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Política Monetária, Déficit e Desigualdade: por que 1 ponto da Selic pesa mais que muitos cortes no orçamento

Introdução

No debate público brasileiro, política fiscal e política monetária costumam ser tratadas como assuntos separados. Quando o governo anuncia cortes em saúde, educação ou programas sociais, o país inteiro discute, com razão, as consequências. Já as decisões do Banco Central sobre a taxa Selic, que movimentam centenas de bilhões de reais por ano, são vistas como algo técnico, neutro, quase natural. Mas não são!

Em 2024, o Brasil fechou o ano com um déficit primário em torno de R$ 48 bilhões e isso dominou as manchetes. Contudo, um ponto percentual da Selic custa aproximadamente R$ 40 bilhões por ano só em juros da dívida pública. Ou seja, 1 ponto de Selic custa quase o mesmo que o déficit primário anual inteiro.

E, ainda assim, enquanto cada real gasto com políticas sociais é escrutinado, avaliado e frequentemente cortado, os gastos com juros da dívida, que beneficiam investidores detentores de títulos públicos, seguem automáticos, protegidos e intocáveis.

Este artigo tenta trazer luz a essa assimetria, explicando:

  • quanto custa a Selic;
  • como é composta a dívida e por que a Selic amplifica esse custo;
  • o paradoxo de subir juros num momento em que a economia precisa investir;
  • o papel do “mercado” na formação das expectativas que o BC usa para decidir a Selic;
  • e como tudo isso reflete um desenho institucional que reforça desigualdades.

Quanto custa 1 ponto percentual da Selic

O cálculo é simples:

  • o Brasil tem entre R$ 8 e 9 trilhões de dívida pública interna;
  • quase metade dessa dívida é pós-fixada, isto é, rende Selic;
  • portanto, cerca de R$ 4 trilhões variam diretamente com a taxa básica.

Logo: 1 p.p. de Selic ≈ 1% de R$ 4 trilhões ≈ R$ 40 bilhões por ano.

Com essa ordem de grandeza em mente, dá para comparar:

RubricaOrçamento 2024  1 p.p. da Selic equivale a
SaúdeR$ 218 bi  18% da Saúde
EducaçãoR$ 112 bi  36% da Educação
PAC 2024R$ 54 bi  74% do PAC
Investimentos totaisR$ 210 bi  19% dos investimentos

Ou seja:

  • um único ponto da Selic consome quase três quartos do PAC,
  • mais de um terço da Educação,
  • e quase um quinto de toda a Saúde.

Não existe debate público proporcional a isso.

A composição da dívida e a hipersensibilidade à Selic

O Brasil possui um perfil incomum de dívida:

  • 49% pós-fixada (Selic)
  • 27% indexada ao IPCA
  • 20% prefixada
  • 4% em câmbio/outros

Essa composição faz com que qualquer aumento na Selic se transforme em gasto imediato, e gigantesco, para o Tesouro.

Países desenvolvidos têm o oposto, muito mais dívida prefixada, com prazos longos, blindando o governo contra volatilidade de juros. Por outro lado, nós ficamos expostos.

O hiato do produto e a lógica da Selic

O Banco Central usa, entre outros indicadores, o hiato do produto (output gap):

  • quando a economia está abaixo do seu potencial, a inflação tende a cair, então o Banco Central pode cortar juros;
  • quando está no limite da capacidade, inflação tende a subir, então o Banco Central aumenta juros.

Em tese, isso faz sentido. Mas, na prática, isso nos leva a um paradoxo profundo.

O paradoxo da capacidade máxima: quando investir fica mais necessário e mais caro

Quando a economia está “no limite da capacidade”, isso significa que:

  • as fábricas estão cheias;
  • as empresas precisam investir;
  • a economia precisa expandir capacidade produtiva.

O que a política monetária faz? Sobe a Selic para esfriar a demanda. Isso acontece, porque a política monetária trabalha sobre a demanda, não sobre a oferta.

  • A Selic mais alta reduz consumo, crédito e investimento.
  • Mas a inflação em momentos de capacidade cheia não vem só da demanda, vem também da falta de capacidade produtiva, da baixa produtividade e de gargalos estruturais.

Então o BC sobe a Selic sobe como se todos os problemas fossem de “demanda aquecida”, quando muitas vezes o problema é capacidade insuficiente.

O efeito prático é:

  • crédito mais caro;
  • expansão produtiva adiada;
  • menor produtividade futura.

Ou seja, justo quando o país mostra que precisa investir para crescer, a Selic sobe e torna o investimento mais difícil.

Nos EUA e na Europa, quando a economia aquece, o crédito barato sustenta o aumento de capacidade. No Brasil, a economia aquece e recebe um freio.

É um mecanismo que nos condena a ciclos curtos de crescimento – os famosos “voos de galinha”.

Expectativas, mercado e o círculo de retroalimentação

Outra peça crucial é como o Banco Central decide a Selic.

Entre os principais elementos que alimentam a decisão do Banco Central sobre a Selic estão:

  • o Boletim Focus;
  • as curvas de juros;
  • as projeções publicadas por grandes instituições financeiras.

Quem produz essas expectativas?

  • bancos;
  • gestoras;
  • fundos;
  • mesas de operação.


Todos os atores diretamente interessados em juros mais altos. Por isso, cria-se um loop de retroalimentação:

  1. O mercado projeta inflação alta.
  2. O BC interpreta isso como necessidade de juros altos.
  3. Juros altos aumentam rendimentos financeiros.
  4. Projeções permanecem elevadas.

Não é teoria conspiratória – é estrutural.

Nos EUA e na Europa, a estrutura é mais ampla: sindicatos, indústria, consultorias e universidades também influenciam expectativas. No Brasil, o sistema é muito mais concentrado.

A assimetria injusta: cortes para muitos, proteção para poucos

Aqui chegamos ao ponto mais sensível do debate.

Quando o governo precisa “ajustar as contas”, os cortes costumam cair em:

  • Saúde;
  • Educação;
  • Investimentos do poder executivo;
  • programas sociais.

Enquanto isso, o gasto com juros, muito maior do que qualquer uma dessas áreas, quase 1 trilhão de reais, é tratado como inevitável, automático e politicamente intocável.

O resultado é moralmente assimétrico:

  • quem depende do Estado paga o ajuste;
  • quem vive de renda financeira recebe o ajuste, via maior remuneração.

Não se trata de demonizar investidores. Eles cumprem função importante no sistema. Mas reconhecer que as duas políticas – fiscal e monetária – produzem efeitos distributivos, mas apenas a fiscal é debatida, votada e contestada. A política monetária opera sem exame proporcional ao seu impacto.

Para onde seguir: caminhos possíveis

Não existe solução simples, mas alguns movimentos poderiam reduzir essa distorção. Parte deles envolve usar plenamente o mandato duplo do Banco Central, definido pela Lei Complementar nº 179/2021, que estabelece dois objetivos formais:

  1. assegurar a estabilidade de preços (controle da inflação), e
  2. zelar pela estabilidade financeira, contribuindo também para o pleno emprego e o crescimento econômico sustentável.

Apesar disso, na prática, o debate público — e muitas vezes a atuação operacional — tende a tratar a inflação como o único parâmetro relevante. A dimensão relativa ao emprego, atividade econômica e bem-estar social, prevista em lei, permanece subutilizada e raramente aparece como guia explícito na política monetária.

Considerar o mandato completo não significa “afrouxar” a política de controle inflacionário, mas sim colocar a política monetária em diálogo com a realidade produtiva e social do país, evitando que decisões de juros ignorem impactos distributivos, fiscais e de crescimento.

Isso passa por algumas mudanças estruturais:

diminuir a parcela pós-fixada da dívida, reduzindo a sensibilidade extrema da despesa com juros a cada movimento da Selic;
alongar os prazos de emissão, diminuindo a volatilidade e o peso dos juros de curtíssimo prazo;
diversificar as fontes de formação de expectativas, de modo que projeções usadas pelo Banco Central incluam não apenas agentes financeiros, mas também empresas, trabalhadores, universidades, centros de pesquisa e organismos independentes;
integrar, de forma mais explícita, a política fiscal e monetária, evitando choques desnecessários entre o esforço de ajuste de um lado e o encarecimento dos juros de outro;
criar instrumentos de crédito produtivo anticíclico, permitindo que o país invista mesmo em momentos de aperto monetário;
reforçar a transparência sobre os impactos distributivos e fiscais das decisões de juros, algo que hoje sequer entra na comunicação oficial.

Nenhuma dessas medidas afeta a autonomia formal do Banco Central. Todas, porém, ajudam a construir um sistema econômico mais coerente, menos volátil e mais alinhado ao interesse público, combinando estabilidade de preços com responsabilidade social e capacidade de investimento.

Conclusão

A Selic não é apenas um número técnico. Ela é:

  • uma decisão com impacto fiscal gigantesco;
  • um mecanismo com efeitos redistributivos profundos;
  • e um dos fatores que mais moldam o crescimento – ou a falta dele – no Brasil.

Enquanto o país continuar:

  • cortando gastos sociais para “fazer ajuste”,
  • mantendo juros altos como se fossem neutros,
  • e ignorando o paradoxo de frear a economia no momento exato em que ela precisa investir,

continuaremos presos no mesmo ciclo: pouco crescimento, baixa produtividade, desigualdade elevada e dependência de juros altos.

Rever esse arranjo não significa abandonar responsabilidade fiscal; significa torná-la mais inteligente, mais transparente e mais alinhada ao interesse público.

O Brasil não precisa escolher entre estabilidade e desenvolvimento. Precisa apenas reconhecer que parte do que tratamos como ‘natural’ no desenho atual da política monetária é, na verdade, um fator que limita o crescimento e amplia desigualdades e, portanto, pode e deve ser repensado.

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Operações Letais, Mercados Bilionários (Parte 3): política criminal, saúde pública e o dia seguinte da legalização

Este texto é a Parte 3 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Na Parte 1, discuti a ordem de grandeza do mercado de drogas no Brasil; na Parte 2, simulei como a legalização da maconha poderia mexer no caixa das facções.

Agora, a pergunta muda: se a maconha for regulada, o que o Estado faz com essa oportunidade? Aqui entro em cenários de política criminal e saúde pública, para além da lógica puramente repressiva.

6. Três caminhos de política criminal depois da legalização

Legalizar a maconha não é, por si só, uma política de segurança pública; é apenas mudar uma peça importante no tabuleiro. O impacto real sobre violência, facções e sistema prisional vai depender de qual política criminal vem na sequência: manter a inércia, focar na macrocriminalidade ou integrar segurança, saúde e finanças leva a resultados muito diferentes usando o mesmo ponto de partida.

Foram construídos três cenários muito simples de política criminal, resumidos na Tabela 6:

  1. Cenário 1 – Inércia reativa
    • A lei muda, mas a prática não.
    • Continua-se gastando muita energia em varejo e “peixe pequeno”, agora menos com maconha e mais com cocaína e crack.
    • Resultado: o P&L cai 26% porque a maconha foi regulada, mas não cai muito além disso. Violência e encarceramento seguem altos.
  2. Cenário 2 – Foco em drogas pesadas e macrocriminalidade
    • Aproveita-se o “alívio” de recursos na maconha para redirecionar os esforços para:
      • rotas de cocaína;
      • laboratórios e depósitos de crack;
      • e, principalmente, lavagem de dinheiro.
    • A lógica deixa de ser “quantos presos” e passa a ser “quanto de prejuízo financeiro para as facções”.
    • Nesse cenário, é razoável imaginar o P&L de drogas caindo perto de 40%, com cocaína e crack perdendo espaço através da ação, principalmente, da Polícia Federal e polícias estaduais.
  3. Cenário 3 – Estratégia integrada Segurança + Saúde + Finanças
    • Mantém o foco duro do Cenário 2,
    • mas inclui dois braços a mais:
      • saúde, usando parte da arrecadação da maconha para tratar dependência, reduzir danos e cuidar de saúde mental em territórios vulneráveis;
      • sistema financeiro, com COAF, Receita Federal, Banco Central e órgãos reguladores atacando lavagem de dinheiro, empresas de fachada e instrumentos financeiros usados para esconder o dinheiro do crime.
    • Aqui não é só cortar receita, é também mexer na demanda (menos gente presa no ciclo crack–prisão–rua) e no “colchão” financeiro das organizações.

Tabela 6 – Três linhas de política criminal pós-legalização (visão comparada)

(Toda esta tabela é análise qualitativa da IA, inspirada em literatura sobre macrocriminalidade e políticas de drogas.)

IndicadorCenário 1 – InérciaCenário 2 – Foco macro (drogas pesadas)Cenário 3 – Integrado (Segurança + Saúde + Finanças)
Queda no P&L de drogas (base hoje)~26% (só maconha)~40%~40 – 45%
Queda no P&L com maconha~70%~70%~70%
Impacto em cocaína/crackPequenoAltoAlto
Redução de homicídiosBaixaMédiaMédia/Alta
Redução de internações / danos sociaisBaixaBaixa/MédiaAlta
Redução da população prisionalBaixaMédiaMédia/Alta
Ganho fiscal líquidoMédioMédio/AltoAlto
Complexidade de implementaçãoBaixaMédiaAlta

Na prática, os três cenários mostram que legalizar maconha é condição necessária, mas não suficiente. Se a política criminal não se recalibra, troca-se um tipo de guerra por outro. Se ela se recalibra bem, abre-se uma janela rara para:

  • tirar dinheiro do crime;
  • aliviar pressão sobre comunidades e sistema prisional;
  • e ainda financeiramente sustentar políticas de saúde e prevenção.

