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Dienekes, o Herói que Manteve a Linha até o Final

No post 300 deste blog, eu prometi voltar a Portões de Fogo, de Steven Pressfield, para falar de Dienekes. E aqui estou, pagando a promessa. Hoje não é o campeão que ganha estátuas; é o oficial veterano que dá o tom, segura a fileira, ensina o jovem e cuida da casa. O romance é narrado pelo seu escudeiro Xéones, e pela voz dele a gente vê o que realmente sustenta a coragem quando as flechas persas escurecem o céu.

“Então lutaremos à sombra.”
(a frase atribuída a Dienekes pela tradição — Pressfield a incorpora no livro)

Essa frase espirituosa resume o personagem: lucidez sem pose, coragem sem teatro. Abaixo, três lentes ajudam a enxergá-lo melhor: quem ele é, o que o liga a Arete e o que ele forma em Alexandros.

Dienekes

1. Quem é Dienekes: coragem moral antes da militar

Dienekes é o oficial que prefere a eficácia à glória. Ele ensina que o problema não é “sentir medo”, é o que fazemos com ele. Em Portões de Fogo, isso vira método: transformar medo em amor (philia) — o cuidado pelo homem à esquerda e à direita, pela cidade, pelo código que os une.

No treinamento, tudo é caráter. Quando Dienekes ajusta a altura do escudo, não é capricho estético: é ética em movimento, porque a aspis protege mais o companheiro da esquerda do que a si mesmo. Quando ele insiste na cadência da falange, não é mania de sargento: é confiabilidade — o outro pode contar com o seu passo. E quando corrige o ângulo da lança, é autodomínio em ação: nada de abrir a asa para “brilhar” e deixar o flanco exposto. Em Esparta, técnica é moral, porque o gesto certo salva alguém. Repetido mil vezes, o gesto vira hábito; o hábito, disposição; e a disposição, caráter. É assim que a disciplina do corpo vai esculpindo a disciplina da alma — até que, quando o medo surge, o corpo faz o certo do jeito certo antes mesmo que a cabeça invente desculpas para fugir. E o humor seco dele aparece quando a tensão sobe — não para minimizar o perigo, mas para manter a cabeça no lugar.

2. Dienekes & Arete: amor que escolhe a lealdade

Arete é uma mulher inteligente, com iniciativa; não é uma esposa-troféu, é parceira. E é na relação com ela que vemos a coragem íntima de Dienekes:

  • Eros disciplinado por respeito – apaixonado por Arete, ele afasta-se por lealdade ao irmão a quem ela fora prometida. Em Esparta, rasgar esse vínculo destruiria a casa e a honra entre pares. Ele escolhe perder algo importante para não quebrar o que é maior.
  • A verdade viva sobre a letra fria – anos depois, quando Arete corre risco real, ela traça um plano — e ele endossa a “mentira justa” e assume a paternidade de uma criança para salvá-la. A cena mostra um casamento entre iguais: ele não manda; confia, decide com ela e assume as consequências.

Em casa ou em Termópilas, é a mesma ética: manter a linha — da falange e da família.

3. Dienekes & Alexandros: o mestre sereno

Alexandros começa como muitos de nós começaram em algo: potencial + impaciência. Quer brilho, feito individual, história para contar. Dienekes mira outro lugar:

  • Converte bravura em constância.
  • Ensina a sentir o medo sem colapsar.
  • Troca o heroísmo solitário por responsabilidade: “o posto do outro depende de você”.

A pedagogia é silenciosa: corrigir o passo, repetir a manobra, fazer perguntas em vez de discursos. No fim, Alexandros já não busca a cena; sustenta a linha.

Síntese das principais mensagens do livro

Eu destaco estas quatro ideias fortes que atravessam o livro:

  • Medo não é vergonha; é matéria-prima da coragem.
  • O antídoto do medo é o amor (philia): olhar para o lado, proteger o companheiro.
  • Treino é caráter e virtudes em movimento: forma o gesto e a pessoa.
  • Serviço antes de glória: a guerra (e a vida) como cuidado do comum.

Portões de Fogo não coloca Dienekes no pedestal do “grande herói”. Ele é o pilar invisível: o que fica, repara a falha do outro, morre sem teatro, com dignidade. Se há grandeza, é a grandeza do comum bem-feito — a mais difícil.

Por que isso importa fora do campo de batalha? Porque a vida tem suas Termópilas: família, trabalho, amizade, amor. “Manter a linha” é:

  • Escolher a lealdade certa, de acordo com seus valores essenciais, quando o desejo cutuca (Arete).
  • Assumir custos para proteger quem depende de nós (a criança).
  • Formar gente para que brilhe menos sozinha e sirva mais ao coletivo (Alexandros).

No fim, Dienekes lembra que coragem não é bravata: é fidelidade tranquila ao que sustenta o outro — e, principalmente, a nós mesmos — quando o céu escurece.

Se você leu Portões de Fogo, me diga: qual cena de Dienekes ficou em você? Se não leu, recomendo. Vá com tempo e, depois, deixe o corpo dar seu próximo passo.

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Autenticidade e Coragem em A Alma Imoral – Zusya, Mar Vermelho e Viktor Frankl

No último sábado, eu e a Claudia fomos assistir à peça A Alma Imoral, com Clarice Niskier, baseada no livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Saí do teatro com aquela mistura boa de silêncio reflexivo e vontade de conversar — sinais de que algo tocou no lugar certo.

Clarice Niskier em “A Alma_Imoral”

A montagem é um monólogo poderoso. Clarice fala de corpo e alma, tradição e transgressão, obediência e autenticidade, fidelidade e traição. Não é apologia à rebeldia inconsequente, é um convite à honestidade: o que ainda fazemos por dever, quando a alma já não está mais ali?

Alguns temas ficaram comigo:

  • Tradição e transgressão. A peça propõe que a tradição só continua viva quando aceita ser “traída” — não no sentido de negar o passado, mas de renovar o sentido.
  • Corpo e alma. O corpo preserva, organiza, dá forma. A alma inquieta, pergunta, desafia, atravessa. Um sem o outro é desequilíbrio.
  • Dúvida e certeza. O texto valoriza a dúvida como motor ético. Não é hesitação improdutiva; é espaço de consciência.
  • Fidelidade e traição. Não apenas ao pacto externo, mas à verdade interna. Às vezes, manter o pacto exige transformá-lo.

Destaco dois trechos que conversam entre si. Me atingiram com mais força por questões atuais da minha vida.

O rabino Zusya: ser quem se é

Há um momento em que surge a história do rabino Zusya (muitas vezes grafado “Zusha” ou “Sucia”).

“Por que estás tão irrequieto? – perguntou o discípulo ao rabino Zusya, ao vê-lo em seus momentos finais de vida.

— Tenho medo – respondeu Zusya.

— Medo de que, rabino?

— Medo do Tribunal Celeste.

— Tu? Um homem tão piedoso, cuja vida foi exemplar? Se tu tens medo, imagine nós, cheios de defeitos e imperfeições.

Rabino Zusya então diz:

— Não temo ser inquirido por não ter sido como o profeta Moisés, não deixei um legado de seu porte. Eu posso me defender, dizendo que não fui como Moisés, porque eu não sou Moisés. Nem temo que me cobrem ensinamentos como os de Maimônides, por eu não ter oferecido ao mundo a qualidade de sua obra e seu talento. Eu posso me defender, dizendo que eu não fui como Maimônides, porque eu não sou Maimônides. O que me apavora, neste momento, é que me venham indagar: Zusya, por que não foste Zusya?

“Um Velho Judeu” de Rembrandt

A questão é devastadora. A questão não é “por que não fomos grandes”, e sim por que não fomos nós. Por que deixamos a vida escorrer por papéis, expectativas e personagens que não nos servem mais?

Essa ideia conversa diretamente com Viktor Frankl. Para ele, o ser humano não busca primeiro prazer ou poder, mas sentido. E sentido é pessoal, original e intransferível — ninguém pode viver o nosso por nós. Como disse Nietzsche:

“Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.”

Zusya está dizendo o mesmo, de outra forma: o fracasso verdadeiro é falhar em ser quem somos. Ele teme ter sido “correto” sem ter sido autêntico. E Frankl nos lembra que a vida nos pergunta o tempo todo — e espera respostas em forma de escolhas e ações.

Viktor Emil Frankl

O Mar Vermelho: o passo que abre as águas

Outro trecho que me pegou foi a releitura da travessia do Mar Vermelho. Não como milagre pronto, mas como metáfora de coragem. O trecho fala de um hebreu que entrou no mar antes de ele se abrir. Só quando a água chegou à altura do seu peito, as águas se dividiram.

