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Post 300 – A Resistência contra o Colapso da Blogosfera

E não é que este blog chegou ao tricentésimo post?! Em tempos em que muita gente torce o nariz até para vídeos com mais de cinco minutos no YouTube, como estimular a leitura de textos com mil palavras?

Com a ascensão da inteligência artificial, respostas instantâneas dispensam visitas a sites ou blogs. Ainda assim, continuo resistindo. Escrever, para mim, é um exercício vital — de reflexão, expressão e partilha.

Por isso, neste marco simbólico, não pude deixar de lembrar dos trezentos de Esparta, que resistiram ao poderoso exército persa no desfiladeiro de Termópilas. No início do ano, li o romance histórico Portões de Fogo, de Steven Pressfield, e confesso: identifiquei-me com Dienekes, o guerreiro que acreditava que o verdadeiro campo de batalha era interior. Quem sabe, em breve, escrevo sobre isso. Por ora, sigo firme — com minha lança, meu escudo e meu notebook.

Nestes últimos cem posts, diversidade não faltou…

O post nº 202 tratou do reuso de água durante a crise hídrica de São Paulo (2014–2015). Também publiquei uma apresentação didática para crianças sobre poluição hídrica, com roteiro e explicações de slides.

O tema da sustentabilidade apareceu em vários momentos. Comecei com uma mesa-redonda durante uma feira ambiental na Alemanha — Por um Mundo mais Sadio e Justo: o Lixo e a Consciência. Ali conheci o conceito de economia circular. Anos depois, fiz um curso do MIT sobre este tema e publiquei seis artigos baseados nas reflexões do curso. A pergunta segue: ainda temos tempo para discutir o aquecimento global?

As proteínas vegetais entraram na pauta com uma carta aberta à Revista dos Vegetarianos e em uma conversa que tive com Pat Brown, fundador da Impossible Foods. Também compartilhei como preparar proteína texturizada de soja e um saborosíssimo estrogonofe vegano.

Criei uma série com quatro textos que conectam físico-química e comportamento humano. Expliquei, de forma descomplicada, conceitos como a Primeira Lei da Termodinâmica, reações químicas, energia de ativação, equilíbrio químico e soluções tampão. Afinal, tem gente endotérmica e exotérmica!

Lá em 2016, escrevi sobre os algoritmos das redes sociais e a formação de bolhas digitais. Em 2017, manifestei preocupação com a ascensão do nacionalismo e as ameaças à democracia. Em 2020, após ler Engenheiros do Caos, de Giuliano Da Empoli, algumas peças se encaixaram. A busca pelos “Arquitetos da Ordem” continua.

A polarização daquele período levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff e, pouco depois, à ascensão do Bolsonarismo. Vários posts trataram do governo Bolsonaro, inclusive sobre o início da pandemia — O Triste Clown e seu All-In.

Comemorei meu cinquentenário com uma série de reflexões sobre a vida. Agora, rumo aos sessenta, sigo na luta…

Em 2017, fraturei a perna jogando futebol com minhas filhas no quintal. No ano seguinte, contei o que aconteceu depois. E em 2024, contei o surgimento do “Vicente maratonista“, uma consequência surpreendente do acidente de 2017.

Em um momento mais leve, nasceu a “Trilogia das Sílfides”: histórias fantasiosas sobre jabuticabas, beija-flores e o mormacento verão de Porto Alegre.

Li As Seis Lições, de Ludwig Von Mises, e escrevi três artigos sobre convergências e divergências. O mundo mudou desde os anos 1950, mas muitos ainda defendem um liberalismo sem freios. Também sugiro ler Autofagia Liberal e Umbigocentrismo e refletir sobre as Três Formas Modernas de Escravidão.

Parece que muita gente cristalizou posições. Esquecem que polaridade e ritmo são essenciais para uma vida saudável.

2021 ainda era pandêmico… Escrevi sobre a convivência familiar em tempos de quarentena. Em agosto, perdi minha mãe, Dona Ladi, e fiz uma homenagem com Descartes, Shakespeare e Hilel, o Ancião como testemunhas.

Li A Revolta de Atlas, de Ayn Rand. Depois de devorar suas 1.200 páginas, escrevi sobre a autora, Francisco D’Anconia, Ragnar Danneskjöld e Ellis Wyatt. Mas esse capítulo ainda não terminou, porque — afinal — quem é John Galt?

O Papa Francisco, que infelizmente nos deixou, foi citado em um post sobre polarização política. Parece que todos precisam ser rotulados em alguma caixinha.

O Islamismo foi tema de outros textos. Como escrevi certa vez: Para obter a paz não basta uma vitória militar sobre o Estado Islâmico — ou sobre o Hamas.

Este blog passou por temas como eutanásia, maioridade penal, empatia, cancelamento digital, David Bowie, Marie Curie, o filme Fragmentado e o último Matrix.

Fiz uma fusão entre Coringa, Osho e Krishnamurti para falar dos riscos de seguir líderes cegamente. Este tema volta no que considero meu melhor artigo dos últimos cem: I’m Not Dog No – A Servidão Voluntária.

Quando deixei o conforto da CLT, escrevi As Gaiolas e o Corvo. Porque, sim, tanto a falta, quanto o excesso de propósito podem nos devastar.

Não sou Martha Medeiros, nem Fabrício Carpinejar, mas escrevo sobre relacionamentos porque a vida me provoca. Por isso, surgiram textos como O Amor Constrói, a Paixão e o Ódio Arrasam Quarteirões; Dores, Crescimento Pessoal e Cicatrizes; Relacionamentos São como Pudins; e, parafraseando Fernando Pessoa: Correr é Preciso, Viver Não é Preciso.

Chegarei ao post 400? Só o tempo dirá…

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A Revolta de Atlas – Ellis Wyatt, Riqueza, Criação de Valor, Mérito e a Criação de uma Sociedade Justa – Um Ideal Utópico?

Este é o quarto artigo sobre o livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Hoje o assunto é a fala de Ellis Wyatt sobre riqueza e criação de valor, durante seu encontro com Dagny Taggart em Galt’s Gulch.

Ellis Wyatt é o proprietário da Wyatt Oil, um personagem secundário com merecido destaque no livro. Ele revitalizou quase sozinho a economia do Colorado ao inventar um método inovador para extrair petróleo de poços antes considerados esgotados. Contudo, quando novas legislações e decretos governamentais impedem a operação livre de seu empreendimento, ele ateia fogo em seus poços petrolíferos e deixa apenas uma nota: “Estou deixando como encontrei. Assuma o controle. É seu.” Um dos poços, que desafiou todas as tentativas de apagar as chamas, passa a ser conhecido como a “Tocha de Wyatt”.

Em outra passagem do livro, ele diz: “O que é riqueza? É a criação de valor. O que você valoriza é o que você considera riqueza.”

Ellis Wyatt representa o arquétipo do empreendedor produtivo que, com esforço, inteligência e inovação, transforma o que parece ser um recurso inútil — neste caso, um campo de petróleo esgotado — em riqueza tangível. Wyatt é a personificação dos ideais objetivistas de Rand, que celebra o mérito individual, a liberdade de mercado e a rejeição absoluta da interferência estatal, especialmente na forma de redistribuição de riqueza.

Ellis Wyatt e a “Tocha de Wyatt”

Ao longo da narrativa, Wyatt defende que a riqueza deve ser o resultado direto do esforço produtivo e que qualquer tentativa de a redistribuir constitui uma forma de coerção imoral. Sua frase emblemática, “Se meu óleo pode ser produzido com menor esforço, peço menos àqueles com quem eu troco pelas coisas de que necessito”, contém o princípio da troca justa: quanto menos esforço envolvido na produção, menor deve ser o preço cobrado. Isso parece, à primeira vista, uma visão economicamente virtuosa e moralmente correta. No entanto, ao trazer essa visão para a realidade dos mercados atuais, permeados por oligopólios, lobbies poderosos e assimetria de informações, surgem questões críticas sobre o real funcionamento desse ideal. Além disso, ao rejeitar totalmente a redistribuição de riqueza, Wyatt pode promover a formação de uma sociedade marcada por desigualdade extrema e falta de oportunidades, algo que muitas vezes resulta em instabilidade social.

Oligopólios e a Concentração de Mercado

Na visão de Rand, o mercado é um campo de competição livre e justa, onde os mais capazes prosperam e os ineficientes são naturalmente eliminados. Todavia, essa visão ignora a realidade de muitos setores econômicos, que atualmente são dominados por oligopólios — estruturas de mercado em que poucas empresas controlam a maioria da oferta. Essas grandes corporações têm um poder de mercado substancial, o que lhes permite influenciar preços e impor barreiras à entrada de novos concorrentes.

No cenário de oligopólios, a competitividade com base no mérito, tão defendida por Wyatt, é comprometida. Grandes empresas podem controlar preços, muitas vezes mantendo-os artificialmente altos, independentemente de reduções nos custos de produção. A lógica de Wyatt, onde menores custos de produção resultariam em menores preços, esbarra na prática comum de oligopolistas de priorizar lucros em detrimento de eficiência. Isso cria um ambiente onde a inovação pode ser desestimulada, pois as empresas estabelecidas podem se concentrar em preservar sua participação de mercado, ao invés de melhorar continuamente seus produtos ou serviços.

Além disso, essas corporações utilizam barreiras econômicas e regulatórias para impedir que novos concorrentes entrem no mercado, o que impede a meritocracia que Wyatt valoriza. Assim, em um ambiente dominado por grandes players que ditam as regras, o princípio de troca justa e livre, no qual Wyatt acredita, torna-se utópico, visto que os mecanismos naturais de competição são comprometidos pela concentração de poder econômico.

Lobbies e a Influência Política

Outro obstáculo significativo ao ideal de Wyatt é a existência de lobbies poderosos que influenciam governos e políticas públicas em favor de grandes corporações. Empresas podem utilizar sua influência para moldar o ambiente regulatório de maneira a garantir vantagens competitivas que não têm base na eficiência ou no mérito, mas sim em relações políticas. Isso desvirtua a livre concorrência e reforça a desigualdade de oportunidades, uma vez que os pequenos concorrentes, sem acesso a esse tipo de poder, acabam marginalizados.

A captura regulatória — quando agências governamentais responsáveis por regular setores específicos da economia são dominadas pelos interesses das empresas que deveriam supervisionar — também compromete a ideia de um mercado onde o mérito prevalece. As empresas que podem influenciar políticas e regulações conseguem criar proteções artificiais para seus negócios, perpetuando sua posição dominante. Isso vai diretamente contra a ideia de que o mercado deve ser o único regulador da riqueza, recompensando apenas os mais produtivos.

Além disso, essas grandes corporações, com o apoio de políticas favoráveis, muitas vezes recebem subsídios ou benefícios fiscais que desincentivam a inovação e perpetuam a concentração de riqueza. Em um cenário como esse, a ideia de que a riqueza é proporcional ao mérito e ao esforço torna-se distorcida, uma vez que o sucesso pode depender mais da influência política do que da produtividade real.

Assimetria de Informações e a Justiça nas Trocas

A visão de Wyatt e Rand pressupõe que as trocas econômicas ocorrem de forma justa e transparente, com ambas as partes possuindo informações iguais e fazendo escolhas racionais. No entanto, no mundo real, a assimetria de informações é uma característica inerente a muitos mercados. Os produtores, especialmente grandes corporações, possuem muito mais informações sobre seus produtos, processos de produção e condições de mercado do que os consumidores. Isso cria uma vantagem desleal que mina a noção de troca justa.

Por exemplo, em setores complexos como o de serviços financeiros ou de tecnologia, os consumidores muitas vezes não têm condições de avaliar completamente o valor ou os riscos de um produto. Essa falta de informação cria uma relação desigual entre as partes, na qual os vendedores podem explorar essa desvantagem para maximizar seus lucros. A ideia de Wyatt de que a riqueza deve refletir o esforço produtivo perde força, pois os consumidores não têm como avaliar de maneira adequada o valor do que estão comprando.