7. E a saúde? Não dá para varrer os riscos para debaixo do tapete

Qualquer conversa honesta sobre legalização precisa encarar o outro lado: quais são os riscos reais do consumo de maconha?

A Tabela 7 resume as principais evidências:

  • Efeitos agudos: vão do relaxamento e da “larica” até crises de ansiedade, paranoia e prejuízo de reflexos. Dirigir ou operar máquina sob efeito é perigoso.
  • Dependência: não é mito nem é igual a heroína. Algo como 1 em 10 usuários pode desenvolver dependência; o risco sobe se o uso começa cedo e é diário.
  • Saúde mental: uso frequente, com produtos de alta potência em THC, aumenta o risco de quadros psicóticos, especialmente em pessoas com vulnerabilidade genética.
  • Adolescentes: aqui o consenso é amplo. Cérebro em desenvolvimento mais uso regular é igual a mais problemas escolares, mais risco de dependência, mais chance de desfechos psiquiátricos adversos.
  • Pulmão e coração: fumar implica exposição à fumaça (bronquite, irritação) e aumenta frequência cardíaca e pressão por um tempo – o que importa em quem já tem doença cardiovascular.

Tabela 7 – Efeitos do consumo de maconha (resumo)

DimensãoEvidência principal
Efeitos agudosRelaxamento, alteração da percepção, aumento de apetite; mas também ansiedade, taquicardia, paranoia e piora de reflexos e coordenação.
DependênciaCerca de 1 em 10 usuários desenvolve algum grau de dependência; risco maior (aproximadamente 1 em 6) se iniciar na adolescência e usar com frequência.
Saúde mentalUso frequente (principalmente diário e com alta potência de THC) está associado a maior risco de psicose; relação dose–resposta documentada em meta-análises.
Ansiedade/depressãoAssociação bidirecional: pessoas com sofrimento psíquico tendem a usar mais, e uso pesado pode piorar sintomas em parte dos casos.
CogniçãoPrejuízos em atenção e memória de curto prazo; uso precoce e intenso pode associar-se a desempenho escolar pior e déficit cognitivo duradouro.
PulmãoFumar implica exposição a fumaça e produtos da combustão → risco de bronquite crônica e irritação de vias aéreas, similar em lógica ao tabaco.
CoraçãoAumento transitório de frequência cardíaca e pressão; cautela em pessoas com cardiopatias.
GravidezUso na gestação associado a possíveis efeitos adversos no desenvolvimento fetal e neurológico → recomendação geral é evitar.
AdolescentesConsenso de maior risco: cérebro em desenvolvimento, maior risco de dependência e de desfechos psiquiátricos adversos.

A Tabela 8 tenta traduzir isso em desenho regulatório:

  • Se adolescentes são mais vulneráveis, então faz sentido ter idade mínima e proibir marketing direcionado a jovens.
  • Se alta potência aumenta risco de psicose, então faz sentido limitar THC em produtos recreativos e exigir rotulagem clara.
  • Se fumar faz mal para o pulmão, então faz sentido permitir formas não combustíveis (óleos, comestíveis), com regulação rígida de dose.
  • Se gestantes e pessoas com histórico de psicose correm mais riscos, então faz sentido ter alertas específicos e protocolos de aconselhamento na rede de saúde.

Tabela 8 – Riscos e regulação (exemplos)

Risco identificadoMedida regulatória coerente
Maior risco em adolescentesIdade mínima (18 ou 21 anos), proibição de marketing para jovens.
Risco de psicose com uso    pesado / alta potênciaLimites de THC, rotulagem clara de concentração, avisos de risco.
Danos respiratórios ao fumarPermitir produtos não combustíveis (óleos, vaporização regulada, comestíveis) e informar riscos de fumar.
Dependência e uso problemáticoDestinar parte da arrecadação para prevenção e tratamento, triagem em atenção primária.
Risco para gestantesAdvertências específicas em rótulos e campanhas públicas direcionadas.

Em outras palavras: legalizar não é liberar geral. É trocar um mercado sem regras por um mercado com regras que incorporam o que a ciência sabe sobre riscos e danos.


8. Fechando a conta

Se você juntar as peças:

  • um mercado bilionário de drogas,
  • um aparato repressivo que mira desproporcionalmente o elo mais fraco,
  • operações letais como a do Rio,
  • e um conjunto de evidências sobre riscos e possibilidades de regulação da maconha,

a pergunta deixa de ser “legalizar é certo ou errado?” e passa a ser:

Que combinação de regulação, política criminal e atenção à saúde minimiza os danos e o poder econômico do crime organizado?

As tabelas e figuras das três partes deste artigo não dão uma resposta definitiva (nem poderiam), mas ajudam a fazer uma coisa que o debate público brasileiro raramente faz: colocar números na conversa, explicitar premissas, separar o que é dado do que é cenário, o que é convicção do que é evidência.

Se a gente continuar respondendo com a mesma lógica que produziu a operação mais letal da história recente, é provável que vejamos outras grandes operações, outras dezenas de mortos, e o varejo do tráfico funcionando como se nada tivesse acontecido.

Se a gente conseguir tirar a discussão apenas do gatilho e trazê-la também para a planilha e para o SUS, talvez não resolvamos o problema das drogas – mas teremos, pelo menos, parado de repetir a mesma guerra com as mesmas vítimas de sempre.


O que é dado e o que é estimativa da IA:

  • As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
  • O resumo dos efeitos de saúde da maconha (Tabela 7) é baseado em revisões sistemáticas e meta-análises recentes sobre cannabis, psicose, dependência e outros desfechos de saúde, além de relatórios do UNODC.
  • Todas as tabelas com rótulos “2025E”, “Brasil realista” e os cenários de política criminal (Tabelas 2, 3, 4, 5 e 6) são estimativas de IA, construídas a partir:
    • dos números de 2015,
    • da inflação (IPCA) acumulada,
    • de tendências globais descritas no World Drug Report e em estudos sobre mercados legais de cannabis (Canadá, Califórnia etc.).
  • Esses cenários não devem ser lidos como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza e efeitos relativos.

Fontes principais:

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Operações Letais, Mercados Bilionários (Parte 2): cenários de legalização da maconha e o caixa das facções

Este texto é a Parte 2 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Na Parte 1, olhei para o tamanho do mercado de drogas no Brasil e para a distribuição de faturamento entre maconha, cocaína, crack e sintéticos.

Aqui, dou o passo seguinte: uso esses números para simular o que aconteceria com o caixa das facções se a maconha saísse (em parte) do mercado ilegal e fosse para um mercado legal e regulado.

3. O que aprendemos com Canadá, Califórnia e outros “laboratórios” de legalização?

Se o objetivo é tirar dinheiro do crime sem simplesmente trocar um tipo de guerra por outro, faz sentido olhar para quem já mexeu na peça “maconha” do tabuleiro. Canadá, alguns estados dos EUA e outros países funcionam como laboratórios avançados: neles, a maconha passou a ser vendida legalmente, com impostos, regras e, mesmo assim (ou por isso), o mercado ilegal não desapareceu por completo.

Aqui entram dois experimentos importantes:

  • Canadá, que legalizou em 2018 e, alguns anos depois, conseguiu que algo em torno de 70–80% do gasto em cannabis fosse para o mercado legal.
  • Califórnia, que também legalizou, mas, por uma combinação de impostos altos, burocracia e restrições locais, ainda vê cerca de 60% do consumo passando por canais ilegais.

A Tabela 3 resume três cenários, inspirados nesses casos:

  • Um Brasil que imita o “modelo Califórnia ineficiente”, no qual o mercado legal só consegue capturar uns 40% do gasto em maconha, mantendo um mercado ilícito gordo.
  • Um “modelo Canadá médio”, em que cerca de 75% do gasto em maconha vai para o legal.
  • E um cenário mais ambicioso, em que o país usa imposto mais baixo e ampla oferta para asfixiar o mercado ilegal da maconha, chegando a 85% de captura.

Tabela 3 – Cenários de legalização da maconha (captura de mercado e impostos)

(Todos os valores abaixo são estimativas de IA baseadas em benchmarks de Canadá e Califórnia.)

O interessante é notar que, mesmo com parâmetros conservadores, aparecem bilhões de reais por ano em vendas legais e algo entre 1 e 2 bilhões de reais em impostos.

Na Figura 3 (barras empilhadas legal x ilegal por cenário), vemos como cada desenho tributário e regulatório distribui o bolo entre Estado e crime.


4. Um “Brasil realista”: nem utopia, nem catástrofe

Em vez de imaginar um Brasil que vira Canadá amanhã, tentei traduzir isso para um trajeto mais plausível: como poderia ser a legalização da maconha ao longo de alguns anos aqui.

A Tabela 4 mostra um cenário em três marcos:

  • Ano 0 – onde estamos hoje: tudo ilícito, R$ 12,5 bi de mercado de maconha, zero imposto, 100% do P&L na mão do crime.
  • Ano 3 – legalização implantada, mas ainda cheia de atritos: redes legais concentradas nas capitais, muita gente ainda comprando nas bocas. Nesse ponto, algo como 45% do mercado já poderia estar no legal.
  • Ano 7 – mercado maduro, com lojas e cooperativas espalhadas, imposto moderado e repressão focada no comércio ilegal: aqui é onde o cenário supõe 70% do gasto em maconha no mercado regulado.

Tabela 4 – Cenário “Brasil realista” (legalização da maconha em 3 marcos)

(Toda esta tabela é estimativa de IA, inspirada em dados de Canadá, Illinois-EUA e relatórios da Califórnia-EUA, adaptados ao contexto brasileiro.)

Reforçando, essa tabela é um exercício; não uma previsão. Mas ela ajuda a enxergar ordens de grandeza:

  • Em sete anos, o faturamento ilegal com maconha cairia de 12,5 bilhões para 3,7 bilhões (uma redução de aproximadamente 70%).
  • O Estado passaria a arrecadar algo como R$ 1,6 bilhão por ano só com impostos específicos sobre a maconha, fora IR, ISS etc.
  • Boa parte da classe média urbana passaria a comprar em canais legais; o varejo ilegal ficaria concentrado em nichos e territórios mais vulneráveis.

A Figura 4 (gráfico de linha) mostra o crescimento do mercado legal e a queda do ilícito ao longo dos anos.


5. E como ficaria o “P&L do crime” com drogas como um todo?

Legalizar só a maconha não zera o tráfico, obviamente. Mas muda quanto e onde ele ganha.

Partindo do cenário 2025E do mercado de todas as drogas e aplicando o cenário “Brasil realista” apenas na maconha, a Tabela 5 mostra como ficaria o P&L das drogas ilícitas:

  • O faturamento ilícito total com drogas cairia de R$ 33,35 bilhões para R$ 24,65 bilhões – uma redução de cerca de 26%.
  • Só na maconha, o baque é muito maior: queda em torno de 70% na receita ilícita.
  • A contrapartida é que o crime fica mais dependente de cocaína e crack: juntos, eles passam a representar quase 70% do mercado de drogas ilícitas.

Tabela 5 – P&L de drogas ilícitas antes e depois da legalização da maconha

(Coluna “Depois” = estimativa de IA com base no cenário Brasil realista.)

A Figura 5, com duas séries de barras (antes e depois), ajuda a enxergar a mudança:

  • no “antes”, a maconha é a maior barra do gráfico;
  • no “depois”, quem domina o ilícito são a cocaína e o crack.

Isso joga uma luz importante para o debate de política criminal: legalizar maconha mexe muito com o caixa, mas não resolve sozinho o problema da violência associada às drogas, que hoje está muito vinculada justamente à cocaína, ao crack e às armas.

Se a maconha regulada pode tirar até um terço do P&L das drogas ilícitas, o que o Estado faz com essa oportunidade? Mantém a lógica de operação letal, ou recalibra a política criminal para mirar no caixa das drogas pesadas, na lavagem de dinheiro e na saúde dos usuários? É isso que analiso na Parte 3.


O que é dado e o que é estimativa da IA:

  • As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
  • Todas as tabelas com rótulos “2025E” e “Brasil realista (Tabelas 2, 3, 4 e 5) são estimativas de IA, construídas a partir:
    • dos números de 2015,
    • da inflação (IPCA) acumulada,
    • de tendências globais descritas no World Drug Report e em estudos sobre mercados legais de cannabis (Canadá, Califórnia etc.).
  • Esses cenários não devem ser lidos como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza e efeitos relativos.

Fontes principais:

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Operações Letais, Mercados Bilionários (Parte 1): quanto vale o tráfico de drogas no Brasil?

Este texto é a Parte 1 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Aqui, eu olho para os números do mercado de drogas no Brasil e tento responder: de que tamanho é esse negócio? Nas Partes 2 e 3, entro em cenários de legalização da maconha, impacto no caixa das facções e opções de política criminal e de saúde pública.

No fim de outubro de 2025, o Rio de Janeiro assistiu à operação policial mais letal da história do país. Em poucas horas, a Operação Contenção, realizada principalmente nos complexos da Penha e do Alemão, deixou 121 mortos, entre eles quatro policiais e mais de uma centena de pessoas classificadas como “suspeitos” pelas autoridades. A ação superou inclusive o massacre do Carandiru, em 1992, e ganhou repercussão internacional, com questionamentos de organizações de direitos humanos sobre proporcionalidade, legalidade e respeito à vida.

Independentemente da leitura política de cada um sobre essa operação específica, um dado salta aos olhos: estamos repetindo a mesma receita há décadas. Entram centenas de agentes, helicópteros, caveirões, dezenas de mortos, apreensões de armas e drogas… E, alguns meses depois, o comércio de drogas segue funcionando, as facções seguem lucrando e a vida cotidiana das comunidades volta ao “normal” de sempre – com medo, tiroteio e precariedade. Moradores relatam que, depois da fumaça, sobram casas destruídas, escolas fechadas, gente traumatizada e nenhuma mudança estrutural.