A cena desloca o foco: não é “o mar que se abre para eu passar”; sou eu que passo — e o mar responde. A alma transgride o medo, e o caminho aparece depois do passo.

Com Frankl, isso vira linguagem de responsabilidade: não temos garantias, temos liberdade para responder. Em cada situação, há uma tarefa que traz o sentido. Às vezes, é continuar. Em outras, é atravessar. Em quase todas, é assumir o risco do primeiro passo.

No trecho sobre o Mar Vermelho, o sentido se revela no movimento. Para Frankl, responder ao chamado único da situação é o centro da liberdade humana.

Entre Zusya e o Mar Vermelho: escolhas que nos fazem

Juntos, Zusya e o Mar Vermelho compõem um mapa simples:

  1. Quem sou eu, de fato? (autenticidade)
  2. O que a situação me pede agora? (responsabilidade)
  3. Qual passo é meu, mesmo sem garantias? (coragem)

A peça não entrega respostas prontas — “graças a Deus”. Ela faz outra coisa: abre espaço para as perguntas que nos interessam.

Uma reflexão pessoal: sobre mudar e enfrentar o desconhecido

Saí do teatro pensando nas minhas próprias travessias. Em quantas vezes adiei um passo esperando o mar abrir? Em quantas vezes fui “correto” quando precisava ser verdadeiro? Em quantas decisões, no trabalho e na vida a dois, a alma já sussurrava: “é por ali” — e eu pedia mais uma confirmação.

Não tenho grandes heróis internos (como Moisés ou Maimônides) à disposição, mas tenho um Zusya possível e alguns hebreus que adentraram o Mar Vermelho antes de se abrir: aqueles passos pequenos, quase invisíveis, que mudam a direção de uma história.

Se eu pudesse resumir o aprendizado da noite em uma linha, diria assim:

Coragem não é ausência de medo; é fidelidade serena ao que a alma já sabe.

O resto, a gente descobre andando — e o mar costuma colaborar com quem se compromete com o passo.

No sábado, a peça terminou; o assunto, não. E talvez seja esse o melhor efeito da arte: deixar a porta entreaberta para o próximo movimento — o nosso.

Se você já viu A Alma Imoral, me conte o que ficou com você. Se ainda não viu, recomendo. Dê tempo para a alma — e, na saída, deixe o corpo dar seu próximo passo.

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O que sustenta uma relação a dois? 13 fatores para cultivar vínculos reais, vivos e duradouros.

Relacionamentos não andam sozinhos.

Não basta ter vivido bons momentos ou lembrar com carinho do começo. Com o tempo, o que segura a relação de pé não é a memória; é o que se constrói no presente.

A convivência testa. O cotidiano, às vezes, oprime. E, nesse cenário, é o cuidado, quase invisível, que faz diferença: pequenos gestos, conversas que alinham, escolhas que sustentam.

Com o tempo — observando, vivendo, errando e aprendendo — percebi que os casais que seguem inteiros (e não apenas juntos) têm algo em comum: há práticas e valores que eles cultivam.

Nada mágico ou heroico, mas constante. E isso já é muito.

Listei aqui 13 desses fatores. Não são fórmulas, nem garantias, mas são pistas. Ou melhor, são sementes que, com cuidado e presença, podem criar raízes fortes o bastante para sustentar uma história a dois.

1. Companheirismo

Há dias em que o amor parece só isso: estar ali. Seja no cansaço, na rotina ou no trânsito congestionado do fim do dia… Companheirismo é o que transforma a presença em cuidado.

Não é sobre concordar sempre ou ter os mesmos gostos. É sobre não deixar o outro sozinho quando o mundo fica pesado demais.

2. Filhos

Ter filhos muda tudo! E é justamente por isso que o casal precisa se lembrar do que existe para além da parentalidade.

Filhos dão trabalho, ocupam espaço, demandam energia. O amor de casal precisa continuar existindo mesmo ali, no meio do “caos”, porque é desse amor que vem boa parte da estrutura emocional que sustenta a família inteira.

3. Estabilidade emocional

Ninguém nasce pronto, mas é preciso querer crescer. Relações são laboratórios emocionais: revelam nossas fortalezas e nossas feridas. Ter estabilidade emocional não é nunca explodir; é saber se responsabilizar quando isso acontece.

Quem coloca tudo nas costas do outro acaba esgotando a relação. Quem evita olhar para dentro de si mesmo, repete os mesmos erros. Amor maduro pede que cada um se responsabilize pelo que sente e pelo que leva para a relação.

4. Estabilidade financeira

Não dá para romantizar: dinheiro impacta relação. O estresse financeiro desgasta, cria tensão, atrapalha o afeto. A falta de conversa sobre o assunto também.

Não importa o modelo adotado, o que conta é o acordo claro, o respeito e a sensação de que ninguém está levando tudo nas costas sozinho.

5. Reconhecimento público e status

Para algumas pessoas, ser visto ao lado de quem se ama importa. É estar incluído na vida social, apresentado com afeto, lembrado nas conversas.

Não é sobre fazer post com legenda clichê. É sobre não ser invisível. O amor pode ser discreto, mas não deve ser escondido.

6. Valores e visão de mundo compartilhados

Quando os valores combinam, a vida anda mais fluida. Decisões difíceis ficam menos pesadas. As prioridades batem e a relação não vira cabo de guerra.

Não precisa ser tudo igual. Mas os pilares — respeito, visão de futuro, jeito de lidar com outras pessoas e com o mundo — precisam conversar entre si.

7. Comunicação clara e empática

O que não é dito apodrece por dentro. Casal que aprende a conversar com empatia resolve muita coisa antes que vire bomba.

Fale com verdade, ouça de coração aberto e pergunte sem rodeios. Evite adivinhações e recados disfarçados. Priorize afeto e clareza na conversa.

8. Projetos e crescimento em comum

Ter um plano, uma ideia ou um projeto juntos faz bem. Pode ser uma casa, uma viagem, um livro, uma horta ou melhorar o mundo que os cerca. Seja o que for…

O importante é que exista futuro compartilhado, não só passado lembrado. Crescer lado a lado, com propósito, fortalece a relação.

9. Sexualidade e desejo

O corpo se expressa quando as palavras falham. E o desejo, quando aparece ou desaparece, costuma dizer muito sobre o que está vivo ou faltando na relação. Se a vida sexual some ou vira obrigação, algo deve ser olhado.

O desejo é frágil, mas também pode ser reativado com escuta, leveza e reconexão. A forma como a gente se toca, se olha, se aproxima comunica muito. A sexualidade fala. E o desejo reflete: mostra como nos sentimos com o outro e com a gente mesmo dentro da relação.

10. Tempo e qualidade de presença

Não adianta estar do lado se a cabeça está longe. Presença não é só estar lá, é estar inteiro.

Cinco minutos de atenção genuína valem mais do que um dia inteiro de presença distraída. É disso que a relação se alimenta.

11. Autonomia e espaço individual

Estar junto não é virar um só. Amor maduro respeita espaço, incentiva crescimento individual, não tenta controlar.

Quem tem autonomia não precisa fugir da relação para respirar. E quem ama com liberdade, volta querendo ficar.

12. Capacidade de reparar rupturas

Todo casal erra. A questão é o que se faz depois. É essencial saber pedir desculpas de coração, perdoar de verdade, escutar com presença e mudar de atitude.

Reparar não é apagar o que houve, é reconstruir com mais verdade.

Tem gente que nunca briga. E tem gente que briga demais. O que sustenta é saber voltar depois da quebra.

13. Rituais e renovação simbólica

Todo amor precisa de gestos, de lembranças e de ritmo. Um jantar especial, um cartão com uma mensagem escrita à mão, um apelido carinhoso, um sorriso cheio de cumplicidade. Pequenos rituais dizem: “isso aqui importa pra mim”.

Ritual não é obrigação. É escolha. E é também memória futura.

Conclusão

Relação viva é aquela que se cuida, se escuta e se reinventa — sem perder o que tem de essencial.

Não é sobre perfeição. É sobre constância. É sobre escolher, todo dia, cultivar o que vale a pena.

E quando os dois estão nessa, o amor não só dura — ele floresce.

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Eros, Philia e Ágape: Três Formas de Amar em uma Relação a Dois

Quando falamos sobre amor em um relacionamento, tendemos a usar uma única palavra para expressar algo que, na prática, é multifacetado e dinâmico. A tradição grega antiga nos oferece uma chave interessante para entender melhor essa complexidade: ela nomeia três formas distintas de amor — Eros, Philia e Ágape.