Além disso, quando a complexidade dos produtos aumenta, como no caso de serviços de saúde ou seguros, os consumidores ficam ainda mais vulneráveis a práticas exploratórias, o que compromete o ideal de Rand de que as trocas no mercado são sempre justas e baseadas no mérito.

Rejeição da Redistribuição de Riqueza e a Criação de uma Classe Marginalizada

Uma das questões mais críticas na filosofia de Ellis Wyatt é a rejeição completa da redistribuição de riqueza. Segundo ele e Rand, a riqueza deve ser o resultado direto do mérito e do esforço individual, e qualquer tentativa de redistribuí-la seria uma violação da liberdade do produtor. No entanto, a consequência prática dessa postura pode ser a formação de um contingente populacional empobrecido, sem acesso à educação, saúde e sem perspectivas de ascensão social.

Wyatt e Rand não reconhecem que, sem algum tipo de redistribuição, a desigualdade extrema pode se tornar insustentável. Embora a eficiência e a produtividade sejam virtudes inquestionáveis, elas não necessariamente atendem às necessidades sociais de uma grande parte da população, especialmente daqueles que, por diversos motivos, não têm acesso às mesmas oportunidades. Sem mecanismos de redistribuição, como educação pública, programas de assistência social e redes de proteção contra o desemprego, a pobreza pode se tornar hereditária, criando gerações inteiras sem perspectivas de melhorar suas condições de vida.

A falta de redistribuição também pode exacerbar o problema do desemprego estrutural. Com o avanço da tecnologia e da automação, muitos trabalhadores, especialmente os menos qualificados, podem ser simplesmente excluídos do mercado de trabalho, sem qualquer rede de segurança. Isso pode resultar na criação de uma classe marginalizada, sem educação, sem emprego e sem futuro.

Falta de Educação e Saúde: Barreiras à Mobilidade Social

Wyatt acredita que o mercado, por si só, pode proporcionar a ascensão dos mais talentosos e produtivos. No entanto, sem acesso universal à educação e à saúde, as pessoas nascidas em condições de pobreza terão grandes dificuldades para competir em um mercado de meritocracia pura. A privatização completa desses serviços, algo que Wyatt e Rand parecem sugerir, tornaria a educação e a saúde privilégios dos ricos, perpetuando as desigualdades existentes.

Sem educação de qualidade, uma parte significativa da população não teria as qualificações necessárias para participar ativamente do mercado e, portanto, ficaria relegada a empregos de baixa remuneração ou ao desemprego. Isso cria uma divisão social insustentável, onde as oportunidades estão concentradas nas mãos de poucos, enquanto a maioria permanece marginalizada.

Riscos à Estabilidade Social

A ausência de mecanismos de redistribuição, ao lado de uma crescente desigualdade, pode levar a uma instabilidade social significativa. Grandes desigualdades de renda e riqueza frequentemente resultam em tensões sociais, protestos e, em casos mais extremos, violência. As pessoas marginalizadas pela estrutura econômica tenderão a se ressentir da concentração de poder e riqueza nas mãos de uma pequena elite produtiva, o que pode gerar revoltas e conflitos.

Além disso, a falta de uma rede de segurança social pode aumentar os níveis de criminalidade e criar um ambiente de insegurança generalizada. À medida que mais pessoas caem na pobreza extrema, sem acesso a bens essenciais como educação e saúde, a frustração social aumenta, comprometendo a estabilidade de qualquer sistema que não ofereça soluções coletivas para esses problemas.

Conclusão

A visão de Ellis Wyatt, e por extensão de sua criadora, Ayn Rand, oferece um ideal de meritocracia e trocas justas, onde a riqueza é resultado do esforço individual e da produtividade. No entanto, ao ser aplicada ao mundo real, essa visão encontra obstáculos significativos, como a existência de oligopólios, lobbies poderosos, assimetrias de informações e desigualdades estruturais. Além disso, a rejeição completa da redistribuição de riqueza pode criar uma sociedade profundamente desigual, com um contingente populacional empobrecido e sem perspectivas de mobilidade social.

Embora o ideal de Wyatt celebre o mérito e a liberdade individual, a ausência de mecanismos de redistribuição pode levar a um ciclo de pobreza e desigualdade que não apenas prejudica os indivíduos marginalizados, mas também compromete a estabilidade social como um todo. Assim, a riqueza, quando acumulada sem a consideração de fatores coletivos, pode se tornar um catalisador de desequilíbrios sociais e tensões que minam a própria estrutura da sociedade que Wyatt deseja proteger.

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A Revolta de Atlas – Ragnar Dannesjöld, Sonegação e Meritocracia

Chegamos ao terceiro artigo sobre o livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Hoje o assunto será o discurso do “pirata” Ragnar Danneskjöld sobre impostos e meritocracia.

Ragnar Danneskjöld atua como um pirata que ataca os navios que transportam doações dos governos dos países ricos para países pobres. Segundo ele, estes bens são roubados dos produtores ricos pelos governos corruptos, através dos impostos. O resultado das pilhagens é vendido no mercado negro da Europa pelo maior preço possível e o ouro, oriundo destas operações, é depositado em contas secretas em nome de empresários, com base no imposto de renda pago por eles.

O navio do “pirata” não ataca embarcações privadas ou Marinha de Guerra dos países. Ele segue a lógica ultraliberal que apenas a segurança, interna e externa, é função do Estado e nada mais.

Danneskjöld odeia a figura Robin Hood que, segundo ele, é o símbolo da moralidade invertida que domina o mundo. Transcrevo o trecho abaixo, no qual Ayn Rand explicita, através de seu personagem, a sua forma de ver o mundo, usando a figura de Robin Hood como contraexemplo do seu pensamento.

“Diz-se que ele lutava contra governantes saqueadores e restituía às vítimas o que lhes fora saqueado, mas não é esse o significado da lenda que se criou. Ele é lembrado não como um defensor da propriedade, e sim como um defensor da necessidade; não como um defensor dos roubados, e sim como protetor dos pobres. Ele é tido como o primeiro homem que assumiu ares de virtude por fazer caridade com dinheiro que não era seu, por distribuir bens que não produzira, por fazer com que terceiros pagassem pelo luxo de sua piedade. Ele é o homem que se tornou símbolo da ideia de que a necessidade, não a realização, é a fonte dos direitos; que não temos que produzir, mas apenas de querer; que o que é merecido não cabe a nós, e sim o imerecido. Ele se tornou uma justificativa para todo medíocre que, incapaz de ganhar seu próprio sustento, exige o poder de despojar de suas propriedades os que são superiores a ele, proclamando sua intenção de dedicar a vida a seus inferiores roubando seus superiores.”

Ou seja, para Ayn Rand, os verdadeiros heróis são os ricos produtivos, porque criam valor para a sociedade com sua competência e seu trabalho. Os pobres, que não ganham o suficiente para seu sustento, são incompetentes e parasitas, porque se aproveitam da riqueza “roubada” dos ricos para sobreviver. Esta visão de mundo, nua e crua, é a defesa extrema da meritocracia social, na qual condena-se qualquer forma de redistribuição de renda ou altruísmo.

Eu concordo que as pessoas devam ser recompensadas de acordo com o resultado de suas atividades produtivas e com a capacidade de gerarem valor. Por outro lado, não podemos desprezar que existe uma parcela pequena da população que já larga muito à frente da maioria em termos de educação. Imagine agora um país que siga 100% a ideologia de Ayn Rand, capitalismo liberal laissez-faire. Neste lugar, o Estado não recolheria mais a maior parte dos impostos pagos pelos produtores ricos e os pobres teriam que custear, além de suas despesas básicas (alimentação, habitação, transporte e vestuário), saúde e educação. Como qualquer forma de altruísmo é condenável, quem não tivesse meios de subsistência estaria entregue à própria sorte. E se hoje já é muito difícil a ascensão social dos mais pobres, neste país seria praticamente impossível.

O curioso é que a autora parece desconhecer que uma ação social iniciada no governo do Presidente Roosevelt em 1944, o programa G.I. Bill, teve um enorme impacto econômico positivo nos Estados Unidos. O período de validade do programa, 1944-1956, é quase o mesmo em que Ayn Rand escreve “A Revolta de Atlas”, 1946-1956.

Presidente Roosevelt assinou a Lei do Programa G.I. Bill em 1944.

O programa G.I. Bill foi uma iniciativa do governo norte-americano para oferecer benefícios educacionais aos veteranos que serviram nas forças armadas durante a Segunda Guerra Mundial. Milhões de soldados americanos cursaram o ensino superior, técnico ou profissional, com custos subsidiados pelo governo. Este programa G.I. Bill foi considerado um dos maiores investimentos públicos em capital humano da história, e teve um impacto significativo na economia, na sociedade e na cultura dos Estados Unidos no pós-guerra. Infelizmente devido às leis de segregação racial vigentes nos estados sulistas norte-americanos, os negros não tiveram as mesmas benesses dos brancos. Assim a distância econômica e social entre brancos e negros aumentou naquele país.

Além de tentar destruir o mito de Robin Hood, Danneskjöld também defendia a sonegação de impostos. Por todos os motivos já expostos, ele considerava os impostos uma forma de roubo praticada pelo Estado. Ele resume sua missão no primeiro encontro com o industrial Hank Rearden assim:

“Bem, eu sou o homem que rouba dos pobres e dá para os ricos, ou, mais exatamente, que rouba dos pobres ladrões e devolve aos ricos produtivos.”

Se Danneskjöld e Ayn Rand conhecessem o sistema tributário brasileiro, talvez ficassem felizes ao descobrir que os mais pobres pagam mais impostos do que os mais ricos. O peso dos impostos sobre bens e serviços no Brasil é bem mais alto do que nos países da OCDE (42% do total arrecadado contra média de 32% em 2020), onerando os mais pobres. Mesmo no imposto de renda, os super-ricos pagam alíquota média menor do que os brasileiros da classe média, porque dividendos não são tributados no Brasil. Veja o gráfico abaixo do Portal G1 com dados de 2020 sobre alíquotas médias de imposto de renda por faixa de rendimento.

Diferentemente do discurso sobre dinheiro de Francisco D’Anconia, no qual eu concordo com a essência do seu conteúdo, considero o discurso de Ragnar Danneskjöld absurdo. Como procurei demonstrar neste artigo, mesmo os Estados Unidos na década de 1950 não seguiam este capitalismo ultraliberal. Se aplicássemos os postulados de Danneskjöld, não seria imoral juntar uma fortuna nababesca, enquanto milhares morrem de fome e doenças na mesma cidade.

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A Revolta de Atlas – Francisco D’Anconia e o Dinheiro

Como anunciei no artigo inaugural sobre a “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand, eu faria novas postagens sobre este livro. Resolvi iniciar por uma das minhas passagens favoritas, o discurso de Francisco D’Anconia sobre o dinheiro.

Francisco D’Anconia é um dos personagens principais do livro. Ele é o herdeiro de uma das maiores fortunas do mundo e é um empresário bem-sucedido que administra a empresa de mineração de cobre de sua família. Durante a festa de aniversário de casamento de outro personagem, o industrial Hank Rearden, ao ouvir alguns convidados falando mal do dinheiro, D’Anconia faz um discurso a favor.

Antes de entrar no discurso em si, gostaria de comentar as três funções do dinheiro: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. O dinheiro é usado como meio de troca para facilitar a compra e venda entre pessoas e empresas. Nos primórdios, o comércio era realizado através de escambo. Imagina como algumas transações eram complexas… O dinheiro é usado também como reserva de valor, permitindo que as pessoas e empresas economizem e guardem valor ao longo do tempo. Com esta reserva, pode-se realizar investimentos, como adquirir bens e serviços de valor mais elevado. O dinheiro também é usado como unidade de conta para facilitar a comparação de preços e valores. Assim, pode-se calcular o custo total de um produto para determinar seu preço mínimo de venda ou saber qual o custo de vida mensal de uma família.