Quando olhamos para o problema só pela lente da “guerra ao tráfico”, a conta parece simples: é matar ou morrer, polícia contra bandidos. Mas, do ponto de vista econômico, não estamos falando de meia dúzia de “aviõezinhos”: estamos falando de um mercado bilionário, com cadeias de suprimento, logística, finanças, gestão de risco e diversificação de portfólio. Ao focar quase toda a energia em “peixes pequenos” – o varejo da boca, o jovem armado na esquina – o Estado ataca justamente o elo mais substituível da cadeia. O que não é tocado com a mesma força é o P&L do crime (P&L é o relatório financeiro que detalha as receitas, custos e despesas de uma empresa) – a estrutura que permite que o negócio continue lucrando, recrutando e se reinventando.

Esta série de artigos parte dessa constatação incômoda: se tratamos drogas apenas como problema de polícia, a polícia vira, sozinha, a política de drogas. E os resultados estão aí, em operações como a do Rio: muita gente morta, pouca mudança estrutural. Em vez disso, proponho olhar para o tráfico como o que ele também é – um grande negócio – e perguntar: quanto fatura esse mercado no Brasil? Onde está o grosso do dinheiro? O que aconteceria se uma parte importante desse faturamento saísse da ilegalidade?

A partir de dados públicos de 2015 sobre o mercado de drogas ilícitas no Brasil e de experiências de países e estados norte-americanos que legalizaram a maconha, construo, com ajuda de IA, alguns cenários exploratórios:

  • como pode estar hoje a distribuição de faturamento entre maconha, cocaína, crack e sintéticos;
  • o que mudaria se a maconha fosse legalizada em um cenário “Brasil realista”;
  • e como diferentes desenhos de política criminal podem reduzir (ou não) o caixa das facções.

Por fim, não dá para falar de legalização ignorando a saúde pública: a maconha tem riscos reais, especialmente em adolescentes e pessoas vulneráveis a transtornos mentais, ao mesmo tempo em que políticas bem desenhadas podem reduzir danos, regular a potência dos produtos e financiar prevenção e tratamento. A ideia aqui não é fazer apologia nem demonização, mas tirar a discussão apenas do gatilho e levar para a planilha, o ambulatório e o planejamento de longo prazo. A operação no Rio mostra com brutalidade o que acontece quando a resposta é praticamente só bala. A partir daqui, sigo por outro caminho, usando números, cenários de regulação e evidências de saúde pública para imaginar que país teríamos se o alvo fosse menos o gatilho e mais o desenho da política de drogas.


1. Quanto dinheiro gira no mercado de drogas no Brasil?

Antes de discutir legalização, saúde pública ou política criminal, vale encarar a pergunta mais básica (e mais incômoda) de todas: quanto vale o tráfico de drogas no Brasil? A resposta não é trivial, mas os dados de 2015 já nos dão uma boa ordem de grandeza para entender o tamanho desse mercado e quem são seus “campeões de faturamento”.

A Tabela 1 traz a melhor estimativa pública que temos do mercado interno de drogas ilícitas no Brasil, feita a partir de dados de 2015. É um retrato tirado há 10 anos, mas ainda é o único que fecha a conta com metodologia explícita: número de usuários, quantidade média consumida e preço de rua.

Tabela 1 – Mercado interno de drogas ilícitas no Brasil em 2015

Dados de Luciana Teixeira (Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, 2016) – valores nominais de 2015

O ponto principal não é discutir a segunda casa decimal, mas a ordem de grandeza:

  • Estamos falando de um mercado de cerca de R$ 14,5 bilhões/ano, só considerando maconha, cocaína, crack e ecstasy.
  • A maconha aparece como o maior faturamento, com algo perto de 40% do total.
  • Cocaína e crack, somados, respondem por mais da metade do bolo restante.

Ao transformar a Tabela 1 em um gráfico de pizza (Figura 1), a imagem é simples: um terço maconha, um terço cocaína, um quinto crack, um pedaço menor de ecstasy.

Este é o P&L básico do varejo de drogas no Brasil há dez anos.


2. E hoje, como isso pode estar?

A segunda pergunta óbvia é: “Ok, 2015 passou faz tempo. Como pode estar isso em 2025?”

O problema: ninguém refez essa conta com a mesma qualidade metodológica. Em vez de inventar um “dado novo”, eu preferi construir um cenário exploratório: pegar a base de 2015 e projetar para 2025 usando:

  • a inflação acumulada nesse período,
  • tendências globais e nacionais (mais cannabis, boom de cocaína, sintéticos em alta),
  • e mantendo o padrão de consumo físico médio por pessoa.

O resultado está na Tabela 2. É importante lembrá-la como um modelo de IA, não um relatório do IBGE.

Tabela 2 – Cenário exploratório 2025E do mercado ilícito de drogas no Brasil

(Toda a coluna “2025E” é estimativa de IA, a partir da base 2015 + IPCA + tendências globais.)

Algumas ideias chave para ler essa tabela:

  • Em valores nominais, o “mercado de drogas” pode estar na casa de R$ 33 bilhões/ano, basicamente o dobro de 2015, puxado por inflação e aumento moderado de consumidores.
  • A maconha seguiria relevante, mas perdendo um pouco de participação para cocaína e sintéticos.
  • Drogas sintéticas, praticamente invisíveis na conta de 2015, ganham um pedaço pequeno, mas crescente.

Se você montar a Figura 2 (barras com faturamento 2015 x 2025E para cada droga), a mensagem visual é: as barras de todas as drogas crescem, mas a de cocaína cresce de forma especialmente preocupante.

Na Parte 2, eu parto desses números e os transformo em um cenário de política pública: simulo o que aconteceria com o caixa das facções, a arrecadação do Estado e o sistema de saúde se a maconha saísse (em parte) do mercado ilegal e fosse tratada como um produto regulado.


O que é dado e o que é estimativa da IA:

  • As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
  • A Tabela 2 com rótulo “2025E”, “é estimativa de IA, construída a partir:
    • dos números de 2015,
    • da inflação (IPCA) acumulada,
    • de tendências globais descritas no World Drug Report.
  • Esse cenário não deve ser lido como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza.

Fontes principais:

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Dienekes, o Herói que Manteve a Linha até o Final

No post 300 deste blog, eu prometi voltar a Portões de Fogo, de Steven Pressfield, para falar de Dienekes. E aqui estou, pagando a promessa. Hoje não é o campeão que ganha estátuas; é o oficial veterano que dá o tom, segura a fileira, ensina o jovem e cuida da casa. O romance é narrado pelo seu escudeiro Xéones, e pela voz dele a gente vê o que realmente sustenta a coragem quando as flechas persas escurecem o céu.

“Então lutaremos à sombra.”
(a frase atribuída a Dienekes pela tradição — Pressfield a incorpora no livro)

Essa frase espirituosa resume o personagem: lucidez sem pose, coragem sem teatro. Abaixo, três lentes ajudam a enxergá-lo melhor: quem ele é, o que o liga a Arete e o que ele forma em Alexandros.

Dienekes

1. Quem é Dienekes: coragem moral antes da militar

Dienekes é o oficial que prefere a eficácia à glória. Ele ensina que o problema não é “sentir medo”, é o que fazemos com ele. Em Portões de Fogo, isso vira método: transformar medo em amor (philia) — o cuidado pelo homem à esquerda e à direita, pela cidade, pelo código que os une.

No treinamento, tudo é caráter. Quando Dienekes ajusta a altura do escudo, não é capricho estético: é ética em movimento, porque a aspis protege mais o companheiro da esquerda do que a si mesmo. Quando ele insiste na cadência da falange, não é mania de sargento: é confiabilidade — o outro pode contar com o seu passo. E quando corrige o ângulo da lança, é autodomínio em ação: nada de abrir a asa para “brilhar” e deixar o flanco exposto. Em Esparta, técnica é moral, porque o gesto certo salva alguém. Repetido mil vezes, o gesto vira hábito; o hábito, disposição; e a disposição, caráter. É assim que a disciplina do corpo vai esculpindo a disciplina da alma — até que, quando o medo surge, o corpo faz o certo do jeito certo antes mesmo que a cabeça invente desculpas para fugir. E o humor seco dele aparece quando a tensão sobe — não para minimizar o perigo, mas para manter a cabeça no lugar.

2. Dienekes & Arete: amor que escolhe a lealdade

Arete é uma mulher inteligente, com iniciativa; não é uma esposa-troféu, é parceira. E é na relação com ela que vemos a coragem íntima de Dienekes:

  • Eros disciplinado por respeito – apaixonado por Arete, ele afasta-se por lealdade ao irmão a quem ela fora prometida. Em Esparta, rasgar esse vínculo destruiria a casa e a honra entre pares. Ele escolhe perder algo importante para não quebrar o que é maior.
  • A verdade viva sobre a letra fria – anos depois, quando Arete corre risco real, ela traça um plano — e ele endossa a “mentira justa” e assume a paternidade de uma criança para salvá-la. A cena mostra um casamento entre iguais: ele não manda; confia, decide com ela e assume as consequências.

Em casa ou em Termópilas, é a mesma ética: manter a linha — da falange e da família.

3. Dienekes & Alexandros: o mestre sereno

Alexandros começa como muitos de nós começaram em algo: potencial + impaciência. Quer brilho, feito individual, história para contar. Dienekes mira outro lugar:

  • Converte bravura em constância.
  • Ensina a sentir o medo sem colapsar.
  • Troca o heroísmo solitário por responsabilidade: “o posto do outro depende de você”.

A pedagogia é silenciosa: corrigir o passo, repetir a manobra, fazer perguntas em vez de discursos. No fim, Alexandros já não busca a cena; sustenta a linha.

Síntese das principais mensagens do livro

Eu destaco estas quatro ideias fortes que atravessam o livro:

  • Medo não é vergonha; é matéria-prima da coragem.
  • O antídoto do medo é o amor (philia): olhar para o lado, proteger o companheiro.
  • Treino é caráter e virtudes em movimento: forma o gesto e a pessoa.
  • Serviço antes de glória: a guerra (e a vida) como cuidado do comum.

Portões de Fogo não coloca Dienekes no pedestal do “grande herói”. Ele é o pilar invisível: o que fica, repara a falha do outro, morre sem teatro, com dignidade. Se há grandeza, é a grandeza do comum bem-feito — a mais difícil.

Por que isso importa fora do campo de batalha? Porque a vida tem suas Termópilas: família, trabalho, amizade, amor. “Manter a linha” é:

  • Escolher a lealdade certa, de acordo com seus valores essenciais, quando o desejo cutuca (Arete).
  • Assumir custos para proteger quem depende de nós (a criança).
  • Formar gente para que brilhe menos sozinha e sirva mais ao coletivo (Alexandros).

No fim, Dienekes lembra que coragem não é bravata: é fidelidade tranquila ao que sustenta o outro — e, principalmente, a nós mesmos — quando o céu escurece.

Se você leu Portões de Fogo, me diga: qual cena de Dienekes ficou em você? Se não leu, recomendo. Vá com tempo e, depois, deixe o corpo dar seu próximo passo.

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Autenticidade e Coragem em A Alma Imoral – Zusya, Mar Vermelho e Viktor Frankl

No último sábado, eu e a Claudia fomos assistir à peça A Alma Imoral, com Clarice Niskier, baseada no livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Saí do teatro com aquela mistura boa de silêncio reflexivo e vontade de conversar — sinais de que algo tocou no lugar certo.

Clarice Niskier em “A Alma_Imoral”

A montagem é um monólogo poderoso. Clarice fala de corpo e alma, tradição e transgressão, obediência e autenticidade, fidelidade e traição. Não é apologia à rebeldia inconsequente, é um convite à honestidade: o que ainda fazemos por dever, quando a alma já não está mais ali?

Alguns temas ficaram comigo:

  • Tradição e transgressão. A peça propõe que a tradição só continua viva quando aceita ser “traída” — não no sentido de negar o passado, mas de renovar o sentido.
  • Corpo e alma. O corpo preserva, organiza, dá forma. A alma inquieta, pergunta, desafia, atravessa. Um sem o outro é desequilíbrio.
  • Dúvida e certeza. O texto valoriza a dúvida como motor ético. Não é hesitação improdutiva; é espaço de consciência.
  • Fidelidade e traição. Não apenas ao pacto externo, mas à verdade interna. Às vezes, manter o pacto exige transformá-lo.

Destaco dois trechos que conversam entre si. Me atingiram com mais força por questões atuais da minha vida.

O rabino Zusya: ser quem se é

Há um momento em que surge a história do rabino Zusya (muitas vezes grafado “Zusha” ou “Sucia”).

“Por que estás tão irrequieto? – perguntou o discípulo ao rabino Zusya, ao vê-lo em seus momentos finais de vida.

— Tenho medo – respondeu Zusya.

— Medo de que, rabino?

— Medo do Tribunal Celeste.

— Tu? Um homem tão piedoso, cuja vida foi exemplar? Se tu tens medo, imagine nós, cheios de defeitos e imperfeições.

Rabino Zusya então diz:

— Não temo ser inquirido por não ter sido como o profeta Moisés, não deixei um legado de seu porte. Eu posso me defender, dizendo que não fui como Moisés, porque eu não sou Moisés. Nem temo que me cobrem ensinamentos como os de Maimônides, por eu não ter oferecido ao mundo a qualidade de sua obra e seu talento. Eu posso me defender, dizendo que eu não fui como Maimônides, porque eu não sou Maimônides. O que me apavora, neste momento, é que me venham indagar: Zusya, por que não foste Zusya?