Esses três aspectos não competem entre si. Pelo contrário, eles se complementam e podem coexistir em diferentes proporções ao longo da vida a dois. Conhecer suas características nos ajuda a cultivar vínculos mais conscientes e duradouros.

Eros – Desejo, atração e encantamento

Eros é o amor do impulso e da conexão física. É o que nos aproxima do outro nos primeiros encontros, aquilo que provoca fascínio, excitação e a sensação de urgência. É uma força vital que desperta o desejo, o toque, o olhar atento.

Nos relacionamentos duradouros, Eros tende a mudar de forma. Pode perder intensidade se não for cuidado, mas também pode se renovar em novas fases da vida a dois. A intimidade física, o prazer mútuo e o desejo cultivado com intenção mantêm essa dimensão viva — não como no início, mas com mais profundidade.

Philia – Amizade, companheirismo e confiança

Philia é o amor da convivência, da admiração mútua e da cumplicidade. É o vínculo que se constrói quando aprendemos a gostar do outro como pessoa — não só como objeto do nosso desejo. É o amor que se expressa em conversas tranquilas (às vezes, intensas e corajosas), apoio nas dificuldades, projetos compartilhados e risos espontâneos.

Essa dimensão é essencial para a sustentação do vínculo. É quando o casal se torna também amigo, parceiro, alguém com quem é possível dividir tanto as dúvidas quanto os sonhos. Com o tempo, Philia aprofunda a base do relacionamento, tornando-o mais estável e acolhedor.

Ágape – Amor consciente, entrega e transcendência

Ágape é uma forma de amor que transcende o desejo e o vínculo emocional imediato. Trata-se de uma entrega mais profunda, marcada por empatia, escuta e presença consciente.

Diferente de Eros e Philia, que foram amplamente discutidos na filosofia grega, Ágape ganhou destaque principalmente na tradição cristã, onde passou a representar o amor incondicional e generoso, com uma dimensão espiritual e ética.

Ágape não significa passividade ou anulação pessoal. É um tipo de amor que se manifesta na capacidade de cuidar, perdoar e escolher estar junto, mesmo quando há falhas e imperfeições. Ele convida à maturidade emocional e à construção consciente do vínculo.

A seguir, uma visão comparativa dos três tipos de amor, destacando suas contribuições e os desafios que podem surgir quando estão em desequilíbrio.

Tipo de AmorFunção na RelaçãoRiscos Quando Isolado ou Desequilibrado
ErosAlimentar a intimidade física e emocional; criar conexão pelo desejo e encantamento.Pode ser passageiro e ilusório. Sem base emocional, tende a se esgotar com o tempo.
PhiliaSustentar a convivência no longo prazo; fortalecer o vínculo por meio da amizade, respeito e confiança.Sem Eros, pode virar apenas parceria funcional.
Sem Ágape, pode faltar profundidade.
ÁgapeSer o eixo ético e espiritual da relação; promover empatia, perdão e crescimento mútuo.Quando não equilibrado, pode gerar autoanulação ou relações assimétricas.

Amar é também um exercício de consciência

Nenhum desses três amores é suficiente por si só. Eles se misturam, mudam de intensidade e exigem cuidado constante. Um relacionamento saudável é aquele em que Eros, Philia e Ágape não competem, mas colaboram — cada um oferecendo sua força no momento certo.

Cultivar esse equilíbrio é um caminho possível para construir vínculos mais conscientes, afetivos e verdadeiros. Afinal, amar também é um verbo: exige ação, presença, escolha e construção diária.

No próximo post, apresentarei 13 fatores práticos que influenciam diretamente a sustentação de uma relação a dois.

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Acolhendo Nossa Criança Interior

No final de maio deste ano, a Claudia promoveu um workshop especial sobre a criança interior no nosso espaço. A proposta era simples e, ao mesmo tempo, profunda: ouvir as vozes sutis (ou às vezes barulhentas) que vivem dentro de nós desde a infância. Foi um convite ao reencontro com nossa essência mais autêntica, nossos medos, tristezas e raivas antigos, além da nossa capacidade de brincar com a vida de forma leve e autêntica. Tudo isso em meio a trocas sinceras, lágrimas, acolhimento e olhos brilhando. E ali, mais uma vez, ficou claro que atrás de muitos dos nossos conflitos do dia a dia, está o velho conhecido ego.

O ego, essa parte da personalidade que quer manter o controle, ser reconhecido, ter razão e proteger-se a qualquer custo, nos guia com frequência mais (e de forma diferente) do que gostaríamos. Ele constrói máscaras, reforça padrões automáticos e, quando ferido, reage como uma criança! E é aí que entra a beleza do trabalho com a criança interior: reconhecer que dentro de cada um de nós habitam várias vozes infantis, com necessidades legítimas, mas frequentemente inconscientes.

Eu Adulto com suas Crianças Interiores

A “Criança Livre” é a que corre descalça no campo das ideias e emoções. Ela ri alto, inventa soluções, brinca com espontaneidade, dança sem música e ama com o corpo inteiro. O Eu Adulto pode abraçá-la, canalizando sua leveza e criatividade, mas também ajudando-a a saber a hora de repousar e respeitar limites.

Já a “Criança Adaptada” é moldada por exigências externas. Pode ser submissa, ressentida ou culpada. Muitas vezes diz “sim” querendo gritar “não” — ou espera, em silêncio, que o mundo adivinhe suas necessidades. O Eu Adulto precisa estar atento, como um bom cuidador, ensinando a essa criança que é possível se expressar sem medo, colocar limites com afeto e buscar o próprio valor fora da aprovação alheia.

E há também a “Criança Rebelde”, que quando ferida ou desacreditada, grita, ironiza, faz birra ou se fecha em silêncio. Ela pode ser uma potência criativa ou uma sabotadora impaciente. Cabe ao Eu Adulto compreender sua dor e transformá-la em força de ação — não como quem castiga, mas como quem escuta e a guia com firmeza e ternura.

Nesse caminho, o Eu Adulto não é um juiz, nem um pai severo. Ele é um guardião interno — aquele que observa, acolhe e age com consciência. Ele é quem consegue dizer “sim” com inteireza e “não” com serenidade. Olha para suas feridas sem julgamento; e para seus talentos, sem soberba.

Foi isso que vi no workshop da Claudia: adultos reencontrando suas crianças internas. Chorando memórias antigas, resgatando bons momentos esquecidos e, sobretudo, aprendendo a se escutar com mais compaixão.

Talvez este seja o maior desafio da vida adulta: crescer sem abandonar (ou querer matar) quem fomos. A maturidade não é enterrar a criança, mas oferecer-lhe um bom lugar no nosso coração.

Se você quiser viver essa experiência, haverá um novo workshop no dia 31 de agosto. Será uma nova oportunidade de escutar as vozes da sua criança interior.

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Os 7 Pilares para um Relacionamento Consciente

Há um tempo, assisti a um vídeo do Jonas Masetti, professor tradicional de Vedanta, sobre os sete fundamentos para um relacionamento saudável. A proposta é simples, mas poderosa: repensar o amor como uma prática consciente — não como ideal romântico ou tarefa de autossacrifício.

Os pontos me tocaram porque são, ao mesmo tempo, espirituais e profundamente humanos. Reflito sobre cada um deles a seguir, com um olhar aberto e, espero, útil para quem também busca construir vínculos com mais verdade e presença.

  1. Sacrifício não é símbolo de amor

      Durante muito tempo, aprendemos que amar é se sacrificar, que a prova do amor está na renúncia. Quanto mais você sofre, mais ama. Mas essa lógica, quando vivida de forma crônica, tende ao desequilíbrio e à perda de si mesmo.

      O amor saudável envolve generosidade, mas não exige autoanulação. A verdadeira entrega nasce da liberdade, não da obrigação.

      Amar não é se apagar para que o outro brilhe — é iluminar juntos, respeitando a própria chama.

      2. Local de fala

        Todos nós falamos a partir de uma história com vivências, traumas, referências e expectativas. Em um relacionamento, respeitar o local de fala do outro é mais do que escutar. É compreender que o que ele sente não precisa fazer sentido para mim para ser legítimo.

        É sair do lugar da defesa e entrar no campo da empatia. E isso só é possível quando reconhecemos que não somos o centro da experiência do outro.

        Escutar com presença é reconhecer que o outro tem um mundo próprio que merece ser visitado com respeito.

        3. Amor não é troca

        Essa é talvez uma das mudanças mais desafiadoras. Em muitos relacionamentos atuais, nos acostumamos a amar esperando algo em troca: reconhecimento, afeto, estabilidade, cuidado. Mas o amor verdadeiro é doação, não barganha.