D’Anconia afirma que o dinheiro é o meio de troca universal que permite que as pessoas possam realizar suas trocas de bens e serviços de maneira mais eficiente e produtiva. Esta primeira função do dinheiro é apresentada em detalhes e como a oferta e procura determinam os valores dos bens materiais e serviços. Como o dinheiro vale o mesmo na mão de cada indivíduo, sem intervenções dos governos, ele torna-se um símbolo da liberdade humana. Todas as transações são guiadas pelo livre-arbítrio. Deste modo, o dinheiro é apenas um instrumento, não é o mal em si mesmo. O verdadeiro problema são a forma e o propósito como as pessoas utilizam o dinheiro para obter poder e controle sobre outras pessoas.

D’Anconia enfatiza que a única forma de alcançar a verdadeira liberdade e prosperidade é através da produção e do comércio honestos, baseados em valores objetivos e não em manipulações políticas. Ele conclui seu discurso afirmando que deseja que as pessoas percebam que o dinheiro é um fator essencial na conquista da felicidade e da realização pessoal.

Concordo com esta linha de ver o dinheiro apenas como um meio ou instrumento. Realmente existe influência de algumas religiões e linhas de pensamento de esquerda que consideram o dinheiro como algo sujo ou impuro. Esta crença prejudica sensivelmente as vidas de muitas pessoas que, muitas vezes, se sentem culpadas ao receber dinheiro como justa contrapartida à venda de um produto ou serviço. Sentem culpa pela própria prosperidade.

O dinheiro é o sangue do tecido social. Ele é necessário para a economia funcionar, permitindo que as pessoas adquiram bens e serviços, invistam em empresas e poupem para o futuro. Na ausência de dinheiro, as relações sociais seriam significativamente afetadas, com impactos negativos na qualidade de vida das pessoas. Por isso, é fundamental garantir acesso igualitário ao dinheiro e promover sua circulação saudável na sociedade.

Por outro lado, Ayn Rand, através de seu personagem, tem uma visão utópica, pois não dá o devido peso às imperfeições do mercado com seus cartéis, lobbies e assimetria de informações, para a prática de produção e comércio honestos. Sem dúvida, estas imperfeições desequilibram a balança para o lado dos que possuem poder econômico ou político.

A seguir transcrevo uma parte muito interessante do discurso de D’Anconia.

“O dinheiro se baseia no axioma de que todo homem é proprietário de sua mente e de seu trabalho. O dinheiro não permite que nenhum poder prescreva o valor do seu trabalho, senão a escolha voluntária do homem que está disposto a trocar com você o valor do trabalho dele. O dinheiro permite que você obtenha em troca dos seus produtos e do seu trabalho aquilo que esses produtos e esse trabalho valem para os homens que os adquirem, nada mais que isso. O dinheiro só permite os negócios em que há benefício mútuo segundo o juízo das partes voluntárias. O dinheiro exige o reconhecimento de que os homens precisam trabalhar em benefício próprio, não em detrimento de si próprios. Para lucrar, não para perder. De que os homens não são bestas de carga, que não nascem para arcar com o ônus da miséria. De que lhes é preciso oferecer valores, não dores. De que o vínculo comum entre os homens não é a troca de sofrimentos, mas a troca de bens.”

Esta passagem defende o capitalismo consciente, onde se busca um equilíbrio entre as relações, um ganha-ganha, no qual o lado mais forte não explora ou deprecia o trabalho do lado mais fraco. O Liberalismo de Ayn Rand possui um fundo moral, onde a riqueza é obtida de forma ética, sem exploração dos funcionários das empresas.

Pilares do Capitalismo Consciente

“A riqueza é produto da capacidade humana de pensar.”

No tempo de Ayn Rand, o capitalismo financeiro não era tão importante. Ela não aprovaria o dinheiro oriundo de mera especulação financeira. A riqueza deveria ser a expressão da capacidade humana de pensar e agir na agricultura, na indústria ou nos serviços.

Neste contexto, “só o homem que não precisa da fortuna herdada merece herdá-la – aquele que faria sua fortuna de qualquer modo, mesmo sem herança”. Novamente Ayn Rand liga o dinheiro ao devido merecimento que é um fator importante para a felicidade e realização pessoal.

Destaco a parte final da música Money do Pink Floyd:

Money, it’s a crime
Share it fairly but don’t take a slice of my pie.
Money, so they say
Is the root of all evil today
But if you ask for a raise it’s no surprise that they’re
Giving none away

Acredito que o dinheiro em si não é a “raiz de todo o mal hoje”, mas sim a ambição cega por dinheiro e poder.

Nas próximas semanas, comentarei os discursos de outros personagens do livro “A Revolta de Atlas”.

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Introduzindo “A Revolta de Atlas” de Ayn Rand e Por Que os Conservadores Brasileiros Não Exaltam Sua Autora?

Enfim terminei a leitura das mais de 1.200 páginas do livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Este livro foi a última obra de ficção desta autora que após sua publicação passou a escrever livros apenas para divulgar sua própria filosofia, o Objetivismo. Ela iniciou a redação em 1946 e concluiu dez anos depois. Conta-se que ela demorou dois anos somente para finalizar o discurso de John Galt que apresenta as bases do Objetivismo. A primeira edição foi publicada nos Estados Unidos em outubro de 1957.

Este é o primeiro artigo de uma nova série que publicarei no blog. Diferentemente da série sobre o livro “As Seis Lições” de Ludwig Von Mises, iniciarei com algumas considerações sobre Ayn Rand e as razões que a impedem de ser popular entre os conservadores brasileiros.

Ayn Rand nasceu na Rússia em 1905, antes da Revolução Bolchevique, cresceu sob o regime comunista soviético, viajou ainda jovem para visitar parentes nos Estados Unidos e nunca mais voltou para seu país de origem. Sua filosofia privilegia o individualismo, o egoísmo e a razão em detrimento dos sentimentos. Ela considera o altruísmo definitivamente um mal.

Ayn Rand

Deste modo, ela tornou-se um ícone do Liberalismo clássico, defendendo o Estado mínimo que teria como função somente e tão somente a segurança (interna e externa do país) e a Justiça. E tudo mais seria realizado pela iniciativa privada. Ou seja, não é função do Estado cuidar, por exemplo, de educação, saúde, assistência social, saneamento básico e infraestrutura básica. O sucesso dos indivíduos, obtido através de um competente esforço egoísta, traria prosperidade para toda sociedade. Os Estados Unidos seriam o melhor exemplo deste modelo. Como podemos perceber suas ideias estão muito bem alinhadas aos pensamentos do economista liberal austríaco Ludwig Von Mises.

Rand escreveu seu livro para defender seus pontos de vista e o Objetivismo. Na reta final do livro, há o longo discurso de 70 páginas do personagem principal, John Galt, sobre o racionalismo, egoísmo e toda a filosofia. Além deste extenso texto, em outras passagens personagens abordam inúmeras questões sensíveis: Francisco d’Anconia fala sobre o dinheiro; o “pirata” Ragnar Danneskjöld define-se como um anti-Robin Hood e defende a meritocracia; Ellis Wyatt defende a riqueza. Analisarei estes discursos nos próximos artigos.

O livro trata da reação de empresários, cientistas e artistas que desaparecem em um ambiente de intervenção estatal crescente nos Estados Unidos do futuro. Está divido em três partes com dez capítulos cada. Em alguns capítulos a história prende e a leitura é fluida; em outras, a leitura é maçante. Existem repetições exaustivas de algumas situações, como se a autora quisesse gravar em nossas mentes sua concepção de mundo. Seguramente poderia haver um bom enxugamento no conteúdo do livro.

Pode-se afirmar que o livro possui quatro personagens principais: três masculinas – John Galt, Francisco d’Anconia e Hank Rearden) – e uma feminina, Dagny Taggart. Dagny era a vice-presidente de operações (hoje chamaríamos COO) da ferrovia Taggart Transcontinental. Ela era uma mulher independente, competente, ética e determinada. Incrivelmente Dagny teve relacionamentos amorosos com os três personagens principais masculinos. Desconfio que Dagny seja alter ego de Ayn Rand…

Em meados da década de 1950, Rand teve um caso amoroso com o psicanalista Nathaniel Branden, vinte e cinco anos mais jovem do que ela. Segundo algumas informações, seus cônjuges tinham conhecimento do fato. Ou seja, Ayn Rand não se encaixa no padrão princesa que se casa com o príncipe encantado para formar uma “família tradicional”.

Ayn Rand e seu marido no casamento de Nathaniel Branden (Fonte: The New York Times)

Além disso, ela era ateia, considerava que havia apenas uma vida. Deste modo, considerava que havia apenas esta vida para o homem buscar seu “maior propósito moral”: alcançar sua própria felicidade.

Também era contra a proibição do aborto por restringir a opção das mulheres e a busca pela felicidade. O embrião não teria direitos inicialmente, o direito à vida só iniciaria a partir do nascimento. E era favorável a descriminalização das drogas por defender o direito de escolha dos indivíduos.

Sua visão sobre as religiões era extremamente negativa. Dizia que os “místicos do espírito” (religiosos) pedem que o sofrimento presente seja suportado para receber a compensação em outra dimensão. Defendia a completa separação entre Estado e religião. Para exemplificar a coerência de suas posições, Rand se recusou a votar no liberal Ronald Reagan para presidente dos Estados Unidos, na década de 1980, devido a sua posição antiaborto e a favor da religião.

Ex-Presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan

No livro, durante o longo discurso de John Galt, há uma passagem sobre a não-violência que transcrevo abaixo.

“Tudo está aberto à discordância, menos um ato mau, o ato que homem nenhum pode cometer contra os outros, aprovar nem perdoar. Enquanto os homens quiserem viver em comunidade, nenhum homem pode tomar a iniciativa – estão me ouvindo? –, nenhum homem pode tomar a iniciativa de usar a força física contra os outros.

Interpor a ameaça da destruição física entre o homem e sua percepção da realidade é negar e paralisar seu meio de sobrevivência. Forçá-lo a agir contra seu discernimento é como forçá-lo a agir contra sua própria visão. Todo aquele que, com qualquer objetivo e em qualquer grau, tome a iniciativa de lançar mão da força, é um assassino que parte da premissa da morte, mais ainda do que o assassino propriamente dito: a premissa de destruir a capacidade de viver do homem.

Não venham me dizer que sua mente os convenceu de que vocês têm o direito de forçar minha mente A força e a mente são coisas opostas. A moralidade termina onde começa a força da arma”.

Sem dúvida, além da violência física, todas as formas de coação, chantagem e assédios são condenadas.

Assim fica difícil para os conservadores brasileiros exaltarem Ayn Rand, porque ela era uma mulher defensora da liberação sexual, a favor do aborto, antirreligiosa, a favor da descriminalização das drogas e defensora ampla da não-violência.

Outro ponto é a separação entre o público e o privado. Nas páginas da “Revolta de Atlas”, existem inúmeros casos de empresários que buscam privilégios através de suas relações com o Governo. Este tipo de conluio é execrado por Rand. Em um Estado mínimo, as empresas deveriam vencer a competição no mercado exclusivamente através de seus próprios méritos, sem ajudas ou reservas de mercado. Nós sabemos como muitos empresários brasileiros atuam com lobbies no Executivo e no Legislativo para favorecer seus negócios, restringindo a livre concorrência, são os falsos liberais.

Nos próximos artigos, abordarei outros pontos como as mensagens subliminares do livro, o Objetivismo, o egoísmo ético e o Liberalismo Laissez-faire de Rand.

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Ludwig Von Mises e seu Liberalismo Cadillac Eldorado – Lições 5 e 6

Hoje encerraremos nossa jornada pelo livro “As Seis Lições” (Economic Policy: Thoughts for Today and Tomorrow) baseado em seis palestras de Ludwig Von Mises ministradas em Buenos Aires em 1959.