“Um Velho Judeu” de Rembrandt

A questão é devastadora. A questão não é “por que não fomos grandes”, e sim por que não fomos nós. Por que deixamos a vida escorrer por papéis, expectativas e personagens que não nos servem mais?

Essa ideia conversa diretamente com Viktor Frankl. Para ele, o ser humano não busca primeiro prazer ou poder, mas sentido. E sentido é pessoal, original e intransferível — ninguém pode viver o nosso por nós. Como disse Nietzsche:

“Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.”

Zusya está dizendo o mesmo, de outra forma: o fracasso verdadeiro é falhar em ser quem somos. Ele teme ter sido “correto” sem ter sido autêntico. E Frankl nos lembra que a vida nos pergunta o tempo todo — e espera respostas em forma de escolhas e ações.

Viktor Emil Frankl

O Mar Vermelho: o passo que abre as águas

Outro trecho que me pegou foi a releitura da travessia do Mar Vermelho. Não como milagre pronto, mas como metáfora de coragem. O trecho fala de um hebreu que entrou no mar antes de ele se abrir. Só quando a água chegou à altura do seu peito, as águas se dividiram.

A cena desloca o foco: não é “o mar que se abre para eu passar”; sou eu que passo — e o mar responde. A alma transgride o medo, e o caminho aparece depois do passo.

Com Frankl, isso vira linguagem de responsabilidade: não temos garantias, temos liberdade para responder. Em cada situação, há uma tarefa que traz o sentido. Às vezes, é continuar. Em outras, é atravessar. Em quase todas, é assumir o risco do primeiro passo.

No trecho sobre o Mar Vermelho, o sentido se revela no movimento. Para Frankl, responder ao chamado único da situação é o centro da liberdade humana.

Entre Zusya e o Mar Vermelho: escolhas que nos fazem

Juntos, Zusya e o Mar Vermelho compõem um mapa simples:

  1. Quem sou eu, de fato? (autenticidade)
  2. O que a situação me pede agora? (responsabilidade)
  3. Qual passo é meu, mesmo sem garantias? (coragem)

A peça não entrega respostas prontas — “graças a Deus”. Ela faz outra coisa: abre espaço para as perguntas que nos interessam.

Uma reflexão pessoal: sobre mudar e enfrentar o desconhecido

Saí do teatro pensando nas minhas próprias travessias. Em quantas vezes adiei um passo esperando o mar abrir? Em quantas vezes fui “correto” quando precisava ser verdadeiro? Em quantas decisões, no trabalho e na vida a dois, a alma já sussurrava: “é por ali” — e eu pedia mais uma confirmação.

Não tenho grandes heróis internos (como Moisés ou Maimônides) à disposição, mas tenho um Zusya possível e alguns hebreus que adentraram o Mar Vermelho antes de se abrir: aqueles passos pequenos, quase invisíveis, que mudam a direção de uma história.

Se eu pudesse resumir o aprendizado da noite em uma linha, diria assim:

Coragem não é ausência de medo; é fidelidade serena ao que a alma já sabe.

O resto, a gente descobre andando — e o mar costuma colaborar com quem se compromete com o passo.

No sábado, a peça terminou; o assunto, não. E talvez seja esse o melhor efeito da arte: deixar a porta entreaberta para o próximo movimento — o nosso.

Se você já viu A Alma Imoral, me conte o que ficou com você. Se ainda não viu, recomendo. Dê tempo para a alma — e, na saída, deixe o corpo dar seu próximo passo.

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O que sustenta uma relação a dois? 13 fatores para cultivar vínculos reais, vivos e duradouros.

Relacionamentos não andam sozinhos.

Não basta ter vivido bons momentos ou lembrar com carinho do começo. Com o tempo, o que segura a relação de pé não é a memória; é o que se constrói no presente.

A convivência testa. O cotidiano, às vezes, oprime. E, nesse cenário, é o cuidado, quase invisível, que faz diferença: pequenos gestos, conversas que alinham, escolhas que sustentam.

Com o tempo — observando, vivendo, errando e aprendendo — percebi que os casais que seguem inteiros (e não apenas juntos) têm algo em comum: há práticas e valores que eles cultivam.

Nada mágico ou heroico, mas constante. E isso já é muito.

Listei aqui 13 desses fatores. Não são fórmulas, nem garantias, mas são pistas. Ou melhor, são sementes que, com cuidado e presença, podem criar raízes fortes o bastante para sustentar uma história a dois.

1. Companheirismo

Há dias em que o amor parece só isso: estar ali. Seja no cansaço, na rotina ou no trânsito congestionado do fim do dia… Companheirismo é o que transforma a presença em cuidado.

Não é sobre concordar sempre ou ter os mesmos gostos. É sobre não deixar o outro sozinho quando o mundo fica pesado demais.

2. Filhos

Ter filhos muda tudo! E é justamente por isso que o casal precisa se lembrar do que existe para além da parentalidade.

Filhos dão trabalho, ocupam espaço, demandam energia. O amor de casal precisa continuar existindo mesmo ali, no meio do “caos”, porque é desse amor que vem boa parte da estrutura emocional que sustenta a família inteira.

3. Estabilidade emocional

Ninguém nasce pronto, mas é preciso querer crescer. Relações são laboratórios emocionais: revelam nossas fortalezas e nossas feridas. Ter estabilidade emocional não é nunca explodir; é saber se responsabilizar quando isso acontece.

Quem coloca tudo nas costas do outro acaba esgotando a relação. Quem evita olhar para dentro de si mesmo, repete os mesmos erros. Amor maduro pede que cada um se responsabilize pelo que sente e pelo que leva para a relação.

4. Estabilidade financeira

Não dá para romantizar: dinheiro impacta relação. O estresse financeiro desgasta, cria tensão, atrapalha o afeto. A falta de conversa sobre o assunto também.

Não importa o modelo adotado, o que conta é o acordo claro, o respeito e a sensação de que ninguém está levando tudo nas costas sozinho.

5. Reconhecimento público e status

Para algumas pessoas, ser visto ao lado de quem se ama importa. É estar incluído na vida social, apresentado com afeto, lembrado nas conversas.

Não é sobre fazer post com legenda clichê. É sobre não ser invisível. O amor pode ser discreto, mas não deve ser escondido.

6. Valores e visão de mundo compartilhados

Quando os valores combinam, a vida anda mais fluida. Decisões difíceis ficam menos pesadas. As prioridades batem e a relação não vira cabo de guerra.

Não precisa ser tudo igual. Mas os pilares — respeito, visão de futuro, jeito de lidar com outras pessoas e com o mundo — precisam conversar entre si.

7. Comunicação clara e empática

O que não é dito apodrece por dentro. Casal que aprende a conversar com empatia resolve muita coisa antes que vire bomba.

Fale com verdade, ouça de coração aberto e pergunte sem rodeios. Evite adivinhações e recados disfarçados. Priorize afeto e clareza na conversa.

8. Projetos e crescimento em comum

Ter um plano, uma ideia ou um projeto juntos faz bem. Pode ser uma casa, uma viagem, um livro, uma horta ou melhorar o mundo que os cerca. Seja o que for…

O importante é que exista futuro compartilhado, não só passado lembrado. Crescer lado a lado, com propósito, fortalece a relação.

9. Sexualidade e desejo

O corpo se expressa quando as palavras falham. E o desejo, quando aparece ou desaparece, costuma dizer muito sobre o que está vivo ou faltando na relação. Se a vida sexual some ou vira obrigação, algo deve ser olhado.

O desejo é frágil, mas também pode ser reativado com escuta, leveza e reconexão. A forma como a gente se toca, se olha, se aproxima comunica muito. A sexualidade fala. E o desejo reflete: mostra como nos sentimos com o outro e com a gente mesmo dentro da relação.

10. Tempo e qualidade de presença

Não adianta estar do lado se a cabeça está longe. Presença não é só estar lá, é estar inteiro.

Cinco minutos de atenção genuína valem mais do que um dia inteiro de presença distraída. É disso que a relação se alimenta.

11. Autonomia e espaço individual

Estar junto não é virar um só. Amor maduro respeita espaço, incentiva crescimento individual, não tenta controlar.

Quem tem autonomia não precisa fugir da relação para respirar. E quem ama com liberdade, volta querendo ficar.

12. Capacidade de reparar rupturas

Todo casal erra. A questão é o que se faz depois. É essencial saber pedir desculpas de coração, perdoar de verdade, escutar com presença e mudar de atitude.

Reparar não é apagar o que houve, é reconstruir com mais verdade.

Tem gente que nunca briga. E tem gente que briga demais. O que sustenta é saber voltar depois da quebra.

13. Rituais e renovação simbólica

Todo amor precisa de gestos, de lembranças e de ritmo. Um jantar especial, um cartão com uma mensagem escrita à mão, um apelido carinhoso, um sorriso cheio de cumplicidade. Pequenos rituais dizem: “isso aqui importa pra mim”.

Ritual não é obrigação. É escolha. E é também memória futura.

Conclusão

Relação viva é aquela que se cuida, se escuta e se reinventa — sem perder o que tem de essencial.

Não é sobre perfeição. É sobre constância. É sobre escolher, todo dia, cultivar o que vale a pena.

E quando os dois estão nessa, o amor não só dura — ele floresce.

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Eros, Philia e Ágape: Três Formas de Amar em uma Relação a Dois

Quando falamos sobre amor em um relacionamento, tendemos a usar uma única palavra para expressar algo que, na prática, é multifacetado e dinâmico. A tradição grega antiga nos oferece uma chave interessante para entender melhor essa complexidade: ela nomeia três formas distintas de amor — Eros, Philia e Ágape.

Esses três aspectos não competem entre si. Pelo contrário, eles se complementam e podem coexistir em diferentes proporções ao longo da vida a dois. Conhecer suas características nos ajuda a cultivar vínculos mais conscientes e duradouros.

Eros – Desejo, atração e encantamento

Eros é o amor do impulso e da conexão física. É o que nos aproxima do outro nos primeiros encontros, aquilo que provoca fascínio, excitação e a sensação de urgência. É uma força vital que desperta o desejo, o toque, o olhar atento.

Nos relacionamentos duradouros, Eros tende a mudar de forma. Pode perder intensidade se não for cuidado, mas também pode se renovar em novas fases da vida a dois. A intimidade física, o prazer mútuo e o desejo cultivado com intenção mantêm essa dimensão viva — não como no início, mas com mais profundidade.

Philia – Amizade, companheirismo e confiança

Philia é o amor da convivência, da admiração mútua e da cumplicidade. É o vínculo que se constrói quando aprendemos a gostar do outro como pessoa — não só como objeto do nosso desejo. É o amor que se expressa em conversas tranquilas (às vezes, intensas e corajosas), apoio nas dificuldades, projetos compartilhados e risos espontâneos.

Essa dimensão é essencial para a sustentação do vínculo. É quando o casal se torna também amigo, parceiro, alguém com quem é possível dividir tanto as dúvidas quanto os sonhos. Com o tempo, Philia aprofunda a base do relacionamento, tornando-o mais estável e acolhedor.

Ágape – Amor consciente, entrega e transcendência

Ágape é uma forma de amor que transcende o desejo e o vínculo emocional imediato. Trata-se de uma entrega mais profunda, marcada por empatia, escuta e presença consciente.

Diferente de Eros e Philia, que foram amplamente discutidos na filosofia grega, Ágape ganhou destaque principalmente na tradição cristã, onde passou a representar o amor incondicional e generoso, com uma dimensão espiritual e ética.

Ágape não significa passividade ou anulação pessoal. É um tipo de amor que se manifesta na capacidade de cuidar, perdoar e escolher estar junto, mesmo quando há falhas e imperfeições. Ele convida à maturidade emocional e à construção consciente do vínculo.

A seguir, uma visão comparativa dos três tipos de amor, destacando suas contribuições e os desafios que podem surgir quando estão em desequilíbrio.

Tipo de AmorFunção na RelaçãoRiscos Quando Isolado ou Desequilibrado
ErosAlimentar a intimidade física e emocional; criar conexão pelo desejo e encantamento.Pode ser passageiro e ilusório. Sem base emocional, tende a se esgotar com o tempo.
PhiliaSustentar a convivência no longo prazo; fortalecer o vínculo por meio da amizade, respeito e confiança.Sem Eros, pode virar apenas parceria funcional.
Sem Ágape, pode faltar profundidade.
ÁgapeSer o eixo ético e espiritual da relação; promover empatia, perdão e crescimento mútuo.Quando não equilibrado, pode gerar autoanulação ou relações assimétricas.

Amar é também um exercício de consciência

Nenhum desses três amores é suficiente por si só. Eles se misturam, mudam de intensidade e exigem cuidado constante. Um relacionamento saudável é aquele em que Eros, Philia e Ágape não competem, mas colaboram — cada um oferecendo sua força no momento certo.

Cultivar esse equilíbrio é um caminho possível para construir vínculos mais conscientes, afetivos e verdadeiros. Afinal, amar também é um verbo: exige ação, presença, escolha e construção diária.

No próximo post, apresentarei 13 fatores práticos que influenciam diretamente a sustentação de uma relação a dois.

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O que Muda com a Nova Faixa de Isenção do Imposto de Renda até R$ 5 Mil Mensais?

No dia 16 de julho de 2025, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou o relatório do deputado Arthur Lira, que atuou como relator do projeto de reformulação do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). A medida mais emblemática é a ampliação da faixa de isenção para todos os contribuintes que recebem até R$ 5 mil por mês, com vigência prevista para o ano-base de 2026.