        Claro, reciprocidade é importante. Mas quando o amor se baseia na expectativa de retorno, ele se torna transação, não vínculo.

        Amar é oferecer o melhor de si sem transformar isso em cobrança. E confiar que o outro saberá responder com o que tiver de mais verdadeiro.

        4. Capacidade de ouvir

        Ouvir parece simples, mas exige esforço. A escuta verdadeira requer que a gente suspenda julgamentos, respostas prontas e a vontade de “corrigir” o outro. Requer presença.

        Ouvir, deste modo, é um exercício de silêncio interno, uma forma de entrega. E é isso que transforma conversas comuns em momentos de conexão real.

        Ouvir não é natural, é escolha — uma prática consciente de abertura e respeito.

        5. Demonstrações de amor em suas diferentes linguagens

        Nem todo mundo se sente amado da mesma forma. Cada pessoa se sente amada de maneiras distintas — seja por meio de palavras carinhosas, do toque, de um presente significativo, de uma ajuda prática ou da simples presença atenta. O amor precisa ser comunicado na linguagem que o outro compreende.

        Reconhecer e praticar essas formas de expressão é essencial para nutrir o vínculo afetivo. Não basta amar em silêncio ou apenas da forma que nos é natural. Amar também é aprender a se comunicar fora da própria zona de conforto.

        Amar é falar na língua emocional do outro — mesmo que, no início, seja com “sotaque”.

        6. Celebrar o não

        Este talvez seja o ponto mais contraintuitivo. Em um mundo que valoriza o “sim” como sinal de aceitação, aprender a dizer “não” e a acolher o “não” do outro são gestos de maturidade.

        O “não” preserva a individualidade e fortalece a confiança. Relacionamentos saudáveis são aqueles em que se pode discordar e recusar — e, mesmo assim, continuar juntos.

        Celebrar o “não” é confiar que o amor é forte o suficiente para sustentar os limites e as diferenças.

        7. Os três propósitos: individuais, da relação e da evolução espiritual

        Esse ponto sintetiza uma visão elevada do relacionamento como um caminho de crescimento. Quando os propósitos individuais são respeitados, o projeto da relação é nutrido, e ambos crescem espiritualmente. Há alinhamento profundo e a relação se torna um campo fértil. Não é só afeto, é também aprendizado, transformação e sentido.

        É uma visão que transcende o amor romântico e o coloca como prática de autoconhecimento. Relacionar-se, desta forma, é ser espelho e espaço de crescimento mútuo. Os três propósitos atuam como bússola. Sem eles, a relação perde o norte e se desgasta na rotina.

        Relacionar-se é partilhar uma travessia. E cada um carrega algo que o outro precisa para seguir mais inteiro.

        Conclusão

        Relacionamentos conscientes não são perfeitos, mas são “mais reais”. São feitos de presença, escuta, verdade e afeto expressado de forma concreta. Não exigem que sejamos outra pessoa, apenas que sejamos inteiros, com coragem para crescer e amar ao mesmo tempo.

        Se você está em uma relação, talvez esses pontos sirvam como um convite à conversa. Se está só, podem servir como um espelho, porque, no fundo, o primeiro relacionamento que exige consciência é o que temos com nós mesmos.

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        Post 300 – A Resistência contra o Colapso da Blogosfera

        E não é que este blog chegou ao tricentésimo post?! Em tempos em que muita gente torce o nariz até para vídeos com mais de cinco minutos no YouTube, como estimular a leitura de textos com mil palavras?

        Com a ascensão da inteligência artificial, respostas instantâneas dispensam visitas a sites ou blogs. Ainda assim, continuo resistindo. Escrever, para mim, é um exercício vital — de reflexão, expressão e partilha.

        Por isso, neste marco simbólico, não pude deixar de lembrar dos trezentos de Esparta, que resistiram ao poderoso exército persa no desfiladeiro de Termópilas. No início do ano, li o romance histórico Portões de Fogo, de Steven Pressfield, e confesso: identifiquei-me com Dienekes, o guerreiro que acreditava que o verdadeiro campo de batalha era interior. Quem sabe, em breve, escrevo sobre isso. Por ora, sigo firme — com minha lança, meu escudo e meu notebook.

        Nestes últimos cem posts, diversidade não faltou…

        O post nº 202 tratou do reuso de água durante a crise hídrica de São Paulo (2014–2015). Também publiquei uma apresentação didática para crianças sobre poluição hídrica, com roteiro e explicações de slides.

        O tema da sustentabilidade apareceu em vários momentos. Comecei com uma mesa-redonda durante uma feira ambiental na Alemanha — Por um Mundo mais Sadio e Justo: o Lixo e a Consciência. Ali conheci o conceito de economia circular. Anos depois, fiz um curso do MIT sobre este tema e publiquei seis artigos baseados nas reflexões do curso. A pergunta segue: ainda temos tempo para discutir o aquecimento global?

        As proteínas vegetais entraram na pauta com uma carta aberta à Revista dos Vegetarianos e em uma conversa que tive com Pat Brown, fundador da Impossible Foods. Também compartilhei como preparar proteína texturizada de soja e um saborosíssimo estrogonofe vegano.

        Criei uma série com quatro textos que conectam físico-química e comportamento humano. Expliquei, de forma descomplicada, conceitos como a Primeira Lei da Termodinâmica, reações químicas, energia de ativação, equilíbrio químico e soluções tampão. Afinal, tem gente endotérmica e exotérmica!

        Lá em 2016, escrevi sobre os algoritmos das redes sociais e a formação de bolhas digitais. Em 2017, manifestei preocupação com a ascensão do nacionalismo e as ameaças à democracia. Em 2020, após ler Engenheiros do Caos, de Giuliano Da Empoli, algumas peças se encaixaram. A busca pelos “Arquitetos da Ordem” continua.

        A polarização daquele período levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff e, pouco depois, à ascensão do Bolsonarismo. Vários posts trataram do governo Bolsonaro, inclusive sobre o início da pandemia — O Triste Clown e seu All-In.

        Comemorei meu cinquentenário com uma série de reflexões sobre a vida. Agora, rumo aos sessenta, sigo na luta…

        Em 2017, fraturei a perna jogando futebol com minhas filhas no quintal. No ano seguinte, contei o que aconteceu depois. E em 2024, contei o surgimento do “Vicente maratonista“, uma consequência surpreendente do acidente de 2017.

        Em um momento mais leve, nasceu a “Trilogia das Sílfides”: histórias fantasiosas sobre jabuticabas, beija-flores e o mormacento verão de Porto Alegre.

        Li As Seis Lições, de Ludwig Von Mises, e escrevi três artigos sobre convergências e divergências. O mundo mudou desde os anos 1950, mas muitos ainda defendem um liberalismo sem freios. Também sugiro ler Autofagia Liberal e Umbigocentrismo e refletir sobre as Três Formas Modernas de Escravidão.

        Parece que muita gente cristalizou posições. Esquecem que polaridade e ritmo são essenciais para uma vida saudável.

        2021 ainda era pandêmico… Escrevi sobre a convivência familiar em tempos de quarentena. Em agosto, perdi minha mãe, Dona Ladi, e fiz uma homenagem com Descartes, Shakespeare e Hilel, o Ancião como testemunhas.

        Li A Revolta de Atlas, de Ayn Rand. Depois de devorar suas 1.200 páginas, escrevi sobre a autora, Francisco D’Anconia, Ragnar Danneskjöld e Ellis Wyatt. Mas esse capítulo ainda não terminou, porque — afinal — quem é John Galt?

        O Papa Francisco, que infelizmente nos deixou, foi citado em um post sobre polarização política. Parece que todos precisam ser rotulados em alguma caixinha.

        O Islamismo foi tema de outros textos. Como escrevi certa vez: Para obter a paz não basta uma vitória militar sobre o Estado Islâmico — ou sobre o Hamas.

        Este blog passou por temas como eutanásia, maioridade penal, empatia, cancelamento digital, David Bowie, Marie Curie, o filme Fragmentado e o último Matrix.

        Fiz uma fusão entre Coringa, Osho e Krishnamurti para falar dos riscos de seguir líderes cegamente. Este tema volta no que considero meu melhor artigo dos últimos cem: I’m Not Dog No – A Servidão Voluntária.

        Quando deixei o conforto da CLT, escrevi As Gaiolas e o Corvo. Porque, sim, tanto a falta, quanto o excesso de propósito podem nos devastar.

        Não sou Martha Medeiros, nem Fabrício Carpinejar, mas escrevo sobre relacionamentos porque a vida me provoca. Por isso, surgiram textos como O Amor Constrói, a Paixão e o Ódio Arrasam Quarteirões; Dores, Crescimento Pessoal e Cicatrizes; Relacionamentos São como Pudins; e, parafraseando Fernando Pessoa: Correr é Preciso, Viver Não é Preciso.

