamente as músicas conhecidas das décadas de 70 e 80. Quando fiquei sabendo do lançamento de “Blackstar”, passei a contar os dias. Enfim o grande dia chegou, e seu último trabalho, como eu registrei na minha página do Facebook, é impressionante.

Meu abatimento com a morte de Bowie talvez seja alimentado pela certeza de que ele não vai se reinventar novamente. Não verei algo tão original como este último trabalho ou outros anteriores da sua carreira.

Minha tristeza também pode ser alimentada por relembrar que o tempo é implacável e, mais cedo ou mais tarde, as pessoas que gostamos ou admiramos ficarão distantes de nós ou desaparecerão.

O jovem David Bowie, em 1971, aos 24 anos de idade, compôs “Changes”. No final da música ele faz o seguinte alerta aos roqueiros:

Ch-ch-ch-ch-Changes
(Turn and face the strain)
Ch-ch-Changes
Oh, look out you rock ‘n rollers
Ch-ch-ch-ch-Changes
(Turn and face the strain)
Ch-ch-Changes
Pretty soon you’re gonna get a little older
Time may change me
But I can’t trace time
I said that time may change me
But I can’t trace time

Minha dor é saber que este alerta não vale apenas para os roqueiros…

Prefiro pensar David Bowie voltou a encarnar o Major Tom de “Space Oddity” e está cruzando o espaço em busca de inspiração para criar novos personagens e novas músicas geniais.

1 comentário

Arquivado em Arte, Geral, linkedin, Música

Resolver Caminhando

Meu filho Leonardo nos visitou na segunda quinzena de julho e voltou para o Rio Grande do Sul no primeiro domingo de agosto. Não tivemos muito tempo juntos nestas duas semanas, porque eu não consegui uma folga no trabalho e ainda fiz uma viagem não programada.

No último sábado juntos, recebemos em nossa casa a visita um casal de amigos. A noite foi muito agradável, jantamos, bebemos vinho, conversamos e nos lembramos de várias histórias (as velhas histórias de sempre). Por volta da meia-noite, eles se despediram e retornaram para São Paulo.

O Léo apareceu na sala com um moletom em cada mão e deu a ordem:

– Escolhe um, veste e vamos caminhar.

Vestimos os moletons e fomos caminhar na pista em torno do lago e da área de lazer do condomínio. A noite estava fria e conversamos sem parar sobre os mais variados assuntos por uma hora, enquanto caminhávamos. Pedi então para terminarmos nossa conversa no aconchego da sala da casa. Afinal eu já estava congelando…

Caminhamos de volta para casa, e conversamos até as 3 horas da madrugada. Excelente bate-papo!

Como coincidências não existem, na viagem que eu fiz na semana anterior li uma revista Newsweek, onde havia uma seção chamada “Newswalks”, na qual a revista convida pensadores para dar caminhadas por locais escolhidos pelos próprios convidados, enquanto refletem sobre suas vidas, inspirações e ambições. A introdução desta seção está apresentada abaixo:

Em seus “Walking Essays” de 1912, um jovem e brilhante escritor inglês, A. H. Sidgwick, propôs que a caminhada “estabelece uma base de respeito mútuo mais rapidamente e com mais segurança” do que qualquer outra atividade. O ambiente de uma caminhada foi o mais acertado: “familiar suficiente para criar uma sensação de facilidade, e ainda estranho o suficiente para jogar os caminhantes de volta sobre si mesmos com o instinto de solidariedade humana”.

Quando Leigh Fermor Paddy e Bruce Chatwin cruzaram, conversando através da paisagem do Peloponeso, eles estavam encenando solvitur ambulando de Diógenes – resolver caminhando.

Achei a ideia ótima. Muitos filósofos e escritores defenderam a caminhada como fonte de inspiração para seus pensamentos, como Nietzsche e Rousseau. As caminhadas do poeta gaúcho Mário Quintana pela Rua da Praia em Porto Alegre devem ter inspirado inúmeros poemas. Talvez “O Mapa”, que reproduzo abaixo, seja fruto dessas caminhadas inspiradas.

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso…

Poeta Mário Quintana caminhando na Rua da Praia em Porto Alegre.

Poeta Mário Quintana caminhando na Rua da Praia em Porto Alegre.

Concordo que qualquer conversa flui melhor durante uma caminhada tranquila, sem pressa. Também percebo que, quando caminho solitariamente, as ideias começam a brotar de forma diferente do que entre quatro paredes, sob pressão. Mas por que as pessoas não aproveitam mais um ato tão simples como caminhar para solucionar seus problemas (a tradução literal do solvitur ambulando)?

A principal dificuldade para aproveitar o ato de caminhar é a necessidade de se desplugar de todos os estímulos que recebemos – ligações telefônicas, mensagens do WhatsApp ou de e-mail, atualizações do Facebook ou Twitter, navegação em sites da Internet… Tudo isto ocupa a cabeça de uma forma que fica impossível manter uma comunicação empática com seu colega de caminhada ou pensar na própria vida, se estiver solitário.

texting1

2 Comentários

Arquivado em Arte, Filosofia, Gestão de Pessoas, Literatura, Psicologia, Saúde, Tecnologia