A proposta ainda precisa ser votada em plenário e posteriormente analisada pelo Senado Federal, mas já mobiliza discussões entre setores da sociedade civil, economistas e lideranças empresariais.

Este artigo apresenta os principais pontos do projeto, os grupos mais beneficiados, as medidas compensatórias para manter a neutralidade fiscal e o impacto estimado nas contas públicas.

Quem será beneficiado?

Segundo estimativas do Ministério da Fazenda e da Receita Federal, cerca de 37 milhões de contribuintes brasileiros ficarão isentos do IR, um aumento de 13 milhões de pessoas em relação à regra atual. A nova faixa contempla:

  • Assalariados e aposentados com rendimentos de até R$ 5 mil mensais;
  • Profissionais autônomos e MEIs com rendimentos brutos anuais até R$ 60 mil;
  • Pessoas físicas que, após deduções (dependentes, saúde, educação), alcancem renda líquida abaixo do novo teto;
  • Além disso, contribuintes com rendimentos mensais entre R$ 5.000,00 e R$ 7.350,00 também terão redução no valor do imposto pago, devido ao ajuste da tabela progressiva e da faixa de isenção ampliada.

A medida tem forte impacto distributivo, aliviando a carga tributária da classe média e ampliando o poder de consumo.

Como será compensada a perda de arrecadação?

A ampliação da faixa de isenção representa uma renúncia fiscal de R$ 27,9 bilhões por ano, segundo estimativa oficial. Para cumprir a meta de neutralidade fiscal, o projeto propõe três frentes de compensação:

1. Alíquota mínima para altas rendas (IRPFM)

Será instituído um Imposto de Renda Pessoa Física Mínimo (IRPFM) sobre a soma total de rendimentos, incluindo salários, aluguéis, dividendos e ganhos de capital.

A nova regra:

  • Não incide sobre rendas anuais até R$ 600 mil (R$ 50 mil/mês);
  • Cresce progressivamente entre R$ 600 mil e R$ 1,2 milhão/ano;
  • Ativa alíquota mínima de 10% para rendas acima de R$ 1,2 milhão.
Rendimento Anual (R$)Mensal (R$)Alíquota Mínima Efetiva (%)Observação
R$ 600.000R$ 50.0000%Limite de isenção da alíquota mínima
R$ 700.000R$ 58.3331,67%Início da incidência
R$ 800.000R$ 66.6663,33%
R$ 900.000R$ 75.0005,00%
R$ 1.000.000R$ 83.3336,67%
R$ 1.100.000R$ 91.6668,33%
R$ 1.200.000R$ 100.00010,0%Teto da alíquota mínima

Essa medida busca garantir que altas rendas não escapem da tributação progressiva, mesmo utilizando isenções ou deduções legais.

2. Tributação de dividendos acima de R$ 50 mil por mês

O projeto retoma a tributação sobre lucros e dividendos pagos a pessoas físicas, hoje isentos. A regra:

  • Isenta valores de até R$ 50 mil mensais por empresa;
  • Aplica IRRF de 10% sobre o valor excedente, retido na fonte;
  • Permite que esse valor seja compensado com o IRPFM anual.

O objetivo é atingir sócios e acionistas com rendimentos elevados, preservando pequenos empresários.

3. Outras medidas compensatórias

O relatório também inclui:

  • Tributação de investimentos no exterior;
  • Eliminação de deduções específicas e regimes privilegiados;
  • Extinção de dispositivos que permitiriam “neutralizar” a alíquota mínima.

Impacto fiscal da reforma (base anual)

MedidaValor (R$ bilhões)
Total da renúncia fiscal estimada-27,9
Tributação mínima (IRPFM) para rendas altas+12,0
Tributação de dividendos (acima de R$ 50 mil/mês)+9,8
Tributação sobre investimentos no exterior+4,5
Fim de isenções e deduções específicas+2,6
TOTAL DE ARRECADAÇÃO COMPENSATÓRIA+28,9
RESULTADO LÍQUIDO (SUPERÁVIT FISCAL)+1,0

O que é a meta de neutralidade fiscal?

A meta de neutralidade fiscal é o princípio segundo o qual toda perda de arrecadação provocada pela reforma deverá ser compensada por novas receitas. Essa diretriz foi estabelecida pela equipe econômica para preservar o equilíbrio fiscal, conforme determina o novo arcabouço em vigor desde 2023.

“A medida expande justiça social e equidade sem comprometer a responsabilidade fiscal.”
Ministério da Fazenda – Apresentação PL 1087/2025

Conclusão

A proposta aprovada pela Comissão Especial representa um importante avanço na direção de um sistema tributário mais justo, progressivo e transparente. Ao isentar milhões de brasileiros com renda média e tributar de forma proporcional as rendas muito altas, o texto enfrenta distorções históricas do IR brasileiro.

Contudo, a proposta ainda precisa ser votada pelo Plenário da Câmara e pelo Senado Federal. Até lá, ajustes e emendas poderão ser apresentados — inclusive por setores que buscam reverter ou atenuar os dispositivos de tributação sobre dividendos e alta renda.

Será essencial acompanhar os próximos passos para entender o formato final da reforma e seus efeitos práticos na vida de milhões de contribuintes.

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Os Setores Mais Atingidos pela Tarifa de 50% dos EUA – Atualização

Ontem, o governo dos Estados Unidos confirmou oficialmente que a tarifa de 50% sobre produtos brasileiros entrará em vigor no próximo dia 6 de agosto de 2025. A medida inclui uma lista inicial de 694 exceções, cujos produtos serão tributados à alíquota base de 10%, em vez da sobretaxa integral. Apesar da confirmação do cronograma, o cenário ainda é de incerteza, já que a lista de exceções pode ser revista ou ampliada nos próximos dias, a depender das pressões diplomáticas e empresariais em curso.

Neste contexto, este post aprofunda a análise iniciada em meu artigo anterior, trazendo agora uma avaliação detalhada dos setores mais expostos à nova tarifa e uma estimativa das possíveis perdas econômicas. Com base em dados oficiais de 2024 e nas exclusões conhecidas até o momento, estima-se que cerca de US$ 20,4 bilhões em exportações brasileiras seguirão sujeitos à alíquota máxima, o que representa aproximadamente metade do total exportado aos Estados Unidos no último ano.

Embora a agência Reuters tenha divulgado que apenas 35,9% das exportações brasileiras aos EUA serão afetadas, essa estimativa se baseia em linhas tarifárias específicas. Neste relatório, adoto uma abordagem setorial mais ampla, que considera o valor total exportado por grupos de produtos não incluídos na lista de exceções. Por isso, a estimativa é mais conservadora: cerca de metade do valor exportado em 2024 permanece exposto à tarifa de 50%.

Setores Afetados pela Sobretaxa

Setor AfetadoExportações 2024 (US$ bi)
Alimentos processados e derivados de soja /milho / açúcar7,4
Têxteis, calçados, autopeças e máquinas leves6,5
Produtos químicos e farmacêuticos2,4
Suco de frutas (exceto laranja)1,2
Café1,9
Carne bovina1,0
Total estimado sujeito à sobretaxa≈ 20,4

Fontes: CACEX/MDIC – ComexStat 2024, Carta Icomex FGV jun/2025 e Reuters (30 e 31/07/2025).

Estimativas de Perdas Econômicas

As projeções abaixo simulam perdas em três níveis de impacto sobre as exportações:

SetorBaixo (30%)Médio (45%)Alto (60%)
Alimentos processados e derivados de soja / milho / açúcar2,223,334,44
Têxteis, calçados, autopeças e máquinas leves1,952,933,90
Produtos químicos e farmacêuticos0,721,081,44
Suco de frutas (exceto laranja)0,360,540,72
Café0,570,861,14
Carne bovina0,300,450,60
Total estimado de perdas6,129,1912,34

Cálculo:
Perda Estimada = Exportação 2024 × Fator de Impacto (30%, 45% ou 60%)

Metodologia baseada em análises da OCDE, Banco Mundial e estudos comparativos de guerras comerciais anteriores.

Caminhos de Mitigação

As principais estratégias recomendadas por setor incluem:

  • Café, carnes, sucos: redirecionar exportações para Ásia e Oriente Médio.
  • Têxteis e autopeças: acelerar acordos comerciais (Mercosul–UE) e diferenciação industrial.
  • Produtos químicos e farmacêuticos: diversificar mercados e ampliar estoques reguladores.
  • Alimentos processados: promoção internacional e estímulos fiscais à exportação indireta.

Conclusão

A tarifa de 50% representa uma ameaça concreta para setores-chave da economia brasileira. Mesmo com uma lista inicial de 694 exceções, a medida tem potencial de causar perdas entre US$ 6 e 12 bilhões, o que equivale a até 0,35% do PIB brasileiro em 2025. O Brasil, no entanto, possui instrumentos fiscais, diplomáticos e comerciais para reduzir esse impacto e fortalecer sua posição estratégica em cadeias globais.

As estratégias recomendadas incluem:

  • Negociação diplomática com o governo dos EUA para ampliar as exceções;
  • Diversificação de mercados exportadores visando Ásia, Oriente Médio e UE;
  • Retaliação seletiva, o Brasil pode aplicar tarifas adicionais sobre produtos importados dos Estados Unidos, escolhendo setores em que o país tenha menor dependência externa ou alternativas competitivas;
  • Ações de apoio interno como drawback ampliado e créditos fiscais para setores afetados.

Atualização – 20 nov 2025: O governo dos EUA anunciou ontem a remoção da sobretaxa de 40% para diversos produtos agrícolas brasileiros — entre eles carne bovina, café e alguns sucos/frutas tropicais — fazendo com que essas exportações voltem a enfrentar apenas a alíquota-base (~10%). Esse movimento reduz em 3 a 4 bilhões de dólares o impacto para o agronegócio (que, na estimativa original, era fortemente atingido). No entanto, os setores industrializados — como têxteis, calçados, máquinas, bens de capital e químicos — seguem “fora da lista de alívio” (em torno de 16 bilhões de dólares) e mantêm alíquotas elevadas (~50%). Ou seja: o choque não desapareceu, só se deslocou. A avaliação inicial feita no post de 31 de julho permanece válida, mas com o agronegócio ganhando uma janela de recuperação e a indústria continuando vulnerável.

Seguirei acompanhando esse tema. Para quem ainda não leu, recomendo o post anterior como introdução:

O que muda com a tarifa de 50% dos EUA sobre produtos do Brasil

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O que muda com a tarifa de 50% dos EUA sobre produtos do Brasil?

No início de 2025, o governo dos Estados Unidos sinalizou a possibilidade de impor tarifas adicionais sobre produtos brasileiros. Após meses de incerteza, a medida foi confirmada oficialmente no dia 9 de julho, quando uma carta assinada pelo presidente Donald Trump foi enviada ao governo brasileiro, anunciando a aplicação de uma tarifa de 50% sobre todas as importações originadas do Brasil. Este artigo analisa, com base em dados oficiais de 2024, os setores afetados, o impacto estimado no PIB e alguns mecanismos existentes para mitigar prejuízos.

Exportações do Brasil para os EUA: dados oficiais

De acordo com o ComexVis (MDIC/SECEX), o Brasil exportou US$ 40,4 bilhões para os Estados Unidos em 2024, o maior valor já registrado no comércio bilateral. Segundo o Instituto Brasileiro de Economia da FGV:

“As exportações brasileiras para os EUA atingiram recorde histórico em 2024, com destaque para petróleo bruto, ferro-gusa, café e aeronaves. Esses quatro itens responderam por mais de 30% do total exportado ao país.”
Carta Icomex FGV, junho/2025

Os principais setores exportadores afetados

Com base nos dados do MDIC e da FGV, os principais setores atingidos pela tarifa de 50% são:

ProdutoValor exportado
(US$ bi)
Participação nas exportaçõesCapacidade de Substituição
nos EUA
Petróleo bruto5,6614%Alta (mas logística sensível)
Ferro/aço semimanuf.3,558,8%Moderada
Aeronaves (Embraer)2,716,7%Baixa
Café1,904,7%Baixa
Ferro-gusa/ligas1,784,4%Moderada
Óleos combustíveis1,744,3%Moderada
Celulose1,664,1%Baixa
Suco de frutas1,213%Baixa

Total parcial: US$ 20,2 bilhões (≈ 50% das exportações totais de 2024).

O que compõe os “outros” US$ 20 bilhões exportados?

Segundo o MDIC e balanços do comércio exterior de 2024, os demais produtos incluem:

  • Soja, milho e açúcar: US$ 2,0 bi
  • Madeira serrada, papel kraft e derivados: US$ 1,3 bi
  • Minérios (exceto ferro): US$ 2,5 bi
  • Alumínio e derivados: US$ 0,8 bi
  • Produtos químicos, cosméticos e farmacêuticos: US$ 3,0 bi
  • Autopeças e máquinas leves: US$ 2,5 bi
  • Bens de capital diversos e têxteis: US$ 1,5 bi
  • Outros produtos manufaturados e alimentos processados: US$ 6,4 bi

“A pauta de exportação brasileira aos EUA tem se diversificado nos últimos anos, incluindo produtos de maior valor agregado como cosméticos, partes para máquinas e bens intermediários.”
Relatório Cacex/MDIC, jan/2025

O que o Brasil compra dos EUA?