Nos dois artigos anteriores, apresentei as quatro primeiras lições sobre o capitalismo, o socialismo, o intervencionismo e a inflação. Hoje apresentarei as duas últimas lições que tratam sobre o investimento estrangeiro e política & ideias.

Encerrarei com um comentário com minha impressão geral sobre a visão de Ludwig von Mises e a aplicabilidade de seus pensamentos no mundo atual.

Quinta Lição – O Investimento Estrangeiro

Mises reconhece as diferenças expressivas nas remunerações dos trabalhadores ao redor do mundo. Nos países mais desenvolvidos, os trabalhadores recebem maiores salários devido às condições mais favoráveis dos seus países em termos de tecnologia de produção. Ele deixa claro que isto não quer dizer que os trabalhadores e empresários de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento sejam inferiores aos dos países desenvolvidos, porque um trabalhador que utiliza ferramentas mais modernas produzirá mais do que outro que emprega ferramentas obsoletas. Deste modo, o custo adicionado pelo trabalho por unidade de produto será menor nos países desenvolvidos, graças às tecnologias mais eficientes e a maior produtividade. A origem desta diferenciação está na acumulação de capitais que permitem maiores investimentos em equipamentos mais modernos e eficientes, gerando um ciclo virtuoso.

Como a Grã-Bretanha foi pioneira na formação de poupança interna, o processo de desenvolvimento ocorreu inicialmente neste país. No século XIX, capitalistas da Grã-Bretanha iniciam investimentos externos, principalmente, em países da Europa continental e nos Estados Unidos, em áreas como gás e ferrovias. Este processo acelerou a transferência de tecnologia para estes países que também se capitalizaram e se desenvolveram economicamente,

Mises defende com veemência os investimentos como mecanismos de desenvolvimento de países mais atrasados economicamente e na construção de importantes obras ao redor do mundo.

Certamente sem estes investimentos, os países mais pobres estariam condenados a permanecerem eternamente nesta condição. Por outro lado, sempre é importante verificar quais concessões foram aceitas pelos governos locais para receber estes investimentos.

Mises citou que, na segunda metade do século XIX, não havia risco de expropriação de investimentos estrangeiros, mas, progressivamente, a ameaça começou a crescer, em especial, nos países em desenvolvimento. Em alguns casos, ocorreu uma “expropriação indireta”, através de empecilhos para investimentos e discriminação tributária, levando os capitalistas estrangeiros a liquidarem seus negócios no país.

Considero importante verificar se na origem do investimento estrangeiro não houve um favorecimento exagerado em relação aos capitalistas locais. Neste caso, a simples equiparação tributária ou legal poderia ser encarada como hostilidade devido à perda dos privilégios.

Mises apresenta o exemplo da elevada carga tributária americana no final da década de 50 que taxava o lucro da empresa e os dividendos distribuídos aos acionistas. Curiosamente, os dividendos são isentos de tributação no Brasil. A lógica de Mises é que se o lucro fosse menos tributado, aumentaria a poupança interna e estimularia novos investimentos. Vejo que, no caso brasileiro, poder-se-ia reduzir a tributação dos lucros das empresas e passar a tributar os dividendos, evitando perda de arrecadação e estimulando as empresas a reinvestirem seus lucros.

Mises sugere que, para evitar ingerências dos governos dos países, com alteração em regras, o melhor seria retirar os investimentos estrangeiros da jurisdição nacional. Neste caso, um órgão internacional, como a ONU (duramente criticada por Mises), teria esta incumbência. Eu vejo este ponto como uma surpreendente convergência com as ideias atuais de Yuval Harari que sugere que uma série de questões transfronteriças sejam tratadas por organismos internacionais (Globalismo). Evidentemente, entramos em uma discussão sobre a perda da soberania nacional.

Mises enfatiza que a acumulação de capital é o principal fator que diferencia os países em desenvolvimento de países desenvolvidos, como os Estados Unidos. E a única forma das camadas populares sentirem confiança no sistema econômico para criar poupança é através da estabilidade da moeda. Ou seja, a inflação é absolutamente inadmissível.

A industrialização, segundo Mises, é a condição essencial para o desenvolvimento do país, o que só é possível através da acumulação e investimento em capitais. Medidas como controle de câmbio (que impedem importações), piso salarial e protecionismo não ajudam a desenvolver o país. O sindicalismo também não ajuda a criar riqueza, apenas desemprego duradouro.

Concordo com Mises que o investimento de capital per capita é a chave para o desenvolvimento do país. Por outro lado, sua visão em relação ao sindicalismo, parte do princípio de que os capitalistas não maximizarão seus lucros através do arrocho salarial. Se os salários reais não aumentarem, não há possibilidade de desenvolver o país. Sempre lembrando de que a poupança acumulada pelos capitalistas atualmente pode ser investida maciçamente no mercado financeiro ao invés de atividades produtivas.

Mises conclui esta quinta lição, comentando que, como há restrições à migração de pessoas, a saída para melhorar o padrão de vida dos países mais pobres é a migração de capitais. Ainda afirma que não existem atalhos, apesar de lenta, esta é a única forma de atingir este equilíbrio.

Eu concluo com a constatação que hoje a distância entre ricos e pobres aumenta na maioria dos países. Indicadores como PIB e renda per capita não refletem a melhoria da condição de vida dos mais pobres em cada país. A questão não será resolvida através do livre mercado, mas através da atuação responsável do Estado nas áreas de educação, saúde e assistência social. Não podemos esperar indefinidamente pelo equilíbrio entre os países e pela redução das desigualdades. Como disse Keynes, “a longo prazo, todos estaremos mortos”.

John Maynard Keynes

Sexta Lição – Política e Ideias

Mises coloca que até o princípio do século XIX, a política buscava discutir os grandes problemas do país. Assim as pessoas se organizavam em partidos de acordo com suas afinidades ideológicas e visão de mundo. As discussões buscavam convencer outros grupos a seguirem determinada linha de pensamento. Assim, Mises apoia sua visão de não-intervenção do governo na economia no pressuposto de que todos os cidadãos tivessem como objetivo político o bem-estar de toda nação.

A visão de Mises, no final da década de 50 do século XX, é que os partidos políticos clássicos foram substituídos por grupos de pressão. No caso dos Estados Unidos, representantes de determinados grupos (por exemplo agronegócio, petróleo, mineração) podiam estar tanto no Partido Democrata, quanto Republicanos. Para viabilizar sua ação, cada grupo se alia a outros grupos para garantir a aprovação de sua pauta. Deste modo, os interesses do país não relegados a um segundo plano. Mises enxerga esta ação, conhecida atualmente como lobby, como nefasta para a democracia e um dos principais motivos do intervencionismo governamental na economia. Assim elevam-se os gastos públicos, sem o crescimento correspondente da arrecadação pela dificuldade da criação de novos impostos.

Mises também critica a postura do representante de um distrito eleitoral de pautar sua ação apenas nas necessidades do seu distrito, sem considerar o impacto na situação do país como um todo.

Eu concordo com vários pontos desta explicação de Mises sobre a democracia representativa. O principal problema é que esta análise prova que o laissez-faire absoluto, transforma o poderio econômico no absolutismo francês dos séculos XVII e XVIII.

“L’État c’est moi” (O Estado sou eu)

Luís XIV, rei da França de 1643 a 1715

No Brasil atual, grupos de pressão com interesses aparentemente desconexos, como agronegócio, segurança pública e conservadores em relação aos costumes (principalmente evangélicos), apoiam-se mutuamente nas votações para terem seus interesses específicos aprovados no Congressos Nacional. Assim se criou a bancada suprapartidária BBB (boi, bala e Bíblia) com membros de vários partidos diferentes.

Deste modo, grupos com pouco peso econômico não conseguem representação expressiva e ficam alijados da política nacional. Por este motivo, defendo financiamento 100% público das campanhas eleitorais.

Mises defende a liberdade e é abertamente contrário à ditadura. Deste modo, a ditadura não é uma alternativa para os problemas da democracia.

Mises descreve que o intervencionismo e a inflação foram as causas da decadência do Império Romano. Muitos historiadores apresentam que a crise foi inicialmente causada pela redução no número de escravos, com a consequente redução da disponibilidade de mão de obra para a produção de alimentos. Assim os preços dos alimentos subiram e houve tabelamento dos preços máximos. Ou seja, a intervenção do governo romano foi na consequência ao invés de incentivar o aumento da produção de alimentos por homens livres. Quando iniciou o êxodo urbano, houve queda na arrecadação de impostos, com a consequente diminuição do poderio do exército romano.

“Tudo o que ocorre na sociedade de nossos dias é fruto de ideias, sejam elas boas, sejam elas más. Faz-se necessário combater as más ideias. Devemos lutar contra tudo o que não é bom na vida pública.”

Ludwig von Mises

Mises afirma que se deve lutar principalmente contra confiscos de propriedade, controle de preços e inflação.

Cadillac Eldorado 1959

Comentários Finais

Mises era, acima de tudo, um defensor das liberdades individuais. Podemos defini-lo como um libertário. Deste modo, defende a liberdade cultural e a menor interferência possível do Estado sobre o cidadão. Por um lado, esta postura é elogiável, entretanto pode levar a duas consequências que considero indesejáveis:

– o Estado mínimo que não garante educação e saúde aos mais pobres;

– a exacerbação do individualismo.

Neste segundo caso, o “direito de ser tolo” (defendido por Mises) esbarra no direito da comunidade. Em tempos de pandemia, se várias pessoas optarem tolamente por não se vacinar, o vírus poderá sofrer mutações e reduzir a eficiência das vacinas, prejudicando toda a população. Ou seja, neste caso, o “direito de ser tolo” não pode ser permitido.

Ao longo da leitura dos três artigos sobre o livro “As Seis Lições”, pode-se ver que concordei com uma série de pontos apresentados por Mises, por exemplo, sobre as causas inflação, o fracasso do tabelamento de preços e a importância dos investimentos estrangeiros.

Também impressiona a análise de Mises, há sessenta anos, sobre os danos causados pelos lobbies na democracia representativa. A descrição é muito atual. Ele não apresenta respostas de como reverter este mal, mas descarta qualquer forma de ditadura como solução. Lamentavelmente, esta não é a posturas de muitos “liberais” brasileiros que flertam com o autoritarismo.

Afinal por que comparei o liberalismo econômico de Mises a um Cadillac Eldorado 1959 (ano das seis palestras na Argentina)?

Em 1959, a indústria era a mola propulsora do capitalismo. Assim alguns pressupostos ingênuos de Mises baseados em conceitos de microeconomia e desregulação do mercado podiam parecer atuais como um flamejante Cadillac Eldorado em 1959.

Hoje com o crescimento descomunal da especulação, devido à desregulação do mercado financeiro, trocamos o capitalismo industrial pelo capitalismo financeiro. Eu diria que, se um Cadillac Eldorado 1959 se deslocasse por uma rua movimentada de alguma metrópole, muito admirariam o carro, mas a maioria entenderia que o tempo daquele automóvel já passou. Ele virou uma peça de museu. Assim é o liberalismo de Mises que não aceita que o Estado deve apoiar os mais pobres. Não coloca como as principais funções do Estado, além da segurança interna e externa, a educação e a saúde. Um liberalismo que deixa os pobres à própria sorte e os responsabiliza pelas dificuldades na vida. Acredita que algum dia, talvez através da “mão invisível” de Adam Smith, tudo melhore apenas pela ação dos capitalistas, sem qualquer ação estatal para tentar reduzir o abismo que separa ricos e pobres.

Ou seja, se a ideia de Mises der errado, perderemos décadas. Prefiro que o Estado invista em educação e saúde para os mais pobres e atue na geração de empregos e distribuição de renda. Se estas ações não funcionarem, ao menos ficará um legado de melhor educação e saúde para o povo.