        Chegarei ao post 400? Só o tempo dirá…

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        Relacionamentos são como Pudins

        Você já ouviu essa frase? “Relacionamentos são como pudins; só dá pra saber se são bons provando-os.” É uma daquelas metáforas que parece simples, mas carrega uma enorme profundidade. E, pensando bem, quem inventou isso deve gostar tanto de pudim quanto de refletir sobre a vida. Porque, convenhamos, um bom pudim é praticamente uma declaração de amor em forma de sobremesa.

        Um pudim perfeito é aquele que tem a textura cremosa, o equilíbrio no doce, e uma calda de caramelo que não puxa para o amargo, nem fica cristalizada como se alguém tivesse se distraído no meio do processo. Mas quando o pudim dá errado? Ele pode sair com furinhos demais, um gosto de ovo que ninguém merece ou, pior, desandar completamente, virando uma poça de caramelo e leite condensado mal resolvidos. A questão é que, olhando de fora, tudo parece promissor. Até aquele pudim meio torto pode parecer delicioso. Mas você só descobre a verdade na primeira colherada.

        Agora, troque o pudim por relacionamento. A frase fez sentido?

        Na nossa cabeça, é fácil imaginar aquele “quase relacionamento” como o pudim perfeito da vida amorosa. Por fora, as coisas podem parecer perfeitas. Cremoso, equilibrado, sem defeitos… Aquele que você não provou, mas tem certeza de que seria tudo o que você sempre quis. Só que essa fantasia não leva em conta os “furinhos” que você só percebe quando experimenta de verdade: as diferenças de rotina, de personalidade e de visão de mundo. E eu nem falei dos desentendimentos e imperfeições que todo relacionamento real tem.

        E sabe o que mais? Esses “quase relacionamentos” geralmente se tornam terreno fértil para a idealização. Eles são como aquele pudim que você viu na foto do Instagram, com a calda brilhando sob a luz perfeita. Você pensa: “isso deve ser a melhor coisa do mundo!”. Mas, na prática, pode ser só um doce gelado e sem gosto. E enquanto você está pensando no pudim dos sonhos, aquele pudim real que está na sua mesa – feito com carinho, com os ingredientes disponíveis, e até com uns furinhos de personalidade – acaba sendo subestimado.

        A verdade é que relacionamentos reais não são sobre perfeição. Eles são sobre testar receitas, ajustar o fogo, tentar de novo quando algo desanda. O que diferencia um pudim bom de um ruim não é só a receita – é o cuidado com que ele é feito e a paciência para acertar o ponto. Isso também vale para os relacionamentos. Eles são sobre colocar a mão na massa, resolver os “furinhos” juntos e aceitar que, mesmo quando as coisas não saem perfeitas, elas ainda podem ser deliciosas.

        Então, se você está aí fantasiando sobre um “quase relacionamento”, imaginando que seria tudo o que falta na sua vida, respira… Lembra que o pudim que você ainda não provou pode ser incrível, mas também pode não corresponder às expectativas. Fantasiar sem limites sobre ele só alimenta uma ideia que pode não ter base na realidade. Ao mesmo tempo, o pudim que você já tem na sua frente – com seus pequenos “furinhos” e sua doçura construída no dia a dia – também merece ser apreciado e valorizado, especialmente porque é real, palpável, e já passou pelo teste do tempo.

        A questão principal não é sobre qual “pudim” escolher, mas sobre fazer escolhas conscientes, baseadas na realidade, e não em fantasias. Se você decidir provar algo novo, que seja com clareza e responsabilidade, sabendo que nenhuma receita vem pronta e perfeita. E se a escolha for continuar saboreando o “pudim” que você já tem, que seja com gratidão por cada camada de doçura que ele oferece. O importante é lembrar que a vida não é sobre viver na expectativa de um “pudim” idealizado, mas sobre reconhecer e valorizar o que é real, aqui e agora.

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        Dores, Crescimento Pessoal e Cicatrizes

        Eu defendo que só há crescimento pessoal com dor. Quando passo por um sofrimento, consigo dar a real dimensão da importância daquela perda para minha vida. E após superar o obstáculo, procuro entender o que aprendi e como o processo me fortaleceu.

        Em cada um destes momentos, alguma coisa nos faz reviver a situação e suas lições.

        Há alguns anos, fraturei minha perna direita. Passei por uma cirurgia onde inseriram duas placas e parafusos para estabilizar a fíbula, bem como uma haste no interior da tíbia. Atualmente, a única marca visível do acidente é uma cicatriz de aproximadamente 10 cm. Não houve sequelas e, depois de me recuperar, nasceu o Vicente corredor, evoluindo para Vicente maratonista em setembro de 2024.

        Minha perna direita com a cicatriz próxima ao tornozelo.

        Todas as dores que senti em décadas de jornada me ajudaram a ser melhor como pai, marido, amigo e profissional. Um ser humano melhor… Muito longe da perfeição, mas melhor. E as cicatrizes me lembram de que sou grato pelas dores que estimularam meu crescimento.

        Em 2024, tive um turbilhão de dores e alegrias. Termino o ano muito mais centrado e consciente de que, em 2025, novas dores me farão crescer mais.

        E assim continuará… A cada dor indesejada nascerá um novo aprendizado. E minhas cicatrizes serão os troféus dessas conquistas.

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        O Que Aprendi ao Correr Uma Maratona – O Homem de Lata, o Espantalho e o Leão Covarde de Oz

        Quem me acompanha sabe que comecei a correr há sete anos após uma fratura de tíbia e fíbula. Neste período, na maior parte do tempo, pratiquei este esporte sem qualquer orientação. Para ver algumas dicas, assistia a vídeos no YouTube. Por sorte, não tive lesões graves, apenas algumas dores nos calcâneos e na lombar. Participei de várias corridas de rua em distâncias que variaram de 4 km até meia maratonas (21,1 km).

        Até a metade de 2023, eu corri sete meia maratonas e quatro Corridas de São Silvestre (15 km). Percebi que meu desempenho estava piorando, eu estava com menos força e flexibilidade, e estava difícil manter o ritmo de antes. Então decidi buscar uma assessoria para corridas. Recebi indicação de uma assessoria da região, Ativital, do Luciano Vital. E começamos em setembro do ano passado. Após um período de adaptação e alinhamento de expectativas, intensifiquei os treinos e corri mais uma São Silvestre.

        Em janeiro, durante um treino, Luciano comentou que um grupo iria correr a Maratona de Porto Alegre em junho e perguntou se eu gostaria de participar. Topei o desafio na hora. Então ele falou que janeiro e fevereiro seriam meses para construir uma base física e, de março a junho, aumentaria minha quilometragem para me preparar para a maratona.

        No início, Luciano procurava me acalmar, dizendo que não era para eu me preocupar com o tempo para conclusão da prova, o importante era concluir bem a prova. Minha meta secreta era correr os 42,2 km abaixo de 5 horas.

        Claudia, minha mulher, sempre diz que quando eu decido fazer alguma coisa, vou até o fim e consigo. Os meses foram passando com muitos quilômetros percorridos, muitos treinos funcionais, de mobilidade e de musculação. Segui as planilhas de treino disciplinadamente, corri com chuva, frio ou calor.

        Em um treino, Luciano comentou que minha técnica de corrida estava bem melhor:

        – Quando você começou parecia o Homem de Lata do Mágico de Oz. Agora está bem melhor, está parecendo o Espantalho…

        Demos boas risadas. E ainda disse que eu concluiria a prova abaixo de 4h30min. Isto já era muito mais rápido do que eu originalmente almejara…

        Quando as distâncias começaram a aumentar, perdi duas unhas dos pés em um treino em que testei um tênis com placa de fibra de carbono. Comprei pares de tênis um número maior e não parei de treinar.

        Em maio, aconteceu a trágica enchente no Rio Grande do Sul e a prova foi transferida para o final de setembro. Decidi que minha prova alvo permaneceria a Maratona de Porto Alegre. Assim eu praticamente treinei dois ciclos para correr uma maratona. Perdi seis a sete quilos, fiquei mais forte, mais ágil e mais rápido.

        O divisor de águas foi uma prova de rua de 30 km em São Paulo no primeiro domingo de setembro. Foi a primeira vez que percorri esta distância e, nos últimos cinco quilômetros, havia subidas e descidas na ponte estaiada. Consegui manter um bom ritmo e concluí a prova em 2h53min. Minha confiança aumentou muito. Nos domingos seguintes, os longões foram, respectivamente, de 30 km e 35 km. Estava pronto para a maratona.