Em 2024, o Brasil importou US$ 40,6 bilhões dos Estados Unidos. Os principais produtos foram:

ProdutoValor (US$ bi)Capacidade de SubstituiçãoRisco em caso de retaliação
Máquinas e motores industriais6,2BaixaAlto
Produtos químicos e farmacêuticos7,0ModeradaAlto
Combustíveis e gás natural5,6ModeradaMédio
Polímeros e plásticos industriais4,5ModeradaMédio
Aeronaves e peças2,0BaixaAlto
Equipamentos médicos/eletrônicos3,5AltaBaixo

Retaliação provavelmente recairá sobre esses setores de maior impacto econômico e político, demarcando áreas onde há espaço de pressão real sobre produtos norte-americanos.

Impactos no PIB dos dois países

Com base na dependência comercial e nos setores afetados:

PaísImpacto estimado% do PIB
BrasilUS$ 5 a 6 bi~0,25%
EUAUS$ 8 bi~0,04%

Os efeitos são desproporcionais. Embora os EUA sofram menos em termos relativos, alguns setores sentirão impacto direto — especialmente companhias aéreas e redes de alimentos.

O papel do Ex-Tarifário e do Drawback no Brasil

Ex-tarifário

Permite a redução a zero do imposto de importação sobre máquinas e equipamentos sem produção nacional. Beneficiou empresas como Embraer, Weg e Ambev ao permitir modernização industrial com menor custo. Segundo o MDIC:

“O regime de Ex-tarifário é essencial para a modernização da indústria nacional e atratividade de novos investimentos produtivos.”
Nota Técnica MDIC 001/2025

Drawback

Suspende ou isenta tributos sobre insumos importados utilizados na produção de bens exportados. Este regime tributário foi usado por empresas como JBS, BRF, Tramontina e Suzano para aumentar competitividade internacional.

“O drawback é responsável por reduzir o custo das exportações em até 30% em setores como o automotivo, alimentício e químico.”
Manual de Drawback – Receita Federal, ed. 2024

Esses dois instrumentos explicam por que a tarifa média efetiva de importação dos EUA no Brasil em 2024 foi de apenas 2,7%, apesar da tarifa externa comum do Mercosul ser maior.

Conclusão

A imposição de uma tarifa de 50% por parte dos EUA representa um desafio significativo para setores estratégicos da economia brasileira — especialmente petróleo, aviação, agroindústria e siderurgia. A diversificação da pauta exportadora, no entanto, ajuda a mitigar parte dos efeitos. Ao mesmo tempo, os EUA também podem sentir falta de produtos que só o Brasil oferece em grande escala e com bons preços.

O Brasil tem instrumentos inteligentes — como o ex-tarifário e o drawback — que ajudam a reduzir custos e manter a competitividade. Mas, se a disputa comercial crescer, será necessário buscar novos mercados, fortalecer a indústria interna e ampliar acordos comerciais.

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Os 7 Pilares para um Relacionamento Consciente

Há um tempo, assisti a um vídeo do Jonas Masetti, professor tradicional de Vedanta, sobre os sete fundamentos para um relacionamento saudável. A proposta é simples, mas poderosa: repensar o amor como uma prática consciente — não como ideal romântico ou tarefa de autossacrifício.

Os pontos me tocaram porque são, ao mesmo tempo, espirituais e profundamente humanos. Reflito sobre cada um deles a seguir, com um olhar aberto e, espero, útil para quem também busca construir vínculos com mais verdade e presença.

  1. Sacrifício não é símbolo de amor

      Durante muito tempo, aprendemos que amar é se sacrificar, que a prova do amor está na renúncia. Quanto mais você sofre, mais ama. Mas essa lógica, quando vivida de forma crônica, tende ao desequilíbrio e à perda de si mesmo.

      O amor saudável envolve generosidade, mas não exige autoanulação. A verdadeira entrega nasce da liberdade, não da obrigação.

      Amar não é se apagar para que o outro brilhe — é iluminar juntos, respeitando a própria chama.

      2. Local de fala

        Todos nós falamos a partir de uma história com vivências, traumas, referências e expectativas. Em um relacionamento, respeitar o local de fala do outro é mais do que escutar. É compreender que o que ele sente não precisa fazer sentido para mim para ser legítimo.

        É sair do lugar da defesa e entrar no campo da empatia. E isso só é possível quando reconhecemos que não somos o centro da experiência do outro.

        Escutar com presença é reconhecer que o outro tem um mundo próprio que merece ser visitado com respeito.

        3. Amor não é troca

        Essa é talvez uma das mudanças mais desafiadoras. Em muitos relacionamentos atuais, nos acostumamos a amar esperando algo em troca: reconhecimento, afeto, estabilidade, cuidado. Mas o amor verdadeiro é doação, não barganha.

        Claro, reciprocidade é importante. Mas quando o amor se baseia na expectativa de retorno, ele se torna transação, não vínculo.

        Amar é oferecer o melhor de si sem transformar isso em cobrança. E confiar que o outro saberá responder com o que tiver de mais verdadeiro.

        4. Capacidade de ouvir

        Ouvir parece simples, mas exige esforço. A escuta verdadeira requer que a gente suspenda julgamentos, respostas prontas e a vontade de “corrigir” o outro. Requer presença.

        Ouvir, deste modo, é um exercício de silêncio interno, uma forma de entrega. E é isso que transforma conversas comuns em momentos de conexão real.

        Ouvir não é natural, é escolha — uma prática consciente de abertura e respeito.

        5. Demonstrações de amor em suas diferentes linguagens

        Nem todo mundo se sente amado da mesma forma. Cada pessoa se sente amada de maneiras distintas — seja por meio de palavras carinhosas, do toque, de um presente significativo, de uma ajuda prática ou da simples presença atenta. O amor precisa ser comunicado na linguagem que o outro compreende.

        Reconhecer e praticar essas formas de expressão é essencial para nutrir o vínculo afetivo. Não basta amar em silêncio ou apenas da forma que nos é natural. Amar também é aprender a se comunicar fora da própria zona de conforto.

        Amar é falar na língua emocional do outro — mesmo que, no início, seja com “sotaque”.

        6. Celebrar o não

        Este talvez seja o ponto mais contraintuitivo. Em um mundo que valoriza o “sim” como sinal de aceitação, aprender a dizer “não” e a acolher o “não” do outro são gestos de maturidade.

        O “não” preserva a individualidade e fortalece a confiança. Relacionamentos saudáveis são aqueles em que se pode discordar e recusar — e, mesmo assim, continuar juntos.

        Celebrar o “não” é confiar que o amor é forte o suficiente para sustentar os limites e as diferenças.

        7. Os três propósitos: individuais, da relação e da evolução espiritual

        Esse ponto sintetiza uma visão elevada do relacionamento como um caminho de crescimento. Quando os propósitos individuais são respeitados, o projeto da relação é nutrido, e ambos crescem espiritualmente. Há alinhamento profundo e a relação se torna um campo fértil. Não é só afeto, é também aprendizado, transformação e sentido.

        É uma visão que transcende o amor romântico e o coloca como prática de autoconhecimento. Relacionar-se, desta forma, é ser espelho e espaço de crescimento mútuo. Os três propósitos atuam como bússola. Sem eles, a relação perde o norte e se desgasta na rotina.

        Relacionar-se é partilhar uma travessia. E cada um carrega algo que o outro precisa para seguir mais inteiro.

        Conclusão

        Relacionamentos conscientes não são perfeitos, mas são “mais reais”. São feitos de presença, escuta, verdade e afeto expressado de forma concreta. Não exigem que sejamos outra pessoa, apenas que sejamos inteiros, com coragem para crescer e amar ao mesmo tempo.

        Se você está em uma relação, talvez esses pontos sirvam como um convite à conversa. Se está só, podem servir como um espelho, porque, no fundo, o primeiro relacionamento que exige consciência é o que temos com nós mesmos.

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        Post 300 – A Resistência contra o Colapso da Blogosfera

        E não é que este blog chegou ao tricentésimo post?! Em tempos em que muita gente torce o nariz até para vídeos com mais de cinco minutos no YouTube, como estimular a leitura de textos com mil palavras?

        Com a ascensão da inteligência artificial, respostas instantâneas dispensam visitas a sites ou blogs. Ainda assim, continuo resistindo. Escrever, para mim, é um exercício vital — de reflexão, expressão e partilha.

        Por isso, neste marco simbólico, não pude deixar de lembrar dos trezentos de Esparta, que resistiram ao poderoso exército persa no desfiladeiro de Termópilas. No início do ano, li o romance histórico Portões de Fogo, de Steven Pressfield, e confesso: identifiquei-me com Dienekes, o guerreiro que acreditava que o verdadeiro campo de batalha era interior. Quem sabe, em breve, escrevo sobre isso. Por ora, sigo firme — com minha lança, meu escudo e meu notebook.

        Nestes últimos cem posts, diversidade não faltou…

        O post nº 202 tratou do reuso de água durante a crise hídrica de São Paulo (2014–2015). Também publiquei uma apresentação didática para crianças sobre poluição hídrica, com roteiro e explicações de slides.

        O tema da sustentabilidade apareceu em vários momentos. Comecei com uma mesa-redonda durante uma feira ambiental na Alemanha — Por um Mundo mais Sadio e Justo: o Lixo e a Consciência. Ali conheci o conceito de economia circular. Anos depois, fiz um curso do MIT sobre este tema e publiquei seis artigos baseados nas reflexões do curso. A pergunta segue: ainda temos tempo para discutir o aquecimento global?

        As proteínas vegetais entraram na pauta com uma carta aberta à Revista dos Vegetarianos e em uma conversa que tive com Pat Brown, fundador da Impossible Foods. Também compartilhei como preparar proteína texturizada de soja e um saborosíssimo estrogonofe vegano.

        Criei uma série com quatro textos que conectam físico-química e comportamento humano. Expliquei, de forma descomplicada, conceitos como a Primeira Lei da Termodinâmica, reações químicas, energia de ativação, equilíbrio químico e soluções tampão. Afinal, tem gente endotérmica e exotérmica!

        Lá em 2016, escrevi sobre os algoritmos das redes sociais e a formação de bolhas digitais. Em 2017, manifestei preocupação com a ascensão do nacionalismo e as ameaças à democracia. Em 2020, após ler Engenheiros do Caos, de Giuliano Da Empoli, algumas peças se encaixaram. A busca pelos “Arquitetos da Ordem” continua.

        A polarização daquele período levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff e, pouco depois, à ascensão do Bolsonarismo. Vários posts trataram do governo Bolsonaro, inclusive sobre o início da pandemia — O Triste Clown e seu All-In.

        Comemorei meu cinquentenário com uma série de reflexões sobre a vida. Agora, rumo aos sessenta, sigo na luta…

        Em 2017, fraturei a perna jogando futebol com minhas filhas no quintal. No ano seguinte, contei o que aconteceu depois. E em 2024, contei o surgimento do “Vicente maratonista“, uma consequência surpreendente do acidente de 2017.

        Em um momento mais leve, nasceu a “Trilogia das Sílfides”: histórias fantasiosas sobre jabuticabas, beija-flores e o mormacento verão de Porto Alegre.

        Li As Seis Lições, de Ludwig Von Mises, e escrevi três artigos sobre convergências e divergências. O mundo mudou desde os anos 1950, mas muitos ainda defendem um liberalismo sem freios. Também sugiro ler Autofagia Liberal e Umbigocentrismo e refletir sobre as Três Formas Modernas de Escravidão.

        Parece que muita gente cristalizou posições. Esquecem que polaridade e ritmo são essenciais para uma vida saudável.

        2021 ainda era pandêmico… Escrevi sobre a convivência familiar em tempos de quarentena. Em agosto, perdi minha mãe, Dona Ladi, e fiz uma homenagem com Descartes, Shakespeare e Hilel, o Ancião como testemunhas.

        Li A Revolta de Atlas, de Ayn Rand. Depois de devorar suas 1.200 páginas, escrevi sobre a autora, Francisco D’Anconia, Ragnar Danneskjöld e Ellis Wyatt. Mas esse capítulo ainda não terminou, porque — afinal — quem é John Galt?

        O Papa Francisco, que infelizmente nos deixou, foi citado em um post sobre polarização política. Parece que todos precisam ser rotulados em alguma caixinha.

        O Islamismo foi tema de outros textos. Como escrevi certa vez: Para obter a paz não basta uma vitória militar sobre o Estado Islâmico — ou sobre o Hamas.

        Este blog passou por temas como eutanásia, maioridade penal, empatia, cancelamento digital, David Bowie, Marie Curie, o filme Fragmentado e o último Matrix.

        Fiz uma fusão entre Coringa, Osho e Krishnamurti para falar dos riscos de seguir líderes cegamente. Este tema volta no que considero meu melhor artigo dos últimos cem: I’m Not Dog No – A Servidão Voluntária.

        Quando deixei o conforto da CLT, escrevi As Gaiolas e o Corvo. Porque, sim, tanto a falta, quanto o excesso de propósito podem nos devastar.

        Não sou Martha Medeiros, nem Fabrício Carpinejar, mas escrevo sobre relacionamentos porque a vida me provoca. Por isso, surgiram textos como O Amor Constrói, a Paixão e o Ódio Arrasam Quarteirões; Dores, Crescimento Pessoal e Cicatrizes; Relacionamentos São como Pudins; e, parafraseando Fernando Pessoa: Correr é Preciso, Viver Não é Preciso.

        Chegarei ao post 400? Só o tempo dirá…

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        Os Números de 2024 de World Observer by Vicente Manera

        O WordPress enviou, até 2015, um relatório com as principais estatísticas sobre meu blog. Como este serviço foi descontinuado, decidi criar um post inspirado na mesma estrutura a partir de 2017. Neste início de ano, mantenho esta nova tradição para que os leitores do blog possam acessar os dados de 2024.