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Ludwig Von Mises e seu Liberalismo Cadillac Eldorado – Lições 3 e 4

Continuamos com nosso passeio pelo livro “As Seis Lições” (Economic Policy: Thoughts for Today and Tomorrow) baseado em seis palestras de Ludwig Von Mises ministradas em Buenos Aires em 1959.

No primeiro artigo, apresentei as duas primeiras lições sobre o capitalismo e o socialismo. Hoje apresentarei a terceira e a quarta lições sobre intervencionismo e a inflação.

Terceira Lição – O Intervencionismo

Mises considera que as únicas funções do Estado, em uma economia de livre mercado, são a segurança interna e a defesa de agressões externas. As demais funções seriam da iniciativa privada.

Também considera que, no momento em estas palestras foram proferidas, não existiam livres mercados e sim “economias mistas”. Uma das razões desta constatação é a existência de empresas estatais. Mises considera a questão do tratamento do déficit como fundamental para comparar uma empresa administrada pelo Estado de outra administrada pela iniciativa privada. No caso da estatal, o governo pode suportar o déficit através da tributação da sociedade. Se o aumento da carga tributária não for suficiente, pode haver, inclusive, inflação. No caso da iniciativa privada, esta situação não pode perdurar por muito tempo sob pena do encerramento das atividades da empresa deficitária. Mises não considera, nesta proposição, as empresas de interesse social.

Mises define o intervencionismo como qualquer atividade que o Estado executa fora das atividades relacionadas à segurança interna e externa. Um dos exemplos apresentados foi o tabelamento de preços. Na sequência, ele explica, de maneira muito lógica e didática, as razões que levam ao fracasso todas as tentativas dos governos de tabelar preço. Inevitavelmente, esta prática leva ao aumento do consumo e à diminuição da oferta do item com preço tabelado. A oferta diminui pela redução do lucro ou, até mesmo, a existência de prejuízos auferidos pelos produtores. Assim os governos podem estabelecer racionamento deste produto ou tabelar os preços dos insumos deste produto, afetando toda a cadeia produtiva. O problema maior desta explicação de Mises é a ausência de uma solução que permita que os mais pobres tenham acesso ao leite (exemplo apresentado por Mises no livro). Esta é uma lógica perversa onde o mercado só oferece produtos de primeira necessidade aos que podem pagar e o Estado não deve interferir, buscando melhorar o acesso destes itens às camadas mais pobres da população.

Mises argumenta que, devido ao fracasso do tabelamento de preço de uma área específica, o governo passaria a controlar todos os preços, os reajustes de salário e as taxas de juros. Assim, o país caminharia para o socialismo. O mais interessante é que, no período do regime militar no Brasil, havia o Conselho Interministerial de Preços (CIP) que tabelava o preço de vários itens como eletricidade e combustíveis. Além disso, o câmbio era fixo, os juros eram controlados e havia monopólios estatais em áreas como energia elétrica, petróleo e telecomunicações. Ou seja, segundo a definição de Mises, o governo militar brasileiro era socialista. Pelos mesmos motivos, ele define a Alemanha de Hitler como socialista. Mises também parece não entender a diferença da administração de um país em um tempo de paz ou em um tempo de guerra, onde o governo precisa definir o que deve ser produzido para suportar os esforços de guerra.

Ele também critica o controle dos aluguéis residenciais, comentando que este expediente desincentiva famílias a mudarem para casas menores após a saída dos filhos mais velhos e desestimulam a construção de novas moradias.

Mises não acredita na viabilidade de uma terceira via, entre o capitalismo e o socialismo. Qualquer tentativa, levaria inevitavelmente ao socialismo. Ou seja, qualquer espécie de controle do governo para evitar a formação de cartéis, trustes e monopólios privados seriam práticas socialistas. A economia deveria seguir solta sem interferência dos governos. Como Mises veria a crise do Subprime de 2007?

Ele termina esta aula, criticando os poderes da burocracia e de um poder “legitimado” por algo divino.

“Haveria um remédio contra tudo isso? Eu diria que sim. Há um remédio. E esse remédio é a força dos cidadãos: cabe-lhes impedir a implantação de um regime tão autoritário que se arrogue de uma sabedoria superior à do cidadão comum. Esta é a diferença fundamental entre a liberdade e a servidão. ”

Ludwig von Mises

Podemos fazer o paralelo com a frase “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.”?

Inflação e a perda do valor da moeda

Quarta Lição – A Inflação

Mises considera que a inflação é causada pela expansão da quantidade de dinheiro em circulação ao invés do aumento de preços. Neste caso, quando se imprime mais dinheiro, o poder de compra por unidade monetária se reduz na mesma proporção, causando aumento dos preços de produtos e serviços.

Todos novos gastos de um governo devem estar cobertos pelo aumento de arrecadação através de novos tributos ou incremento nas taxas dos tributos existentes. Deste modo, não há impressão de novo papel-moeda e aumento da inflação. Mises resume seu pensamento dizendo que “não é o modo como o dinheiro é gasto, é antes o modo como é obtido pelo governo que dá lugar a esta consequência que chamamos inflação”.

Esta visão monetarista é a atualmente a mais aceita pelos economistas e serve de base para o controle da inflação em órgãos internacionais como o FMI. Mises afirma que muitos governos preferem imprimir dinheiro, gerando inflação, do que partir para uma medida impopular como aumentar impostos.

Mises coloca que a expressão “nível de preços” é imprecisa e não deveria ser usada, porque cada produto ou serviço tem uma dinâmica diferente no que se refere ao aumento ou à diminuição de seus preços. Da mesma forma, a inflação atinge diferentemente os grupos que compõe a sociedade. Alguns grupos podem ter aumento de renda antes do início do processo inflacionário, enquanto que outros só terão reajustes salariais quando a maioria dos produtos e serviços já tiverem seus preços majorados. Deste modo, sempre existirão pessoas beneficiadas pela inflação. A análise de Mises não leva em consideração os ganhos oriundos de especulação financeira.

Mises afirma que a inflação não pode subsistir por muito tempo, sob pena de causar o colapso da moeda. Cita como exemplo o caso alemão do entreguerras, em 1914 um dólar valia 4,20 marcos alemães; nove anos depois, um dólar estava cotado a 4,2 trilhões de marcos. Ou seja, o marco perdeu totalmente seu valor, devido ao processo inflacionário, e foi necessário estabelecer uma nova moeda.

Mises, assim como os outros membros da escola austríaca de economia, defende o padrão-ouro da moeda. Ou seja, o papel-moeda teria valor real lastreado em reservas, no Banco Central do país. de metais preciosos, especialmente ouro e prata. Deste modo, o governo não poderia emitir mais moeda sem ter reserva equivalente em ouro.

No livro, é citada uma frase atribuída ao presidente americano Grover Cleveland ao vetar a ajuda a uma comunidade atingida por uma catástrofe: “É dever do cidadão manter o governo, mas não é dever do governo manter os cidadãos”. Mises arremata que “estas são palavras que todo estadista deveria escrever numa parede de seu gabinete, para mostrar aos que viessem pedir dinheiro”.

Mises cita uma frase do economista inglês John Maynard Keynes: “A longo prazo, todos estaremos mortos.”. Em minha opinião, a concepção de Mises é extremamente dogmática e não considera que, em momentos excepcionais, o governo pode endividar-se para evitar colapsos econômicos ou sociais.

No Brasil, no final de 2016, foi promulgada a emenda constitucional do teto de gastos públicos (PEC 55/2016). Esta lei limita o aumento dos gastos do governo, impedindo o aumento do endividamento. O que fazer em um momento de pandemia, quando milhares de pessoas perdem renda? Se pensarmos unicamente através da ótica liberal de Mises, “não é dever do governo manter os cidadãos”.

Mises defende que os salários deveriam flutuar de acordo com o poder de compra da moeda do país em mercados desregulamentados. Ou seja, se a moeda se valoriza, o poder aquisitivo dos salários cresceria e causaria inflação devido ao aumento do consumo. Deste modo, ele é um inimigo dos sindicatos por defenderem ganhos salariais aos trabalhadores, considera-os um segundo poder logo abaixo dos governos e critica os métodos violentos que empregavam na época.

Mises afirma que a moeda supervalorizada e os salários mais altos reduzem a competitividade do país e aumentam o desemprego. Ele apresenta a desvalorização da moeda como uma das ações do governo para reduzir este problema. O problema desta prática é a diminuição do poder de compra dos salários. Ele também é crítico de qualquer forma de indexação dos salários à inflação.

Nesta palestra, Mises critica abertamente Keynes, dizendo que ele prefere enganar os trabalhadores, evitando falar a verdade sobre desemprego, salário, valor da moeda (Keynes era contrário ao padrão-ouro) e inflação.

Para finalizar esta lição, Mises afirma que só é possível obter o pleno emprego em um mercado de trabalho livre, no qual os salários flutuem conforme a demanda por mão de obra. Ou seja, em caso de redução da demanda, os salários seriam reduzidos (como qualquer bem ou serviço à venda) para manter o pleno emprego. Devido a impossibilidade de os salários flutuarem livremente, os governos optam por uma política inflacionária. Se esta política funcionar no curto prazo e a inflação for um mal no longo prazo, os trabalhadores só seriam beneficiados em um sistema de livre mercado, sem a presença do governo ou de sindicatos. A função do governo seria somente a de manter o equilíbrio orçamentário.

Em minha opinião, Mises simplifica demais a situação e desconsidera a tendência individual da maximização dos lucros e a assimetria de poder entre os capitalistas e os trabalhadores. Atualmente, com a automação, postos de trabalhos são destruídos em nome da competitividade. Como ficaríamos em um mercado livre, onde os trabalhadores desempregados não são assistidos pelo Estado?

No próximo artigo, apresentarei as duas últimas lições que tratam sobre o investimento estrangeiro e política & ideias.

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Ludwig Von Mises e seu Liberalismo Cadillac Eldorado – Lições 1 e 2

Em um mundo cada vez mais polarizado, precisamos buscar pensamentos cada vez mais plurais. Ler livros, completamente desarmado, com ideias diferentes das suas é fundamental neste momento. Com este princípio em mente, li o livro “As Seis Lições” (Economic Policy: Thoughts for Today and Tomorrow) baseado em seis palestras de Ludwig Von Mises ministradas em Buenos Aires em 1959.

As lições correspondem a palestras apresentadas em dias consecutivos.

Neste primeiro artigo, apresentarei as duas primeiras lições sobre o capitalismo e o socialismo.

Primeira Lição – O Capitalismo

Mises defende enfaticamente a evolução da condição de vida dos mais pobres com a passagem do feudalismo rural para o capitalismo industrial. Por outro lado, fica claro que todo o seu pensamento é baseado no capitalismo industrial, onde o setor financeiro é apenas uma engrenagem para favorecer o crescimento da indústria e consumo.

Em 1950, 28% do PIB americano vinha da produção industrial e apenas 11% vinha da área financeira. Após a desregulamentação do setor na década de 70, cresceu o montante de investimentos de alto risco, impulsionando este setor que passou a representar 21% do PIB americano contra 11% da produção industrial.”

Fonte: Réquiem para o Sonho Americano, Noam Chomsky, março 2017

Mises coloca os consumidores como únicos agentes para servir de bússola para as empresas de cada ramo de atividade. Ou seja, parece não imaginar que as empresas possam induzir as pessoas a consumirem bens que não estariam dispostas a adquirir, através da propaganda.

Mises também defende que as poupanças dos capitalistas beneficiam os trabalhadores. Em minha opinião, isto é verdade quando há reinvestimentos produtivos, geração de novos empregos e aumento de salários. Se a poupança for aplicada em especulação, isto não ocorre.

“Quanto mais se eleva o capital investido por indivíduo, mais próspero se torna o país”

Ludwig Von Mises

Se for investimento produtivo, também concordo. O problema é que vivemos na era do capitalismo não-produtivo ou especulativo.