        Parte final da prova Run The Bridge 30K em 01/09/2024 (descida da ponte estaiada em São Paulo).

        Eu e Luciano montamos a estratégia da prova para 4h10min. Ele ainda me deu um conselho muito sábio:

        – O importante era terminar bem a prova com um sorriso nos lábios, especialmente porque tua família te aguardará na linha de chegada.

        Quando alinhei na vanguarda do meu pelotão trinta minutos antes da largada, estava confiante de que concluiria a prova. Fiz tudo que estava a meu alcance. Dediquei-me de corpo e alma aos treinos. Moderei o consumo de bebidas alcoólicas. Segui as orientações de uma nutricionista ultramaratonista, a Fran. Tive sessões de liberação miofascial com a Sandra.

        Às 7 horas da manhã, iniciou a prova. Consegui manter um bom ritmo. No quilômetro 25, encontrei, pela primeira vez, minha família. Procurei demonstrar que estava me sentindo bem. Ganhei uma garrafinha com meu isotônico gelado para consumir nos quilômetros seguintes. A temperatura subiu rapidamente.

        Um dos momentos mais emocionantes foi a passagem pelo interior do Mercado Público. Controlei a emoção e segui para a parte final da prova. Passei pelo quilômetro 34, estava muito quente e úmido, o sol estava forte e praticamente não havia sombras. Comecei a ver muitos corredores quebrados – alguns deitados, outros com cãibras, outros caminhando com dificuldade. Lembrei do conselho do Luciano e resolvi baixar um pouco o ritmo. Segui bem até o quilômetro 41.

        Momento em que cruzei o Mercado Público durante a Maratona Internacional de Porto Alegre.

        A partir deste ponto, havia muita gente aglomerada nas ruas, assistindo à prova, foi uma descarga de energia incrível. Bati em muitas mãos, fiz “high five”, sorri, gargalhei. Fiz conchas nos ouvidos ao passar por grupos mais silenciosos, imediatamente gritavam meu nome (escrito acima do número no peito) e eu alisava minha barba. Ouvi um cara gritando:

        – Respeitem a história do Vicente!

        Quando a pista alargou, fiz um “aviãozinho” pela primeira vez. E segui acelerando rumo a linha de chegada, quando concluí a prova, repetindo a brincadeira. Tempo oficial ficou em 4h12min. Ouvi os gritos da Claudia, Léo, Júlia e Luíza. Me juntei a eles, eu era pura alegria.

        Fazendo “aviãozinho” na chegada da maratona.

        A referência do Luciano aos personagens do Mágico de Oz me levou a algumas reflexões.

        O Homem de Lata queria um coração, mesmo que muitas vezes ele tenha se emocionado na sua jornada. Da mesma forma, eu me emocionei em muitos momentos, lembrei dos meus pais, explodi quando corri pela primeira vez 30 km e transbordei de alegria ao completar a maratona.

        O Espantalho queria um cérebro, mas ele era o personagem mais inteligente do trio. Eu mantive o foco e procurei segurar a empolgação durante os treinos e corridas de rua para não extrapolar o ritmo planejado. Durante a maratona, mesmo me sentindo bem e sabendo que não atingiria minha meta de 4h10min, resolvi reduzir o ritmo para garantir uma boa conclusão do desafio.

        E, durante todo o processo, agi como o Leão Covarde que, na história do Mágico de Oz, sempre demonstrou coragem quando era preciso. A coragem não é a ausência de medo, mas a capacidade de enfrentá-lo apesar das incertezas. Coragem é agir com determinação, mesmo quando o desconhecido ou o risco estão presentes, e transformar o medo em motivação para superar desafios. Quem é corajoso não ignora seus medos, mas os reconhece e escolhe seguir em frente, confiando em suas capacidades e no propósito de suas ações.

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        A Revolta de Atlas – Ragnar Dannesjöld, Sonegação e Meritocracia

        Chegamos ao terceiro artigo sobre o livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Hoje o assunto será o discurso do “pirata” Ragnar Danneskjöld sobre impostos e meritocracia.

        Ragnar Danneskjöld atua como um pirata que ataca os navios que transportam doações dos governos dos países ricos para países pobres. Segundo ele, estes bens são roubados dos produtores ricos pelos governos corruptos, através dos impostos. O resultado das pilhagens é vendido no mercado negro da Europa pelo maior preço possível e o ouro, oriundo destas operações, é depositado em contas secretas em nome de empresários, com base no imposto de renda pago por eles.

        O navio do “pirata” não ataca embarcações privadas ou Marinha de Guerra dos países. Ele segue a lógica ultraliberal que apenas a segurança, interna e externa, é função do Estado e nada mais.

        Danneskjöld odeia a figura Robin Hood que, segundo ele, é o símbolo da moralidade invertida que domina o mundo. Transcrevo o trecho abaixo, no qual Ayn Rand explicita, através de seu personagem, a sua forma de ver o mundo, usando a figura de Robin Hood como contraexemplo do seu pensamento.

        “Diz-se que ele lutava contra governantes saqueadores e restituía às vítimas o que lhes fora saqueado, mas não é esse o significado da lenda que se criou. Ele é lembrado não como um defensor da propriedade, e sim como um defensor da necessidade; não como um defensor dos roubados, e sim como protetor dos pobres. Ele é tido como o primeiro homem que assumiu ares de virtude por fazer caridade com dinheiro que não era seu, por distribuir bens que não produzira, por fazer com que terceiros pagassem pelo luxo de sua piedade. Ele é o homem que se tornou símbolo da ideia de que a necessidade, não a realização, é a fonte dos direitos; que não temos que produzir, mas apenas de querer; que o que é merecido não cabe a nós, e sim o imerecido. Ele se tornou uma justificativa para todo medíocre que, incapaz de ganhar seu próprio sustento, exige o poder de despojar de suas propriedades os que são superiores a ele, proclamando sua intenção de dedicar a vida a seus inferiores roubando seus superiores.”

        Ou seja, para Ayn Rand, os verdadeiros heróis são os ricos produtivos, porque criam valor para a sociedade com sua competência e seu trabalho. Os pobres, que não ganham o suficiente para seu sustento, são incompetentes e parasitas, porque se aproveitam da riqueza “roubada” dos ricos para sobreviver. Esta visão de mundo, nua e crua, é a defesa extrema da meritocracia social, na qual condena-se qualquer forma de redistribuição de renda ou altruísmo.

        Eu concordo que as pessoas devam ser recompensadas de acordo com o resultado de suas atividades produtivas e com a capacidade de gerarem valor. Por outro lado, não podemos desprezar que existe uma parcela pequena da população que já larga muito à frente da maioria em termos de educação. Imagine agora um país que siga 100% a ideologia de Ayn Rand, capitalismo liberal laissez-faire. Neste lugar, o Estado não recolheria mais a maior parte dos impostos pagos pelos produtores ricos e os pobres teriam que custear, além de suas despesas básicas (alimentação, habitação, transporte e vestuário), saúde e educação. Como qualquer forma de altruísmo é condenável, quem não tivesse meios de subsistência estaria entregue à própria sorte. E se hoje já é muito difícil a ascensão social dos mais pobres, neste país seria praticamente impossível.

        O curioso é que a autora parece desconhecer que uma ação social iniciada no governo do Presidente Roosevelt em 1944, o programa G.I. Bill, teve um enorme impacto econômico positivo nos Estados Unidos. O período de validade do programa, 1944-1956, é quase o mesmo em que Ayn Rand escreve “A Revolta de Atlas”, 1946-1956.

        Presidente Roosevelt assinou a Lei do Programa G.I. Bill em 1944.

        O programa G.I. Bill foi uma iniciativa do governo norte-americano para oferecer benefícios educacionais aos veteranos que serviram nas forças armadas durante a Segunda Guerra Mundial. Milhões de soldados americanos cursaram o ensino superior, técnico ou profissional, com custos subsidiados pelo governo. Este programa G.I. Bill foi considerado um dos maiores investimentos públicos em capital humano da história, e teve um impacto significativo na economia, na sociedade e na cultura dos Estados Unidos no pós-guerra. Infelizmente devido às leis de segregação racial vigentes nos estados sulistas norte-americanos, os negros não tiveram as mesmas benesses dos brancos. Assim a distância econômica e social entre brancos e negros aumentou naquele país.

        Além de tentar destruir o mito de Robin Hood, Danneskjöld também defendia a sonegação de impostos. Por todos os motivos já expostos, ele considerava os impostos uma forma de roubo praticada pelo Estado. Ele resume sua missão no primeiro encontro com o industrial Hank Rearden assim:

        “Bem, eu sou o homem que rouba dos pobres e dá para os ricos, ou, mais exatamente, que rouba dos pobres ladrões e devolve aos ricos produtivos.”