        No ano passado, tive novas experiências. Uma das mais marcantes foi o processo de preparação para a Maratona Internacional de Porto Alegre. O link do post sobre o ciclo de treinos e a prova em si está abaixo.  

        O Que Aprendi ao Correr Uma Maratona – O Homem de Lata, o Espantalho e o Leão Covarde de Oz

        Momento em que cruzei o Mercado Público durante a Maratona Internacional de Porto Alegre.

        A Maratona Internacional de Porto Alegre é considerada a mais rápida do Brasil por ser plana, no nível do mar e realizada em clima frio. Deste modo, esta prova atraia muitos atletas amadores que desejam baixar suas marcas. Em 2024, devido às trágicas enchentes no estado do Rio Grande do Sul, a prova foi transferida para o final de setembro. A prova principal de 42 km no domingo contou com a participação de 5,5 mil corredores, número um pouco inferior aos 6 mil atletas de 2023.

        Em 2024, este blog foi acessado mais de 13 mil vezes. Este número de acessos é um pouco superior ao número de participantes da prova da maratona, em Porto Alegre, dos últimos dois anos.

        Foram publicados 12 artigos em 2024. Assim o número total de artigos publicados desde 2009 chegou a 297.

        Estes são os 10 posts com mais visualizações no World Observer by Vicente Manera em 2024:

        1. Segredinho no preparo da Proteína Texturizada de Soja (publicado em setembro de 2014);
        2. Por que Netflix Errou ao Lançar o Filme Radioactive sobre Marie Curie? (publicado em maio de 2021);
        3. Rei Lear – A Velhice e a Sabedoria (publicado em novembro de 2011);
        4. Há Dois Mil Anos Atrás – O Genial Heron de Alexandria (publicado em dezembro de 2013);
        5. Já Temos a Tese e a Antítese – Chegou a Hora da Síntese (publicado em outubro de 2009);
        6. Fragmentados – Somos Kevin Crumb (publicado em setembro de 2021).
        7. Claude Monet e as Ninfeias (publicado em outubro de 2011);
        8. Pasta de Dente e o Ventilador: Como Acelerar as Mudanças na sua Empresa (publicado em setembro de 2009);
        9. A Estranha Educação da Língua Portuguesa (publicado em dezembro de 2017);
        10. Os Múltiplos Papéis da Mulher no Mundo Atual (publicado em novembro de 2013).

        Fica claro que o blog virou referência em vários assuntos, porque oito dos dez posts mais acessados foram publicados há mais de cinco anos.

        Em dezembro de 2023, concluí um curso do MIT sobre “Economia Circular”. Em janeiro e fevereiro de 2024, publiquei 6 posts baseados nos artigos preparados durante o curso. O post publicado em 2024 com maior número de acessos foi sobre a relação entre o PIB e o Capital Natural de um país.

        Quando o Aumento do PIB Empobrece o País?

        Outro post desta série sobre gerenciamento de resíduos sólidos urbanos da cidade de São Paulo foi o mais curtido do ano, com 13 curtidas.

        O Bilionário Lixo da Cidade de São Paulo

        O blog foi encontrado através de sites de busca (principalmente o Google) por quase 8 mil pessoas.

        Os sites que mais mencionaram o blog foram Facebook, LinkedIn e WordPress.

        Pessoas de 62 países ou territórios acessaram o blog em 2024. Os leitores mais frequentes vieram, pela ordem, do Brasil, Estados Unidos, Portugal, Irlanda, China, Canadá, Alemanha, Angola, Holanda e Espanha.

        As figuras do blog receberam mais de 300 cliques e, aproximadamente, 100 downloads de arquivos foram realizados.

        Em 2024, passei por alterações profundas na minha rotina. Encarei questões importantes na minha vida pessoal que certamente continuarão reverberando em 2025. Os dois últimos posts do ano passado já trazem algumas destas reflexões.

        Dores, Crescimento Pessoal e Cicatrizes

        Correr é Preciso, Viver Não é Preciso

        Mantenho meu compromisso de trazer material de qualidade, mas com maior frequência. Além disso, experimentarei outros formatos de mídia. Aguardem…

        Agradecemos sua participação em 2024 e aguardamos suas críticas, comentários e sugestões em 2025.

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        Correr é Preciso, Viver Não é Preciso

        Vocês já perceberam que, no título deste post, estou parafraseando o grande poeta português Fernando Pessoa? Apenas substituí o verbo “navegar” por “correr”, que, no meu caso, faz mais sentido.

        Fernando Pessoa

        Correr, para mim, é essencial para manter minha sanidade física e mental. Como se diz em latim: “mens sana in corpore sano” — uma mente sã em um corpo são. Durante as corridas, reflito sobre questões que me atormentam e, quase sempre, termino o treino melhor do que comecei. Correr é uma necessidade para mim.

        Mas correr também exige precisão. Existe uma técnica para tornar os movimentos mais eficientes, reduzindo o consumo de energia. A escolha do tênis depende do tipo de pisada e do objetivo do corredor. A nutrição antes e depois da atividade também segue recomendações baseadas em conhecimento científico. Assim, podemos correr mais rápido, mais longe e com menos risco de lesões.

        A vida, ao contrário, é tudo menos precisa. Como expressou brilhantemente Fernando Pessoa, a vida é incerta, cheia de imprevisibilidades. A principal razão para isso é a complexidade dos seres humanos.

        Nos consideramos racionais, mas somos como icebergs: apenas 10% de nossa mente é consciente, visível. Os outros 90% — nosso subconsciente — são governados por emoções, intuições, instintos, experiências passadas, traumas e memórias. Esse lado submerso nos influencia de maneiras que nem sempre entendemos.

        Muitas vezes, evitamos explorar esse “lado sombrio”. Falhamos em construir autoconhecimento e, mesmo assim, acreditamos conhecer profundamente outras pessoas. Mas como podemos entender plenamente nossos parceiros amorosos, por exemplo, se nem ao menos nos conhecemos bem? Essa presunção pode levar a surpresas desagradáveis.

        Para evitar os naufrágios emocionais que surgem do desconhecido, acredito que o autoconhecimento seja essencial. Enfrente seus traumas, medos e inseguranças. Examine seus desejos e avalie se eles estão a seu favor ou contra você. Esforce-se para iluminar seu subconsciente e compreenda como você reage a diferentes situações. Não viva no automático.

        Quanto aos relacionamentos, estimule seu parceiro ou parceira a também buscar autoconhecimento. Mantenha um diálogo aberto e constante. Entenda como o outro se sente amado, pois o amor pode ser expresso de várias formas. Evite presunções; pergunte, ouça e compreenda.

        Porém, como deixei claro no título, viver não é preciso. Não temos controle sobre a maioria das coisas, muito menos sobre o coração de outra pessoa. E isso é algo positivo: tanto você quanto o outro devem preservar suas individualidades.

        Como escreveu Guimarães Rosa:

        “Às vezes, – o destino não se esquece –
        as grades são abertas,
        as almas são despertas:
        às vezes,
        quando quanda,
        quando à hora
        quando os deuses
        de repente – antes –
        a gente
        se encontra.”

        O acaso pode trazer encontros capazes de transformar nossas vidas. Por isso, só nos resta evoluir como seres humanos e viver o presente da melhor forma possível.

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        Dores, Crescimento Pessoal e Cicatrizes

        Eu defendo que só há crescimento pessoal com dor. Quando passo por um sofrimento, consigo dar a real dimensão da importância daquela perda para minha vida. E após superar o obstáculo, procuro entender o que aprendi e como o processo me fortaleceu.

        Em cada um destes momentos, alguma coisa nos faz reviver a situação e suas lições.

        Há alguns anos, fraturei minha perna direita. Passei por uma cirurgia onde inseriram duas placas e parafusos para estabilizar a fíbula, bem como uma haste no interior da tíbia. Atualmente, a única marca visível do acidente é uma cicatriz de aproximadamente 10 cm. Não houve sequelas e, depois de me recuperar, nasceu o Vicente corredor, evoluindo para Vicente maratonista em setembro de 2024.

        Minha perna direita com a cicatriz próxima ao tornozelo.

        Todas as dores que senti em décadas de jornada me ajudaram a ser melhor como pai, marido, amigo e profissional. Um ser humano melhor… Muito longe da perfeição, mas melhor. E as cicatrizes me lembram de que sou grato pelas dores que estimularam meu crescimento.

        Em 2024, tive um turbilhão de dores e alegrias. Termino o ano muito mais centrado e consciente de que, em 2025, novas dores me farão crescer mais.

        E assim continuará… A cada dor indesejada nascerá um novo aprendizado. E minhas cicatrizes serão os troféus dessas conquistas.

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        Como Deixar o Etanol Brasileiro Ainda Mais Verde e Circular

        O governo brasileiro estimulou a produção de etanol para combustível a partir da cana de açúcar através do ProÁlcool, programa iniciado em meados da década de 1970. Este programa foi revitalizado nos anos 2000.

        Lançamento do Fiat 147 a álcool (Fonte: Anfavea)

        O etanol hidratado pode ser utilizado como substituto da gasolina. E atualmente etanol anidro é adicionado na gasolina comum na proporção de 27%. Através da tecnologia “flex-fuel” (ou “dual-fuel”), a maior parte da frota de automóveis do Brasil pode usar qualquer proporção de etanol e gasolina como combustível.

        Deste modo, há uma redução na queima de combustíveis fósseis, além da plantação de cana de açúcar absorver a maior parte do CO2 emitido pelos veículos, reduzindo assim os GHG (gases de efeito estufa) na atmosfera.

        Muitas usinas produzem etanol e açúcar refinado ou apenas semirrefinado. O melaço, subproduto da produção de açúcar, pode também ser aproveitado para a produção de etanol.

        O bagaço, sólido fibroso proveniente da extração dos açúcares, é usado como combustível nas caldeiras para produção de vapor de alta pressão. Este vapor alimenta turbinas para a geração de energia elétrica e o vapor de escape atende as demandas térmicas do processo. As cinzas da queima do bagaço possuem alto teor de nutrientes minerais, sendo compostadas com outros resíduos orgânicos da usina e usados como fertilizante no canavial.

        Produção de energia elétrica a partir de bagaço de cana (Fonte: Unica)

        A fermentação alcoólica gera aproximadamente 1 kg de CO2 por kg de etanol. Ou seja, há oportunidades para o desenvolvimento do uso desta corrente. Uma aplicação existente é a produção de carbonatos “verdes” a partir do CO2 da fermentação.

        Na destilação, são produzidos grandes volumes de vinhaça. São gerados em torno de 12 litros de vinhaça por litro de etanol hidratado. Esta vinhaça possui grande quantidade de matéria orgânica (alto DQO – demanda química de oxigênio) e minerais, sendo utilizada integralmente para irrigação dos canaviais.

        Fertirrigação de um canavial (Fonte: Embrapa)

        Apesar de vários aspectos positivos da recuperação de resíduos deste processo para outros processos ou retorno para o solo, existem oportunidades a serem perseguidas.

        No campo, a palha da cana de açúcar não é levada para a usina. Deste modo, sua função atual é proteção e nutrição do solo. Há oportunidade para usar parte desta matéria orgânica para produção de energia elétrica, biogás ou etanol de segunda geração (etanol celulósico).

        A vinhaça pode ser pré-digerida anaerobicamente e produzir biogás rico em metano, antes de irrigar os canaviais. O biogás pode ser combustível para produção adicional de energia elétrica ou, após purificação, pode ser transformado em metano verde. Se houver um gasoduto próximo, este gás pode ser injetado na rede.

        Sistema de geração de biogás (Fonte: Única)

        Os caminhões, colhedoras e tratores utilizam óleo diesel como combustível. Ou seja, existe consumo de combustível fóssil para produção de combustível renovável. E o óleo diesel é um dos itens mais importantes no custeio do etanol. Estima-se que 5% de todo o diesel consumido no Brasil é utilizado no setor sucroenergético. Uma alternativa é a transformação dos motores dos caminhões em “dual-fuel” (diesel-metano). Outra opção poderia ser motores híbridos elétricos e a metano. Nestas opções, os caminhões seriam abastecidos na fila para descarregamento para a moenda de cana.

        Outro ponto, pode ser a melhoria da eficiência térmica das usinas para aumentar a geração de energia elétrica para o grid. Existem correntes quentes de vapor de baixa pressão na evaporação de caldo de cana, normalmente, sem sistema reaproveitamento energético.

        Além disso, também se poderia melhorar o aproveitamento interno da água para reduzir a captação de água limpa dos rios e poços.

        Mesmo sem estas melhorias sugeridas, o etanol de cana no Brasil é muito mais eficiente do que o etanol de milho e estima-se que gere apenas 14% das emissões de CO2 em comparação com a gasolina.

        Os principais produtos da usina, açúcar e etanol, podem ser matérias primas para obtenção de produtos verdes. O etanol, por exemplo, pode ser a matéria prima para produção de eteno (matéria prima para produção de plásticos) 100% renovável. O açúcar pode ser usado como fonte de alimento de microrganismos para a produção de inúmeras moléculas, desde ácidos orgânicos e polímeros a óleos alimentícios.

        No que refere aos aspectos sociais, uma usina emprega centenas de pessoas, tornando-se um motor importante para a economia de pequenas cidades do interior do Brasil. As condições de trabalho melhoraram muito nas últimas duas décadas. Os impostos oriundos das atividades destas usinas ajudam a melhorar os serviços públicos de educação e saúde de pequenas cidades.