Com relação à recuperação da Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, Mises afirmou que “houve tão somente a aplicação dos princípios da economia do livre mercado”. Esta afirmação não condiz com a história. Os Estados Unidos, com o objetivo de bloquear o aumento da influência da União Soviética na Europa, desenvolveu o Plano Marshall para promover a recuperação dos países europeus. A orientação deste plano era majoritariamente keynesiana, onde o Estado tem um importante papel na economia, através de investimentos em períodos de retração. O governo norte-americano fez parcerias com os partidos sociais-democratas europeus ao invés de partidos conservadores, criando as bases para a formação de Estados de bem-estar social. Deste modo, havia redistribuição de riquezas e redução de desigualdades sociais. Estas políticas geraram um grande crescimento nos países desenvolvidos do ocidente, com melhoria das condições de vida acompanhada por um boom populacional.

Ludwig von Mises

Segunda Lição – O Socialismo

Mises é a favor das liberdades econômica e individuais. Considera o livre mercado essencial para garantir a liberdade de expressão e demais direitos sociais.

Ele não considera as distorções do mercado como monopólios privados, oligopólios e cartéis no seu pensamento. Coloca os consumidores como únicos agentes para servir de bússola para as empresas de cada ramo de atividade.

Como Mises encarou a análise de Theodor Adorno sobre a influência da indústria cultural no consumismo?

Ele defende o “direito de ser tolo”. Cita o exemplo do fracasso da Lei Seca nos Estados Unidos. Em última análise, a liberação das drogas seria apoiada por este pensamento. A inexistência de censura também seria apoiada por este pensamento. Liberdade significa “liberdade para errar”. Apesar de libertária, esta posição também coloca os interesses de cada indivíduo acima dos interesses da coletividade. Um exemplo atual seria a recusa de ser vacinado contra Covid. Se este “direito de ser tolo” fosse aceito, a erradicação da varíola não teria ocorrido.

Mises considera que, antes da implantação do capitalismo, não havia mobilidade social. Os filhos dos nobres seriam nobres e manteriam seus privilégios. Os filhos dos servos seriam servos e manteriam suas desvantagens sociais. Deste modo, o capitalismo trouxe a possibilidade da mobilidade social e “as pessoas só podem culpar a si mesmas se não chegam a alcançar a posição que almejam”. Este trecho que destaquei da fala de Mises lembra muito as declarações de muitos liberais brasileiros na defesa da meritocracia. Mises e seus discípulos brasileiros desconsideram a assimetria em relação às oportunidades entre as classes sociais. Afinal, quem nasce em uma família rica estudará nas melhores escolas e universidades, consequentemente, terá muito mais chances na vida. Este fato reduz a mobilidade entre classes sociais.

Por outro lado, Mises afirma que o sistema socialista proíbe a liberdade para a escolha da carreira. Não sei qual é a sua fonte de informação que apoia esta conclusão.

Considera o planejamento (central, único, feito pelo governo) um sinônimo de socialismo e comunismo. Defende que todos tenham a liberdade para planejar a própria vida. Neste capítulo, Mises também desconsidera o keynesianismo como uma forma de capitalismo.

Ele também critica duramente a ajuda do Estado a artistas. Considera uma forma de socialismo.

Mises também considera impossível o cálculo econômico dos custos de bens e serviços no sistema socialista pela ausência do mercado.

Ele finaliza esta lição, considerando que uma das provas da superioridade do capitalismo é a condição média de vida muito melhor nos Estados Unidos em comparação à União Soviética. Outro ponto está relacionado ao maior dinamismo do capitalismo americano em relação ao socialismo soviético, medido através do maior número de invenções e inovações.

Esta comparação é muito simplista, se considerarmos que a palestra de Mises aconteceu 42 anos após a Revolução Russa e 14 anos após o final da Segunda Guerra Mundial, onde a União Soviética sofreu muitas baixas. Como comparar com os Estados Unidos, um país que já era uma potência econômica há mais de um século? Por outro lado, concordo com a questão do maior dinamismo do capitalismo. Ao visar o lucro, as inovações são muito mais frequentes no capitalismo, além da indução do consumismo para acelerar o crescimento econômico.

No próximo artigo, apresentarei a terceira e quarta lições que tratam sobre o intervencionismo e a inflação.

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O Mundo é uma Grande Diversão e Bolsonaro é Nosso Showman

A palavra diversão veio do latim divertere, que significa desviar ou voltar-se em outra direção. Ou seja, virar a cabeça para outro lado para não olhar para suas preocupações. Os militares, por exemplo, usam a palavra diversão no sentido de mudar o foco de atenção do inimigo.

Em Roma, a expressão pão e circo (panem et circenses em latim) surgiu durante o período da República. O pão representa o suprimento dos bens materiais e o circo a diversão.

Jair Bolsonaro, nos seus tempos de deputado federal, sempre se posicionou de modo polêmico e usou estas polêmicas como forma de promoção pessoal. A maioria dos brasileiros imaginava que, como presidente, ele moderaria o tom das suas declarações, mas não é o estamos presenciando.

Eu poderia escrever uma longa lista de ações e frases do atual presidente do Brasil, mas isto seria exaustivo… Daria um livro infinitamente mais denso do que o satírico “Por Que Bolsonaro Merece Respeito, Confiança e Dignidade?”. Neste artigo, citarei apenas algumas para pontuar meu raciocínio.

Livro_Bolsonaro

As alterações propostas nas leis de trânsito foram consideradas absurdas por todos especialistas. Afinal aumentar a pontuação para cassação de CNH de 20 para 40 pontos e acabar com os radares móveis nas estradas só favorecem os maus motoristas. E o que falar sobre o fim da obrigatoriedade das cadeirinhas para condução de crianças em automóveis?

A liberação da posse e porte de armas já era um ponto esperado no governo Bolsonaro. Entre idas e vindas de emissões e revogações de decretos presidenciais, destacaria itens como o incrível aumento da quantidade permitida de munição a ser comprada anualmente, brechas legais para a compra de fuzis e a liberação para adolescentes entre 14 e 18 anos ter aulas de tiro.

E a grande celeuma em relação à Amazônia? O estopim foi a divulgação do aumento no ritmo do desmatamento na região, baseados em dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Bolsonaro disparou esta declaração, apresentada abaixo, sobre o Inpe.

“A questão do Inpe, eu tenho a convicção que os dados são mentirosos. Até mandei ver quem é o cara que está na frente do Inpe. Ele vai ter que vir se explicar aqui em Brasília esses dados aí que passaram pra imprensa do mundo todo, que pelo nosso sentimento não condiz com a verdade. Até parece que ele está à serviço de alguma ONG, que é muito comum.”

A resposta do ex-diretor do Inpe, Ricardo Galvão, foi contundente.

“A primeira coisa que eu posso dizer é que o sr. Jair Bolsonaro precisa entender que um presidente da República não pode falar em público, principalmente em uma entrevista coletiva para a imprensa, como se estivesse em uma conversa de botequim. Ele fez comentários impróprios e sem nenhum embasamento e fez ataques inaceitáveis não somente a mim, mas a pessoas que trabalham pela ciência desse País. Ele disse estar convicto de que os dados do Inpe são mentirosos. Mais do que ofensivo a mim, isso foi muito ofensivo à instituição. (…) Fiquei realmente aborrecido, porque na minha opinião ele fez comigo o mesmo jogo que fez com Joaquim Levy (que pediu demissão do BNDES após também ser criticado em público por Bolsonaro). Ele tomou uma atitude pusilânime, covarde, de fazer uma declaração em público talvez esperando que peça demissão, mas eu não vou fazer isso. Eu espero que ele me chame a Brasília para eu explicar o dado e que ele tenha coragem de repetir, olhando frente a frente, nos meus olhos. Eu sou um senhor de 71 anos, membro da Academia Brasileira de Ciências, não vou aceitar uma ofensa desse tipo. Ele que tenha coragem de, frente a frente, justificar o que ele está fazendo. É uma ofensa de botequim. Não vou responder a ele e ele que me chame pessoalmente e tenha coragem de me dizer cara a cara isso.”

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Ricardo Galvão

Bolsonaro despreza as questões ambientais, inclusive já afirmou que elas importam “só aos veganos que comem só vegetais”. Como resultado das ações (ou falta delas), a Alemanha e a Noruega congelaram suas contribuições ao Fundo Amazônia, totalizando um prejuízo de 288 milhões de reais. Só a Noruega, doou 3,2 bilhões de reais para a preservação da Amazônia nos últimos dez anos. Para coroar, Bolsonaro mandou a seguinte mensagem para a primeira-ministra alemã:

“Eu queria até mandar um recado para a senhora querida Angela Merkel, que suspendeu 80 milhões de dólares para a Amazônia. Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, ok? Lá está precisando muito mais do que aqui”.

Alguns dias depois, também mandou um recado para a Noruega.

“A Noruega não é aquela que mata baleia lá em cima, no Polo Norte, não? Que explora petróleo também lá? Não tem nada a oferecer para nós. Pega a grana e ajuda a Angela Merkel a reflorestar a Alemanha.”

Vou pular a história do cocô…

Outra faceta (poderia ser “fasceta”) é o caráter autoritário e o culto à ditadura militar brasileira. Sobre este assunto, destaco duas frases recentes. A primeira é sobre o Coronel Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI no início dos anos 70 (período mais duro da ditadura), acusado de chefiar pessoalmente, de forma sádica, várias sessões de tortura.

“É um herói nacional que evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer.”

Eduardo-Bolsonaro_Ustra

Eduardo Bolsonaro, vestindo uma camiseta em homenagem ao Coronel Brilhante Ustra.

Para atacar o atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, fez uma frase em que deu a entender que sabe o que aconteceu com o pai de Felipe, desaparecido em 1974.

“Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu durante o período militar, conto para ele.”

Vou pular também a indicação do seu filho, Eduardo Bolsonaro, para a embaixada do Brasil nos Estados Unidos…

Para concluir esta seleção de frases, no final do mês de julho, Bolsonaro fez a seguinte declaração:

“Sou assim mesmo. Não tem estratégia. Se eu estivesse preocupado com (a eleição de) 2022, não dava essas declarações.”

Talvez ele não tenha realmente uma estratégia. Ou talvez, sua estratégia seja continuar agradando seus fiéis eleitores. Eu, particularmente, acredito que ele, consciente ou inconscientemente, está inserido numa estratégia maior e mais elaborada. Ele é o responsável pela diversão para o que está acontecendo no país. Ele é o showman. A recuperação da economia patina. Reformas passam pelo Congresso Nacional com o rótulo de imprescindíveis para a salvação do país. Quem discutiu com a profundidade devida o impacto da reforma da Previdência Social sobre os mais pobres? Trabalhadores braçais com baixa escolaridade conseguirão se aposentar aos 65 anos? A viúvas pobres conseguirão sobreviver dignamente com pensões inferiores a um salário mínimo? Só ouvíamos que era preciso economizar um trilhão de reais. Por quê? Veremos milhões de idosos sem teto, morando nas ruas das cidades brasileiras, nos próximos dez ou vinte anos, se nada for feito. Mas só discutíamos as declarações e propostas absurdas de Bolsonaro.

Alguém sabe alguma coisa sobre a minirreforma trabalhista, contida na chamada Medida Provisória da Liberdade Econômica? E sobre a permissão de mineração nas terras indígenas? E assim por diante…

Para contrapor uma crítica direta à sua pessoa, ao seu governo ou a um resultado ruim de alguma política pública, Bolsonaro geralmente apoia sua resposta em, pelo menos, uma falácia lógica. E lá vem aquela ladainha de falar do Lula, do PT ou da esquerda…

Bolsonaro reiteradamente exprime uma opinião de que as minorias devem se submeter à vontade da maioria. Prega, desta forma, uma espécie de ditadura da maioria. Assim quer acabar com a esquerda (“esquerdalha”, segundo seu vocabulário) ou quer retirar direitos dos índios à demarcação de terras. O seu viés autoritarista lhe impede de compreender que, em regimes democráticos, as minorias desamparadas devem ser protegidas independentemente do desejo da maioria.

