No post 300 deste blog, eu prometi voltar a Portões de Fogo, de Steven Pressfield, para falar de Dienekes. E aqui estou, pagando a promessa. Hoje não é o campeão que ganha estátuas; é o oficial veterano que dá o tom, segura a fileira, ensina o jovem e cuida da casa. O romance é narrado pelo seu escudeiro Xéones, e pela voz dele a gente vê o que realmente sustenta a coragem quando as flechas persas escurecem o céu.
“Então lutaremos à sombra.”
(a frase atribuída a Dienekes pela tradição — Pressfield a incorpora no livro)
Essa frase espirituosa resume o personagem: lucidez sem pose, coragem sem teatro. Abaixo, três lentes ajudam a enxergá-lo melhor: quem ele é, o que o liga a Arete e o que ele forma em Alexandros.
1. Quem é Dienekes: coragem moral antes da militar
Dienekes é o oficial que prefere a eficácia à glória. Ele ensina que o problema não é “sentir medo”, é o que fazemos com ele. Em Portões de Fogo, isso vira método: transformar medo em amor (philia) — o cuidado pelo homem à esquerda e à direita, pela cidade, pelo código que os une.
No treinamento, tudo é caráter. Quando Dienekes ajusta a altura do escudo, não é capricho estético: é ética em movimento, porque a aspis protege mais o companheiro da esquerda do que a si mesmo. Quando ele insiste na cadência da falange, não é mania de sargento: é confiabilidade — o outro pode contar com o seu passo. E quando corrige o ângulo da lança, é autodomínio em ação: nada de abrir a asa para “brilhar” e deixar o flanco exposto. Em Esparta, técnica é moral, porque o gesto certo salva alguém. Repetido mil vezes, o gesto vira hábito; o hábito, disposição; e a disposição, caráter. É assim que a disciplina do corpo vai esculpindo a disciplina da alma — até que, quando o medo surge, o corpo faz o certo do jeito certo antes mesmo que a cabeça invente desculpas para fugir. E o humor seco dele aparece quando a tensão sobe — não para minimizar o perigo, mas para manter a cabeça no lugar.
2. Dienekes & Arete: amor que escolhe a lealdade
Arete é uma mulher inteligente, com iniciativa; não é uma esposa-troféu, é parceira. E é na relação com ela que vemos a coragem íntima de Dienekes:
- Eros disciplinado por respeito – apaixonado por Arete, ele afasta-se por lealdade ao irmão a quem ela fora prometida. Em Esparta, rasgar esse vínculo destruiria a casa e a honra entre pares. Ele escolhe perder algo importante para não quebrar o que é maior.
- A verdade viva sobre a letra fria – anos depois, quando Arete corre risco real, ela traça um plano — e ele endossa a “mentira justa” e assume a paternidade de uma criança para salvá-la. A cena mostra um casamento entre iguais: ele não manda; confia, decide com ela e assume as consequências.
Em casa ou em Termópilas, é a mesma ética: manter a linha — da falange e da família.
3. Dienekes & Alexandros: o mestre sereno
Alexandros começa como muitos de nós começaram em algo: potencial + impaciência. Quer brilho, feito individual, história para contar. Dienekes mira outro lugar:
- Converte bravura em constância.
- Ensina a sentir o medo sem colapsar.
- Troca o heroísmo solitário por responsabilidade: “o posto do outro depende de você”.
A pedagogia é silenciosa: corrigir o passo, repetir a manobra, fazer perguntas em vez de discursos. No fim, Alexandros já não busca a cena; sustenta a linha.
Síntese das principais mensagens do livro
Eu destaco estas quatro ideias fortes que atravessam o livro:
- Medo não é vergonha; é matéria-prima da coragem.
- O antídoto do medo é o amor (philia): olhar para o lado, proteger o companheiro.
- Treino é caráter e virtudes em movimento: forma o gesto e a pessoa.
- Serviço antes de glória: a guerra (e a vida) como cuidado do comum.
Portões de Fogo não coloca Dienekes no pedestal do “grande herói”. Ele é o pilar invisível: o que fica, repara a falha do outro, morre sem teatro, com dignidade. Se há grandeza, é a grandeza do comum bem-feito — a mais difícil.
Por que isso importa fora do campo de batalha? Porque a vida tem suas Termópilas: família, trabalho, amizade, amor. “Manter a linha” é:
- Escolher a lealdade certa, de acordo com seus valores essenciais, quando o desejo cutuca (Arete).
- Assumir custos para proteger quem depende de nós (a criança).
- Formar gente para que brilhe menos sozinha e sirva mais ao coletivo (Alexandros).
No fim, Dienekes lembra que coragem não é bravata: é fidelidade tranquila ao que sustenta o outro — e, principalmente, a nós mesmos — quando o céu escurece.
Se você leu Portões de Fogo, me diga: qual cena de Dienekes ficou em você? Se não leu, recomendo. Vá com tempo e, depois, deixe o corpo dar seu próximo passo.











