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        Os Orgânicos e a Circularidade

        A produção de vegetais (verduras, frutas, raízes e legumes) orgânicos possui algumas regras que facilitam a adoção da circularidade. A seguir estão listadas algumas diretrizes para a produção de produtos orgânicos:

        • Oferta de produtos saudáveis isentos de contaminantes.
        • Uso de boas práticas de manuseio e processamento com o propósito de manter a integridade orgânica e as qualidades vitais do produto.
        • Preservação da diversidade biológica dos ecossistemas naturais e a recomposição ou incremento da diversidade biológica dos ecossistemas modificados.
        • Emprego de produtos e processos que mantenham ou incrementem a fertilidade do solo e o equilíbrio da sua atividade biológica.
        • Adoção de práticas nas unidades de produção que contemplem o uso saudável do solo, da água e do ar.
        • Reciclagem de resíduos de origem orgânica, reduzindo ao mínimo possível o emprego de recursos naturais não renováveis.
        • Utilização de práticas de manejo produtivo que preservem as condições de bem-estar dos animais.
        • Estabelecimento de relações de trabalho baseadas no tratamento com justiça, dignidade e equidade, independentemente das formas de contrato de trabalho.
        • Incentivo à integração entre os diferentes participantes da rede de produção orgânica.
        • Regionalização da produção e do comércio dos produtos.

        De acordo com estas premissas, não são utilizados fertilizantes químicos no processo. A fertilização é realizada através dos resíduos vegetais da própria fazenda, através de compostagem. Pode-se caracterizar este processo como recuperação. Se a quantidade de fertilizante orgânico obtida não for suficiente, pode-se importar resíduos animais e vegetais de localidades próximas e compostá-las junto com os resíduos próprios. O processamento dos resíduos externos caracteriza-se como reciclagem.

        Compostagem aeróbia – Foto: Alexander Silva de Resende (site Embrapa.br)

        Em relação às emissões de gases de efeito estufa, se a fazenda conservar ou aumentar a quantidade de matéria orgânica no solo potencialmente pode ser net zero ou net negative. Ou seja, o empreendimento estaria sequestrando carbono da atmosfera ao invés de emitir.

        Uma questão interessante seria a substituição dos equipamentos movidos a óleo diesel por elétricos. Se a geração de energia elétrica for local através de painéis fotovoltaicos, seria ambientalmente ainda melhor.

        Como não são usados inseticidas, a existência de insetos polinizadores, como as abelhas, é estimulada. E pragas e doenças podem ser evitadas através da associação de diferentes espécies vegetais. Há aumento de biodiversidade.

        O recurso desafiador é o consumo de água. A fazenda pode implantar irrigação por gotejamento para reduzir em até 90% o consumo de água, entretanto ainda seria necessário aporte de água externa através de chuva ou abastecimento, por exemplo, através de um rio.

        Se o regime de trabalho na fazenda não for sazonal, pode-se estabelecer relações de trabalho duradouras e justas com possibilidade de participação nos resultados econômicos do empreendimento.

        Produtores e consumidores podem estar ligados através do modelo de agricultura apoiada pela Comunidade (CSA – Community-Supported Agriculture). Neste modelo socioeconômico alternativo, a comunidade subscreve a colheita de uma determinada propriedade ou grupo de propriedades agrícolas. A principal vantagem é a partilha dos riscos agrícolas.

        Um ponto importante é referente às embalagens. Muitos produtos orgânicos são vendidos em embalagens oriundas de fontes não renováveis como bandejas de isopor, filmes e sacos plásticos. Por uma questão de coerência, seria importante reduzir o volume de embalagens e substituir os materiais por fontes renováveis, recicláveis e biodegradáveis. Neste caso, a sustentabilidade e circularidade dos alimentos orgânicos seriam melhoradas. Esta medida poderia ser regulada pelos Estados que determinariam um prazo para banir embalagens de matérias primas não renováveis ou de reciclagem difícil.

        Muito plástico e isopor nas embalagens dos vegetais orgânicos nos supermercados

        No próximo artigo desta série sobre circularidade, apresentarei o caso da indústria brasileira do açúcar e etanol e suas contribuições e oportunidades.

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        Como Melhorar a Circularidade dos Bens de Consumo Rápido

        Uma das áreas de ação da economia circular é formada pelos chamados bens de consumo de movimento rápido (FMCG – Fast-Moving Consumer Good). Dentro desta categoria de produtos não duráveis, podemos listar os alimentos frescos ou congelados (frutas, legumes e castanhas), os alimentos processados, as refeições prontas, as bebidas (águas engarrafadas, refrigerantes, cervejas e sucos), os produtos de panificação, os medicamentos vendidos sem receita médica (aspirina, analgésicos e outros), os produtos de limpeza, os cosméticos e os produtos de higiene pessoal.

        A maior parte dos alimentos existentes no mercado atualmente sofrem, pelo menos, alguma forma de processamento. Muitas matérias primas são refinadas e as substâncias removidas tornam-se resíduos. Muitos dos materiais descartados ainda possuem valor nutricional. Em outros casos, o alimento integral apresenta características nutricionais melhores do que o alimento refinado.

        Minha proposta tem quatro eixos.

        1. Estudar o processo produtivo a fim de reduzir a geração de coprodutos e resíduos

        O aumento da eficiência do processo traz benefícios econômicos, sociais e ambientais. A quantidade de matéria prima por unidade de produto produzido é reduzida, diminuindo as emissões de poluentes e resíduos enviados para aterros. Como existe um benefício econômico claro, a empresa pode criar um programa para focar na redução das perdas através de ferramentas como, por exemplo, Six Sigma, Lean Manufacturing e Kaizen. Normalmente esta alternativa apresenta várias ações de curto prazo de fácil execução (os chamados low hanging fruits em inglês) que trazem resultados rápidos para a empresa.

        2. Encontrar aplicações para os coprodutos gerados no processo

        Muitos resíduos tornam-se efluentes líquidos que exigem, muitas vezes, estações de tratamento caras e complexas. Estes custos devem ser considerados no preço de venda do produto. Se este material for aproveitado pela própria empresa ou comercializado para ser matéria prima de outra indústria, o custo final será reduzido, trazendo benefícios econômicos, sociais e ambientais. Esta alternativa exige desenvolvimento de processo ou, até mesmo, redesenho total do processo produtivo. Um exemplo deste tipo de abordagem é o aproveitamento do soro de leite proveniente da produção de queijo que apresenta uma série de aplicações na indústria de alimentos. Antes do desenvolvimento deste produto, o soro do leite causava poluição hídrica devido à sua alta concentração de matéria orgânica e de nitrogênio. Algumas empresas localizadas em zonas rurais usavam o soro como parte da alimentação de suínos.

        Laticínios – leite, queijos e soro (abaixo à esquerda)

        3. Criar linhas de produto integrais ou minimamente processados

        A melhor alternativa seria colocar no mercado alimentos minimamente processados, onde seria garantido a ausência de patógenos, metais pesados e demais substâncias tóxicas. Estes produtos deveriam ser desenvolvidos desde os produtores de matérias primas até o consumidor final. Assim o desenvolvimento envolve toda a cadeia de valor da empresa. Existem diferentes tipos de leguminosas (feijões, lentilhas e grão de bico) e cereais que podem servir de alimento com mínimo processamento. Este terceiro item da proposta está alinhado com o movimento pelo “clean label” que busca por produtos apenas com ingredientes “reconhecíveis” pelo consumidor. A empresa que buscar este mercado pode viabilizar uma melhor remuneração para pequenos e médios agricultores, prover alimentos nutritivos aos consumidores, com menor impacto ambiental. Por causa do reconhecimento da sociedade, pode operar com margens maiores, trazendo sustentabilidade econômica para si e para toda a cadeia.

        Diferentes tipos de feijões, ervilhas, lentilhas e grão-de-bico

        4. Minimizar a quantidade de embalagens e facilitar a reciclagem

        Os bens de consumo de movimento rápido (FMCG) também são conhecidos como bens de consumo embalados (CPG – consumer packaged goods). As embalagens são fatores muito importantes no processo de produção e, normalmente, são classificadas como primária, secundária e terciária.

        A embalagem primária está em contato direto com o produto. Além de protegê-lo, apresenta informações importantes para os consumidores, como data de fabricação / validade, instruções de uso, lista dos ingredientes, dados nutricionais e presença de alergênicos.

        Em alguns casos a embalagem primária não apresenta estas informações, sendo necessária uma embalagem secundária, geralmente de papel cartonado. Nestes casos, há aumento no volume de resíduos. Pigmentos coloridos e polímeros podem dificultar a reciclagem do material.

        Os sistemas de logística e distribuição geralmente exigem embalagens secundárias e terciárias para maximizar a eficiência de estocagem, transporte e distribuição. Normalmente estas embalagens são de papelão ou filmes plásticos.

        Seria fundamental ao projetar a embalagem pensar em dois fatores: facilidade de reciclagem e logística reversa. Embalagens multicamadas, por exemplo, possuem processos de reciclagem mais complexos e custosos.

        [Packaging]

        Embalagens primárias, secundárias e terciárias

        No próximo artigo, aprofundarei esta abordagem no caso dos alimentos orgânicos.

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        Quando o Aumento do PIB Empobrece o País?

        Muitas pessoas definem o PIB, Produto Interno Bruto, como a soma das riquezas geradas por um país ou região durante um certo período. Esta definição é pobre, porque não considera o consumo do capital natural do país ou região.

        Imagine a seguinte situação: uma empresa tinha um estoque de produtos acabados no valor de dez milhões de reais e o saldo de sua conta corrente, incluindo investimentos, era de um milhão de reais em 2022. Neste caso, seu ativo circulante era onze milhões de reais. No ano seguinte, esta empresa reduziu em 50% seu estoque. O faturamento gerado pela venda dos produtos em estoque foi de 5 milhões de reais. Praticamente todo o dinheiro foi usado para a subsistência da empresa. No final do ano, o saldo na conta corrente era dois milhões de reais. Ou seja, os ativos foram reduzidos em quatro milhões de reais. A tabela abaixo, onde todos os valores estão expressos em milhões de reais, explicita esta análise.

        Tabela 1 – Evolução do Patrimônio de uma Empresa (valores em milhões de reais)

        Fica claro que o patrimônio desta empresa encolheu em 4 milhões de reais em um ano. Se esta empresa mantiver esta tendência, ficará endividada em dois anos.

        O economista Thomas Piketty no seu livro “Uma Breve História da Igualdade” apresenta o seguinte exemplo:

        “Um país que extraia 100 bilhões de euros de petróleo do seu solo gera um PIB adicional de 100 bilhões de euros. Em contrapartida, a Renda Nacional correspondente é nula, pois o estoque de capital natural foi reduzido na mesma proporção. Se além disso, escolhermos atribuir um valor negativo correspondente ao custo social das emissões de carbono geradas pela combustão do petróleo em questão, então obteremos uma Renda Nacional muito negativa.”

        Ou seja, o PIB não considera nem a variação do estoque de capital natural, nem as externalidades negativas geradas pelas atividades econômicas.

        Interação entre os Estoques de Capital Natural e a Atividade Econômica – Fonte: Reflections on the Role of Natural Capital for Economic Activity – European Comission, 2023

        O Brasil é um país muito relevante em termos de área coberta por florestas e outros ecossistemas naturais, bem como pela produção de alimentos e de fibras para uso industrial.

        Fica claro que a exportação de minérios se encaixa na mesma situação do exemplo do país exportador de petróleo apresentado por Piketty. Ou seja, a exportação de minério de ferro deve gerar uma Renda Nacional negativa, devido à redução do capital natural e aos impactos ambientais e sociais negativos.

        O caso da exportação de commodities agrícolas é bem mais complexo. O sol é a fonte de energia para a fotossíntese e, consequentemente, para o crescimento vegetal. A energia do sol entra com custo zero no nosso cálculo de capital natural. No caso da água, sais minerais e matéria orgânica do solo, precisaríamos analisar os seus estoques antes e depois de cada safra. Se a área da plantação for oriunda de desmatamento de uma floresta nativa, evidentemente houve uma redução do capital natural.

        O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) elaborou em 2021 a primeira contabilidade do capital natural do país, como resultado do Projeto NCAVES (Natural Capital Accounting and Valuation of Ecosystem Services) da ONU. O relatório analisou diferentes áreas:

        • Cálculo das dimensões dos Ecossistemas: uso da terra por bioma.
        • Determinação das condições dos corpos hídricos.
        • Serviços dos ecossistemas.
        • Relato de espécies ameaçadas no Brasil.
        • Ativos ambientais individuais e cálculo dos recursos.
        • Aplicações de contabilidade econômica ambiental para obtenção de indicadores.
        • Discussão da combinação dos resultados entre os cálculos das dimensões, determinação das condições, serviços ecossistêmicos, relato das espécies ameaçadas para os seguintes biomas: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pampa e Pantanal.

        Com base neste trabalho, se poderá calcular se há geração de riqueza em atividades econômicas importantes para o Brasil como, por exemplo, plantação de milho e soja para ração, ou criação de gado bovino em pastagens, ou plantação de eucaliptos para a produção de celulose. As discussões advindas da análise destes resultados podem gerar novas orientações para a economia do país. Deste modo, a melhoria contínua na qualidade dos dados é essencial para otimizar as tomadas de decisão.

        Ecosystem Accounts for Brazil: Report of the NCAVES project | System of Environmental Economic Accountinghttps://seea.un.org/content/ecosystem-accounts-brazil-report-ncaves-project

        No caso da agricultura, se o capital natural (água, solo, biodiversidade) está sendo preservado na propriedade, poderia haver redução de impostos e acesso a fontes de financiamento com juros mais baixos.

        O próximo artigo apresentará alternativas para aumentar a circularidade dos produtos não duráveis, os chamados bens de consumo de movimento rápido.

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