        Se Danneskjöld e Ayn Rand conhecessem o sistema tributário brasileiro, talvez ficassem felizes ao descobrir que os mais pobres pagam mais impostos do que os mais ricos. O peso dos impostos sobre bens e serviços no Brasil é bem mais alto do que nos países da OCDE (42% do total arrecadado contra média de 32% em 2020), onerando os mais pobres. Mesmo no imposto de renda, os super-ricos pagam alíquota média menor do que os brasileiros da classe média, porque dividendos não são tributados no Brasil. Veja o gráfico abaixo do Portal G1 com dados de 2020 sobre alíquotas médias de imposto de renda por faixa de rendimento.

        Diferentemente do discurso sobre dinheiro de Francisco D’Anconia, no qual eu concordo com a essência do seu conteúdo, considero o discurso de Ragnar Danneskjöld absurdo. Como procurei demonstrar neste artigo, mesmo os Estados Unidos na década de 1950 não seguiam este capitalismo ultraliberal. Se aplicássemos os postulados de Danneskjöld, não seria imoral juntar uma fortuna nababesca, enquanto milhares morrem de fome e doenças na mesma cidade.

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        A Revolta de Atlas – Francisco D’Anconia e o Dinheiro

        Como anunciei no artigo inaugural sobre a “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand, eu faria novas postagens sobre este livro. Resolvi iniciar por uma das minhas passagens favoritas, o discurso de Francisco D’Anconia sobre o dinheiro.

        Francisco D’Anconia é um dos personagens principais do livro. Ele é o herdeiro de uma das maiores fortunas do mundo e é um empresário bem-sucedido que administra a empresa de mineração de cobre de sua família. Durante a festa de aniversário de casamento de outro personagem, o industrial Hank Rearden, ao ouvir alguns convidados falando mal do dinheiro, D’Anconia faz um discurso a favor.

        Antes de entrar no discurso em si, gostaria de comentar as três funções do dinheiro: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. O dinheiro é usado como meio de troca para facilitar a compra e venda entre pessoas e empresas. Nos primórdios, o comércio era realizado através de escambo. Imagina como algumas transações eram complexas… O dinheiro é usado também como reserva de valor, permitindo que as pessoas e empresas economizem e guardem valor ao longo do tempo. Com esta reserva, pode-se realizar investimentos, como adquirir bens e serviços de valor mais elevado. O dinheiro também é usado como unidade de conta para facilitar a comparação de preços e valores. Assim, pode-se calcular o custo total de um produto para determinar seu preço mínimo de venda ou saber qual o custo de vida mensal de uma família.

        D’Anconia afirma que o dinheiro é o meio de troca universal que permite que as pessoas possam realizar suas trocas de bens e serviços de maneira mais eficiente e produtiva. Esta primeira função do dinheiro é apresentada em detalhes e como a oferta e procura determinam os valores dos bens materiais e serviços. Como o dinheiro vale o mesmo na mão de cada indivíduo, sem intervenções dos governos, ele torna-se um símbolo da liberdade humana. Todas as transações são guiadas pelo livre-arbítrio. Deste modo, o dinheiro é apenas um instrumento, não é o mal em si mesmo. O verdadeiro problema são a forma e o propósito como as pessoas utilizam o dinheiro para obter poder e controle sobre outras pessoas.

        D’Anconia enfatiza que a única forma de alcançar a verdadeira liberdade e prosperidade é através da produção e do comércio honestos, baseados em valores objetivos e não em manipulações políticas. Ele conclui seu discurso afirmando que deseja que as pessoas percebam que o dinheiro é um fator essencial na conquista da felicidade e da realização pessoal.

        Concordo com esta linha de ver o dinheiro apenas como um meio ou instrumento. Realmente existe influência de algumas religiões e linhas de pensamento de esquerda que consideram o dinheiro como algo sujo ou impuro. Esta crença prejudica sensivelmente as vidas de muitas pessoas que, muitas vezes, se sentem culpadas ao receber dinheiro como justa contrapartida à venda de um produto ou serviço. Sentem culpa pela própria prosperidade.

        O dinheiro é o sangue do tecido social. Ele é necessário para a economia funcionar, permitindo que as pessoas adquiram bens e serviços, invistam em empresas e poupem para o futuro. Na ausência de dinheiro, as relações sociais seriam significativamente afetadas, com impactos negativos na qualidade de vida das pessoas. Por isso, é fundamental garantir acesso igualitário ao dinheiro e promover sua circulação saudável na sociedade.

        Por outro lado, Ayn Rand, através de seu personagem, tem uma visão utópica, pois não dá o devido peso às imperfeições do mercado com seus cartéis, lobbies e assimetria de informações, para a prática de produção e comércio honestos. Sem dúvida, estas imperfeições desequilibram a balança para o lado dos que possuem poder econômico ou político.

        A seguir transcrevo uma parte muito interessante do discurso de D’Anconia.

        “O dinheiro se baseia no axioma de que todo homem é proprietário de sua mente e de seu trabalho. O dinheiro não permite que nenhum poder prescreva o valor do seu trabalho, senão a escolha voluntária do homem que está disposto a trocar com você o valor do trabalho dele. O dinheiro permite que você obtenha em troca dos seus produtos e do seu trabalho aquilo que esses produtos e esse trabalho valem para os homens que os adquirem, nada mais que isso. O dinheiro só permite os negócios em que há benefício mútuo segundo o juízo das partes voluntárias. O dinheiro exige o reconhecimento de que os homens precisam trabalhar em benefício próprio, não em detrimento de si próprios. Para lucrar, não para perder. De que os homens não são bestas de carga, que não nascem para arcar com o ônus da miséria. De que lhes é preciso oferecer valores, não dores. De que o vínculo comum entre os homens não é a troca de sofrimentos, mas a troca de bens.”

        Esta passagem defende o capitalismo consciente, onde se busca um equilíbrio entre as relações, um ganha-ganha, no qual o lado mais forte não explora ou deprecia o trabalho do lado mais fraco. O Liberalismo de Ayn Rand possui um fundo moral, onde a riqueza é obtida de forma ética, sem exploração dos funcionários das empresas.

        Pilares do Capitalismo Consciente

        “A riqueza é produto da capacidade humana de pensar.”

        No tempo de Ayn Rand, o capitalismo financeiro não era tão importante. Ela não aprovaria o dinheiro oriundo de mera especulação financeira. A riqueza deveria ser a expressão da capacidade humana de pensar e agir na agricultura, na indústria ou nos serviços.

        Neste contexto, “só o homem que não precisa da fortuna herdada merece herdá-la – aquele que faria sua fortuna de qualquer modo, mesmo sem herança”. Novamente Ayn Rand liga o dinheiro ao devido merecimento que é um fator importante para a felicidade e realização pessoal.

        Destaco a parte final da música Money do Pink Floyd:

        Money, it’s a crime
        Share it fairly but don’t take a slice of my pie.
        Money, so they say
        Is the root of all evil today
        But if you ask for a raise it’s no surprise that they’re
        Giving none away

        Acredito que o dinheiro em si não é a “raiz de todo o mal hoje”, mas sim a ambição cega por dinheiro e poder.

        Nas próximas semanas, comentarei os discursos de outros personagens do livro “A Revolta de Atlas”.

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        Como a Falta ou o Excesso de Propósito Podem Ser Devastadores

        Eu tenho visto cada vez mais especialistas e gurus, falando sobre a importância de se ter um propósito na vida. Esta orientação não é válida apenas para as pessoas físicas (PF), como também para as empresas (PJ). O propósito é um objetivo maior, de longo prazo, não é somente ganhar dinheiro, adquirir um bem ou fazer uma viagem. Estes exemplos podem ser metas de curto e médio prazos que apoiam um objetivo maior de longo prazo.

        Há alguns anos, escrevi um artigo sobre o psiquiatra austríaco Viktor Frankl. Ele percebeu que as pessoas que resistiam aos horrores dos campos de concentração nazistas eram as que tinham um sentido maior para suas vidas, um propósito. Estes propósitos estavam além das suas próprias existências, impactavam positivamente pessoas próximas, grupos maiores ou, até mesmo, toda a humanidade.

        Viktor Emil Frankl

        Pessoas com propósitos desejam deixar legados positivos no mundo. Se existe algo maior além do horizonte, fica mais fácil suportar os períodos mais difíceis e superá-los, extraindo aprendizados.