Não é sem motivo que Bolsonaro se autodefine como o personagem de desenhos animados Johnny Bravo. Eu assistia este desenho no canal Cartoon Network com meu filho Leonardo no início dos anos 2000. Johnny Bravo era um loiro musculoso, pouquíssimo inteligente e completamente “sem noção”. Está bem, Bolsonaro não é loiro, nem musculoso…

Bolsonaro_Johnny-Bravo

Eric Hobsbawm, no seu livro Era dos Extremos, apresenta uma associação da direita liberal com o fascismo entre as duas Grandes Guerras Mundiais para evitar a expansão do comunismo soviético em alguns países europeus. Na sequência a extrema direita traiu os liberais. Os nazistas de Hitler se apoderaram da Alemanha; e os fascistas de Mussolini, da Itália.

Desta vez, minha impressão é que os neoliberais usarão toda a força de Jair Bolsonaro para atrair os holofotes para seus disparates, enquanto fazem as reformas que julgam corretas. Se em um determinado momento, ele atrapalhar mais do que ajudar, será escolhido algum motivo para afastá-lo através de um processo de impeachment. Não tiraram Dilma devido a pedaladas fiscais?

Enquanto isso, assistiremos a ataques contra a universidade pública, aos órgãos de proteção ambientais, aos direitos dos trabalhadores mais pobres…

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O Liberalismo e o Comunismo Encontram-se no Infinito

A humanidade vive hoje a expressão máxima do individualismo. A maioria das pessoas buscam o máximo proveito para si e os outros não são levados em consideração nas decisões. Neste cenário, o liberalismo encaixa-se perfeitamente como o modelo econômico vigente.

Na metade de janeiro, participei de uma oficina sobre Geometria Projetiva. Foram quatro aulas de 90 minutos com o professor alemão Dr. Dieter Gerth. Senti que áreas adormecidas do meu cérebro foram sacudidas durante estes dias.

Segundo Antonio Carlos Auffinger e Fábio Júlio Valentim, autores do livro “Introdução à Geometria Projetiva”:

“Mas, afinal, a geometria projetiva se preocupa com o quê exatamente? É mais fácil responder essa pergunta fazendo uma pequena analogia com a geometria que conhecemos desde o primário, a Euclidiana. Enquanto a Geometria Euclidiana se preocupa com o mundo em que vivemos, a Geometria Projetiva lida com o mundo que vemos. Na prática, os trilhos de trem não são retas paralelas, mas retas que se encontram no horizonte, no infinito. Essa é uma das características marcantes da geometria projetiva, duas retas quaisquer sempre se intersectam.”

Deste modo, a Geometria Projetiva também fundamenta representações onde a perspectiva está presente.

A história mais curiosa sobre a Geometria Projetiva envolve um pai e seu filho. O matemático húngaro Farkas Bolyai, em boa parte da sua vida, tentou resolver o problema das retas paralelas, sem sucesso. Quando seu filho, János, avisou-lhe que se dedicaria ao estudo do mesmo problema, Farkas tentou dissuadi-lo através de uma carta.

Você não deve tentar esta abordagem para as paralelas. Conheço este caminho até o fim. Cruzei essa noite sem fundo, que extinguiu toda a luz e alegria da minha vida. Eu imploro, deixe a ciência das paralelas em paz. […] Pensei que me sacrificaria por causa da verdade. Eu estava pronto para me tornar um mártir que removeria o defeito da geometria e a devolveria purificada à humanidade. Realizei monstruosos e enormes trabalhos: minhas criações são muito melhores do que as dos outros e mesmo assim não consegui satisfação completa. […] Voltei quando vi que nenhum homem pode chegar no final desta noite. Voltei inconsolado, compadecendo a mim e a toda a humanidade. Aprenda com o meu exemplo: eu queria saber sobre as paralelas. Eu permaneço ignorante, isso levou todas as flores da minha vida e todo o meu tempo.

[…]

Admito que não espero nada com o desvio de suas linhas. Parece-me que eu estive nestas regiões; que passei por todos os recifes deste Mar Morto infernal e sempre voltei com um mastro quebrado e uma vela rasgada. A ruína da minha disposição e a minha queda datam deste tempo. Arrisquei impensadamente minha vida e minha felicidade – aut Ceasar aut nihil (ou César ou Nada).

A expressão latina aut Ceasar aut nihil explicita bem o desejo de Farkas Bolyai de se destacar a todo custo.

Janos Bolyai, Hungarian mathematician

János Bolyai

János Bolyai, felizmente, não seguiu os conselhos do pai e teve sucesso em seus estudos, tornando-se um dos pioneiros da Geometria Projetiva e teria respondido ao seu pai:

– Eu criei um mundo novo e diferente a partir do nada.

A figura abaixo mostra um exemplo da limitação da Geometria Euclidiana em comparação com a Projetiva.

Triangulos_GeometriaProjetiva

O triângulo Euclidiano e os triângulos Projetivos

Normalmente diríamos que só há um triângulo na figura – o branco no centro, o triângulo euclidiano. Se prolongarmos infinitamente os lados do triângulo branco, teremos três novos triângulos que preencherão totalmente o plano, conforme pode ser observado acima. Assim saímos da limitação do triângulo euclidiano para a totalidade expressa pelos quatro triângulos da Geometria Projetiva.

E o que a Geometria Projetiva tem a ver com o Liberalismo e o Comunismo?

Imagine o Liberalismo e o Comunismo como sendo duas retas paralelas. De acordo com a Geometria Euclidiana, estas retas (ideologias) não possuirão nenhum ponto em comum, mas conforme apresentado anteriormente, de acordo com a Geometria Projetiva, elas se interceptam em um ponto no infinito. Poderíamos dar a este ponto o nome de utopia, lugar onde a “mão invisível” liberal de Adam Smith se confunde com o comunismo de Karl Marx. Só na utopia, na plena concretização de uma sociedade humana solidária, viabilizam-se duas ideologias utópicas.

O mais curioso é que atualmente a esmagadora maioria das pessoas considera apenas o comunismo como utópico. O problema é que o liberalismo não é sustentável economicamente, ambientalmente e, principalmente, socialmente. Tornar o liberalismo sustentável é a maior utopia da utópica “mão invisível” de Adam Smith.

Talvez para construirmos um sistema mais justo e equilibrado, abraçando conceitos da Geometria Projetiva, devíamos seguir aquela frase do personagem Buzz Lightyear de Toy Story:

– Ao infinito e além!

to-infinity-and-beyond

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Por que Chegamos a Este Ponto? Em Busca de um Novo Equilíbrio

Há quase dois séculos e meio, o escocês Adam Smith publicou um dos livros mais influentes da nossa era, “A Riqueza das Nações”. Neste livro, ele defende que as pessoas devem maximizar seu próprio proveito e existiria uma “mão invisível” que ajudaria a equilibrar as relações econômicas e sociais. Hoje Adam Smith é considerado o pai da moderna economia e do liberalismo.

Adam Smith_The Wealth of Nations

Praticamente um século depois, com a revolução industrial e a falha da “mão invisível” de Adam Smith, Karl Marx publica o primeiro volume de outra obra influente do nosso tempo, “O Capital”. Esta obra combinada com o “Manifesto Comunista”, publicado por Marx e Engels, duas décadas antes são a base do socialismo.

Karl Marx_Das Kapital

Aristóteles, dois mil anos antes de Adam Smith, afirmou que o homem é um animal político – político por viver em uma polis (cidade-estado grega), local em que poderia se desenvolver plenamente nas relações com os outros humanos, onde o bem comum seria traduzido em felicidade, justiça e bem-estar social.

Aristoteles

Aristóteles

Podemos dizer que, no liberalismo, o indivíduo predomina sobre a sociedade, enquanto, no socialismo, a sociedade predomina sobre o indivíduo. Precisa-se buscar o equilíbrio. Este verso de Rudolf Steiner representa este equilíbrio.

Salutar só é, quando
No espelho da alma humana
Forma-se toda a comunidade;
E na comunidade
Vive a força da alma individual.

steiner-1915

Rudolf Steiner

Atualmente estamos atingindo o auge do individualismo na nossa sociedade. Se este estado não for alterado em breve, teremos problemas irreversíveis para a humanidade.

O economista britânico Guy Standing, no seu livro “O Precariado – A Nova Classe Perigosa” (The Precariat: The New Dangerous Class), descreve a formação e crescimento de uma nova classe, o “precariado”, com o avanço da globalização neoliberal. Segundo Standing:

“O precariado é definido pela visão de curto prazo e, induzida pela baixa probabilidade de progresso pessoal ou de construção de uma carreira, pode verificar-se uma evolução massificada no sentido da incapacidade de pensar a longo prazo.”

“Aqueles no precariado têm vidas dominadas por inseguranças, incertezas, dúvidas e humilhações.”

“As pessoas inseguras deixam as outras furiosas e as pessoas com raiva são voláteis, propensas a apoiar uma política de ódio e amargura.”

Se aceitamos que os menos favorecidos sejam pouco protegidos pela legislação ou ameaçados por processos como terceirização ou contratos de trabalho temporários, estaremos também aceitando que os menos favorecidos sejam explorados e marginalizados. O problema é que os interesses econômicos se tornaram tão dominantes que as pessoas são convencidas que não existe outra forma de organizar a sociedade.

Precariat_Guy Standing

Podemos dividir a atividade humana em três setores: político-jurídico, econômico e cultural-social. Estes setores deveriam ser totalmente independentes. O setor econômico deve financiar os dois outros setores através dos impostos transparentemente. O que vemos hoje aqui no Brasil (e na maior parte do planeta) é a compra do setor político pelo setor econômico: leis são alteradas; isenções fiscais acertadas; grandes obras definidas, enquanto que os interesses da sociedade são relegados ao segundo plano. Simultaneamente a ideia de que a economia deve ser desregulamentada é vendida como se isto fosse bom para a sociedade, mas isto só beneficia os muito ricos, porque o setor econômico também compra a mídia e a cultura.

Devemos separar totalmente estes três setores para termos um futuro mais justo e sustentável. O problema é que, para obtermos sucesso, esta ação deve ser global. Seguindo o ideário da Revolução Francesa, queremos ter Liberdade na cultura, Igualdade na política e Fraternidade na economia.

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Autofagia Liberal e o Umbigocentrismo

As reformas trabalhistas e da Previdência em andamento no Brasil são provas evidentes da autofagia liberal e do umbigocentrismo dos nossos dias.

autofagia liberal

Vamos às explicações sobre o significado destas duas expressões. O liberalismo é autofágico, porque, ao buscar a maximização do lucro, pode comprometer seriamente o meio ambiente, a comunidade onde atua e, até mesmo, segmentos significativos da população de diversos país. Em 1962, Milton Friedman escreveu sua principal obra “Capitalismo e Liberdade”. Sobre a atuação do governo na economia, escreveu:

Do que precisamos urgentemente, para a estabilidade e o crescimento econômico, é de uma redução da intervenção do governo não de seu aumento.

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Milton Friedman

Alinha-se a conhecida ideia neoliberal de que tudo anda melhor se o Estado desregulamentar a economia. Sobre a responsabilidade social das empresas, o resumo de sua opinião está apresentado abaixo.

A ideia de que as empresas têm “responsabilidade social” para além de ter lucro é perigosa. Ela mostra uma concepção fundamentalmente errada da natureza de uma economia de livre mercado. Em tal economia, a obrigação social das empresas é aumentar seus lucros dentro da lei. É só isto. A aceitação pelos líderes das empresas da responsabilidade de fazerem mais que aumentar valor para os acionistas pode minar os fundamentos de nosso sistema econômico.

Como a obrigação social das empresas, segundo Friedman, é apenas aumentar seus lucros dentro da lei, se a lei for alterada em benefício da empresa, não há nenhum arrepio ético. Após alguns anos, a aplicação desta lei pode causar queda do poder aquisitivo da população e o que beneficiou a empresa, no curto prazo, através da redução de seus custos com pessoal, se voltará contra a própria empresa devido à queda de suas vendas. Autofagia!

A reforma trabalhista proposta pelo governo Temer em tramitação acelerada no Congresso é um exemplo. Cito três pontos que deveríamos pensar a respeito:

  1. Acordos coletivos prevalecem sobre a legislação.
  2. Ratificação da lei da terceirização, sancionada há pouco por Temer.
  3. Demissão em massa não precisará mais ter a concordância do sindicato.

Assim, durante um período de alto desemprego, como o que estamos vivendo atualmente, a faca e o queijo estarão nas mãos das empresas. A empresa simplesmente pode ameaçar os empregados com o encerramento de suas atividades naquele local, forçando-os a aceitar cláusulas em que abrem mão de alguns benefícios, como as “horas in itinere”, o tempo de deslocamento até o trabalho. Os bancos de horas poderão ser revalidados eternamente, se o acordo coletivo permitir.

A terceirização das atividades-fim das empresas deve gerar também uma redução dos seus gastos com pessoal, porque uma série de benefícios sociais deixam de ser pagos. Além de abrir a possibilidade de colocar outro profissional mais barato na função.

A possibilidade de fazer uma demissão em massa sem concordância do sindicato enfraquece as posições dos trabalhadores e dos próprios sindicatos. Sempre será possível mudar a empresa para uma região onde o “estoque” de mão de obra barata seja maior.

O umbigocentrismo é a certeza que o universo gira em torno do próprio umbigo. Se existe vantagem ou, até mesmo, ausência de prejuízo para o dono do umbigo, nada mais importa. O impacto nos outros de qualquer decisão não é relevante.

Umbigocentrismo

A reforma da Previdência Social brasileira mostra como as pessoas que deveriam ser mais críticas em relação às medidas estão olhando para o próprio umbigo e acatam o discurso oficial. Esta reforma acabará prejudicando sensivelmente as pessoas com escolaridade mais baixa, O ator Wagner Moura liderou uma campanha contra a reforma. Alexandre Schwartsman, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil e ex-economista chefe de uma série de grandes bancos privados, na sua coluna semanal na Folha de São Paulo, criticou o ator, dizendo que ele foi intelectualmente desonesto.

Wagner Moura_reforma Previdencia

Wagner Moura

Schwartsman apresentou o gráfico abaixo, baseado em dados do IBGE. O gráfico mostra qual é a expectativa de vida em cada idade para homens e mulheres. Por exemplo, uma mulher brasileira quando nasce tem expectativa de vida de 78,6 anos. Aos 60 anos, ela viveria, em média, mais 23,5 anos. Ou seja, uma mulher de 60 anos viveria, em média, até os 83,5 anos.

Expectativa de vida condicional

Gráfico do artigo de Alexandre Schwartsman, baseado em dados do IBGE [http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tabuadevida/2013/defaulttab_xls.shtm]

Abaixo está a explicação de Schwartsman no seu atigo, onde tenta provar que Wagner Moura foi desonesto intelectualmente ao dizer que “querem que você morra antes de se aposentar!”.

De fato, a expectativa de vida ao nascer se encontra ao redor de 75 anos, porque (infelizmente) a mortalidade infantil ainda é relativamente elevada e a violência cobra muitas vidas de homens jovens. Quem, porém, se aposenta por tempo de contribuição atinge esta condição em média aos 54,5 anos (homens 55,5 e mulheres 52,3), idade em que, como mostrado no gráfico, a expectativa de vida supera 80 anos (78,4 homens, 82,1 mulheres). Quem não comprova tempo de contribuição, os mais pobres, já se aposenta hoje aos 65 anos, com expectativa de vida de 83 anos.

Parece que você, Alexandre Schwartsman, foi desonesto intelectualmente ao pegar estatísticas que não consideram as diferenças entre regiões e nível educacional. Sua visão é liberal autofágica e umbigocêntrica. Sua visão é baseada em trabalhadores urbanos com formação superior que terão chances de manterem-se ativos até os 65 anos. Imagina pessoas com baixa formação educacional, trabalhadores braçais. Como conseguirão emprego com carteira assinada após os 55 anos?

Esta reforma da Previdência segue o velho script – trabalhadores organizados do serviço público e militares, os maiores responsáveis pelos déficits previdenciários, são deixados de lado, enquanto os trabalhadores de empresas privadas mais uma vez pagarão a conta. Não é uma razão válida colocar idade mínima de 65 anos, porque nos países desenvolvidos é esta a idade. Precisamos ser mais críticos e exercitar a empatia para nos colocarmos no lugar dos outros – os mais pobres, menos protegidos.

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A Direita, a Esquerda e o Papa Marxista

Este negócio de direita e esquerda começou em 1789, durante a Revolução Francesa, quando no lado direito da Assembleia ficavam os Girondinos (moderados); e na esquerda, os Jacobinos (radicais e mais exaltados). Os Girondinos queriam instituir uma monarquia constitucional na França; os Jacobinos, a república. O tempo passou e as palavras direita e esquerda passaram a designar diferentes correntes de pensamento político e econômico. Em algumas ocasiões, a direita passou a representar a manutenção do status quo; e a esquerda, a mudança.

Desenho de Jacques-Louis David sobre um episódio da Revolução Francesa

Desenho de Jacques-Louis David sobre um episódio da Revolução Francesa

Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo se dividiu em dois blocos. A esquerda passou a ser representada pelo bloco socialista ou comunista, liderado pela União Soviética. Um aspecto deve ficar bem claro, os regimes do leste europeu eram ditaduras, nas quais liberdades e direitos civis foram suprimidos. Da mesma forma, existiam ditaduras na América Latina, que se opunham à esquerda, e empregaram alguns métodos muito semelhantes aos dos seus antagonistas. Regimes totalitários devem ser condenados independente da corrente ideológica. Não há nada de bom sem liberdade.

Com a falência do bloco comunista, simbolizada pela queda do Muro de Berlim em 1989, muitos passaram a considerar a esquerda como sinônimo de atraso e ineficiência. Nas últimas décadas, podemos considerar que a direita é representada pelo pensamento liberal conservador. Quem pensa diferente muitas vezes é ridicularizado e desacreditado como se só existisse uma forma de ver a realidade. De acordo com esta forma de pensar, o egoísmo humano é considerado irremediável. Assim sendo, não se deve lutar contra esta característica ou sentir-se culpado por demonstrá-la. Na área econômica, cada indivíduo deve buscar a maximização de seu lucro, seu bem-estar, sua riqueza. O economista americano Milton Friedman, conselheiro do governo do ditador chileno Augusto Pinochet e influenciador dos presidentes americanos Nixon e Reagan, define perfeitamente, neste contexto, qual é a função social das empresas:

“Há poucas coisas capazes de minar tão profundamente as bases de nossa sociedade livre como a aceitação por parte dos dirigentes das empresas de uma responsabilidade social que não seja a de gerar tanto dinheiro quanto possível para seus acionistas. Trata-se de uma doutrina fundamentalmente subversiva. Se homens de negócios têm outra responsabilidade social diferente de maximizar o lucro para seus acionistas, como poderão eles saber qual seria esta responsabilidade? Podem os indivíduos decidir o que constitui o interesse social? Podem eles decidir que carga impor a si próprios e a seus acionistas para servir ao interesse social? É tolerável que funções públicas como imposição de impostos, despesas e controle sejam exercidas pelas pessoas, que estão no momento dirigindo empresas particulares, escolhidas para estes postos por grupos estritamente privados? Se os homens de negócios são servidores civis e não empregados de seus acionistas – então, numa democracia, eles serão, cedo ou tarde, escolhidos pelas técnicas públicas de eleições e nomeações.”

Milton Friedman

Milton Friedman

Ou seja, o administrador da empresa deve apenas maximizar o lucro dentro dos limites legais requeridos, nada mais. O impacto econômico positivo da atividade econômica trará os benefícios para a sociedade. Este pensamento parece ser utópico e simplista. Se um país ou uma comunidade estiver preso em um círculo vicioso de pobreza, poderá ficar eternamente condenado a esta situação, porque não haverá estímulo à atividade econômica e, deste modo, não haverá progresso social.

Se um país ou estado tiver exigências ambientais menos restritivas ou fiscalização mais frouxa, uma empresa poderá optar por se instalar nesta região para reduzir seus custos, maximizando seus lucros. Segundo Friedman, esta seria a atitude que os acionistas esperariam do CEO da empresa. Se a comunidade passaria a ter seu rio poluído, com menos peixes, ou o ar com substâncias nocivas à saúde, esta preocupação não deveria afetar este CEO, porque sua missão é maximizar o lucro dos acionistas da empresa dentro da legalidade.

Poderia dar outros exemplos, como alimentos com ingredientes nocivos à saúde ou medicamentos com efeitos colaterais, mas acredito que a distorção causada pelo liberalismo econômico defendido por Friedman já está clara. O problema pode ser agravado, se as empresas, através de lobbies, usarem seu poderio econômico para influenciar na legislação que rege suas atividades.

O mais curioso é que uma parcela expressiva da direita alia, ao liberalismo econômico, uma postura conservadora em relação às questões sociais e comportamentais. São contrários à ampliação dos direitos das minorias, especialmente dos homossexuais, ou programas sociais – cotas raciais ou econômicas, complementação de renda, universalização da saúde, etc..

Sem dúvida o capitalismo é muito mais eficiente economicamente do que o comunismo. Existe estímulo muito maior para a evolução tecnológica e a busca pela eficiência, mas o consumismo é um dos pilares para a manutenção do crescimento econômico. Vivemos em um planeta que possui limites e, se todos os habitantes da Terra passarem a ter padrões americanos de consumo, nossos filhos não terão um ambiente saudável no futuro próximo.

As críticas sobre o Papa Francisco se iniciaram no início de 2015. Liberais conservadores americanos passaram a atacá-lo, dizendo que suas posições são da esquerda marxista. Parece claro que o papa deseja apenas que as distorções causadas pela busca desenfreada de riqueza por alguns e pelo consumismo de muitos sejam repensadas. Com este modelo de capitalismo, será difícil viver em um mundo socialmente mais justo e ecologicamente mais equilibrado.

Papa Francisco recebe polêmico presente de Evo Morales (Foto: Osservatore Romano)

Papa Francisco recebe polêmico presente de Evo Morales (Foto: Osservatore Romano)

Francisco sugere a leitura do “Compêndio da Doutrina Social da Igreja” publicado em 2006 durante o papado de João Paulo II. A propriedade privada é defendida nesta obra desde que atenda uma função social e todos tenham condições de adquirir a sua. Parece justo…

Se pensarmos unicamente na figura de Jesus Cristo, veremos que sua opção foi pelos pobres e injustiçados. O Reino de Deus, antes de ser um jardim onde ficaremos após a morte, é a Terra em que os humanos viverão um dia, onde haverá justiça e melhor divisão das riquezas. Se Cristo lutava por justiça social como um revolucionário de esquerda adepto da não violência, por que Marx, por exemplo, rejeitou a Igreja Católica? A Igreja havia perdido há séculos completamente sua ligação com o social, apoiando os poderosos, a manutenção da escravidão de negros ou a exploração de indígenas.

Francisco quer que os cristãos não façam leituras mecânicas dos Evangelhos, mas que os vivenciem genuinamente, buscando promover justiça para todos. Isto não tem a ver com ser comunista ou marxista, tem a ver com ser um cristão de verdade. Esta é a volta aos ensinamentos originais de Jesus. Não é assistir a missa dominical para ter os pecados expiados, é deixar o egoísmo de lado e ajudar os outros.

“Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25,40).

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