        Quando falta propósito, um objetivo significativo na vida, todos os dias são tediosamente ou desesperadamente iguais. Onde deveria estar o propósito há apenas um vazio que traz apatia e indiferença pelo que acontece ao redor. Deste estado depressivo, podem surgir alternativas para preencher o vazio da vida, como distrações, drogas ou seguir cegamente líderes, religiões e ideologias políticas.

        As pessoas com propósitos podem trabalhar em empresas que não tenham os mesmos objetivos. Deste desalinhamento, pode nascer uma frustração crescente que leva a desmotivação do funcionário. Nestes casos, o melhor a fazer é procurar outra ocupação.

        Mas pode haver também excesso de propósito? Minha resposta é sim. E as consequências podem ser muito graves. Nestes casos, o objetivo é tão rígido que impede que o entorno seja percebido. Pessoas com esta mentalidade pensam e conversam, quase que exclusivamente, sobre seu objetivo maior. Perdem o repertório, tornam-se os chatos nas rodas de conversa. Suas vidas passam a se resumir a esta busca incessante. Família, amizades e lazer são relegados a um plano muito inferior de importância. Qualquer atividade que as afaste, mesmo que momentaneamente, do seu propósito causam ansiedade e culpa. No final, estas pessoas ficam tão obcecadas que podem destruir seus relacionamentos e acabarem isoladas e doentes.

        Pequenas empresas e startups, onde os donos são a empresa, podem sofrer também deste mal. Muitas oportunidades não são perseguidas, porque seus líderes estão cegos e inflexíveis pelo propósito inicial. No final, a empresa quebra e boas ideias são desperdiçadas.

        Como tudo na vida, o equilíbrio é essencial. Devemos estar atentos e periodicamente analisarmos se nosso propósito de vida ainda faz sentido. Por outro lado, não podemos agir como “birutas” que mudam de direção conforme os ventos.

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        As Gaiolas e o Voo do Corvo

        Nossas vidas são repletas de gaiolas. Cobiçamos que elas sejam seguras, confortáveis e que haja boa comida, bebidas e prazeres à vontade. Ficamos mais confortáveis ainda se as grades estão escondidas ou camufladas. Assim, mesmo presos, cultivamos a ilusão da liberdade e não desejamos sair. Ninguém entende os “loucos” que ousam sair de uma gaiola confortável em busca de seus sonhos, em busca de algo que traga sentido às suas vidas.

        Nos últimos anos, sinto a premência de atuar nas áreas onde realmente eu possa contribuir para fazer mudanças significativas. Fazer mais do mesmo não é aceitável para um homem com 57 anos. Quero ajudar a construir um mundo melhor para as próximas gerações do que este em que vivemos hoje.

        A decisão de deixar uma posição profissional com carteira assinada, bom salário e benefícios, onde tenho um bom relacionamento com chefes, pares e demais colegas não foi fácil. Foi uma trajetória que durou alguns meses.

        O gatilho final aconteceu durante um filme que assisti no Netflix, o musical “Tick, Tick… Boom!”, baseado no show off-Broadway de mesmo nome de Jonathan Larson, autor de “Rent”. Havia uma música cantada por Andrew Garfield, “Louder Than Words” que me fez pensar na minha vida e nas últimas escolhas feitas. O refrão gritava na minha alma.

        Cage or wings?

        Which do you prefer?

        Ask the Birds

        E na sequência vinha a punhalada final…

        Actions speak louder than words

        Minha negociação foi longa e teve idas e vindas. Num certo momento, resolvi tatuar na minha pele uma representação da minha decisão para relembrá-la todas as manhãs ao me olhar no espelho. Não podia capitular!

        No início da semana passada, enviei minha carta de demissão para a empresa onde trabalhei nos últimos três anos. Sou muito grato por tudo que recebi em troca neste período, incluindo meu longo período de home office durante a pandemia. Só voltei ao trabalho presencial após receber a segunda dose da vacina. Nunca fui pressionado para voltar antes.

        Nos últimos seis meses, iniciei um MBA em ESG (ambiental, social e governança) e fiz um curso de Lean Governance (governança enxuta para startups). Quero trabalhar com inovação e sustentabilidade até o fim…

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        Introduzindo “A Revolta de Atlas” de Ayn Rand e Por Que os Conservadores Brasileiros Não Exaltam Sua Autora?

        Enfim terminei a leitura das mais de 1.200 páginas do livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Este livro foi a última obra de ficção desta autora que após sua publicação passou a escrever livros apenas para divulgar sua própria filosofia, o Objetivismo. Ela iniciou a redação em 1946 e concluiu dez anos depois. Conta-se que ela demorou dois anos somente para finalizar o discurso de John Galt que apresenta as bases do Objetivismo. A primeira edição foi publicada nos Estados Unidos em outubro de 1957.

        Este é o primeiro artigo de uma nova série que publicarei no blog. Diferentemente da série sobre o livro “As Seis Lições” de Ludwig Von Mises, iniciarei com algumas considerações sobre Ayn Rand e as razões que a impedem de ser popular entre os conservadores brasileiros.

        Ayn Rand nasceu na Rússia em 1905, antes da Revolução Bolchevique, cresceu sob o regime comunista soviético, viajou ainda jovem para visitar parentes nos Estados Unidos e nunca mais voltou para seu país de origem. Sua filosofia privilegia o individualismo, o egoísmo e a razão em detrimento dos sentimentos. Ela considera o altruísmo definitivamente um mal.

        Ayn Rand

        Deste modo, ela tornou-se um ícone do Liberalismo clássico, defendendo o Estado mínimo que teria como função somente e tão somente a segurança (interna e externa do país) e a Justiça. E tudo mais seria realizado pela iniciativa privada. Ou seja, não é função do Estado cuidar, por exemplo, de educação, saúde, assistência social, saneamento básico e infraestrutura básica. O sucesso dos indivíduos, obtido através de um competente esforço egoísta, traria prosperidade para toda sociedade. Os Estados Unidos seriam o melhor exemplo deste modelo. Como podemos perceber suas ideias estão muito bem alinhadas aos pensamentos do economista liberal austríaco Ludwig Von Mises.

        Rand escreveu seu livro para defender seus pontos de vista e o Objetivismo. Na reta final do livro, há o longo discurso de 70 páginas do personagem principal, John Galt, sobre o racionalismo, egoísmo e toda a filosofia. Além deste extenso texto, em outras passagens personagens abordam inúmeras questões sensíveis: Francisco d’Anconia fala sobre o dinheiro; o “pirata” Ragnar Danneskjöld define-se como um anti-Robin Hood e defende a meritocracia; Ellis Wyatt defende a riqueza. Analisarei estes discursos nos próximos artigos.

        O livro trata da reação de empresários, cientistas e artistas que desaparecem em um ambiente de intervenção estatal crescente nos Estados Unidos do futuro. Está divido em três partes com dez capítulos cada. Em alguns capítulos a história prende e a leitura é fluida; em outras, a leitura é maçante. Existem repetições exaustivas de algumas situações, como se a autora quisesse gravar em nossas mentes sua concepção de mundo. Seguramente poderia haver um bom enxugamento no conteúdo do livro.

        Pode-se afirmar que o livro possui quatro personagens principais: três masculinas – John Galt, Francisco d’Anconia e Hank Rearden) – e uma feminina, Dagny Taggart. Dagny era a vice-presidente de operações (hoje chamaríamos COO) da ferrovia Taggart Transcontinental. Ela era uma mulher independente, competente, ética e determinada. Incrivelmente Dagny teve relacionamentos amorosos com os três personagens principais masculinos. Desconfio que Dagny seja alter ego de Ayn Rand…

        Em meados da década de 1950, Rand teve um caso amoroso com o psicanalista Nathaniel Branden, vinte e cinco anos mais jovem do que ela. Segundo algumas informações, seus cônjuges tinham conhecimento do fato. Ou seja, Ayn Rand não se encaixa no padrão princesa que se casa com o príncipe encantado para formar uma “família tradicional”.

        Ayn Rand e seu marido no casamento de Nathaniel Branden (Fonte: The New York Times)

        Além disso, ela era ateia, considerava que havia apenas uma vida. Deste modo, considerava que havia apenas esta vida para o homem buscar seu “maior propósito moral”: alcançar sua própria felicidade.

        Também era contra a proibição do aborto por restringir a opção das mulheres e a busca pela felicidade. O embrião não teria direitos inicialmente, o direito à vida só iniciaria a partir do nascimento. E era favorável a descriminalização das drogas por defender o direito de escolha dos indivíduos.

        Sua visão sobre as religiões era extremamente negativa. Dizia que os “místicos do espírito” (religiosos) pedem que o sofrimento presente seja suportado para receber a compensação em outra dimensão. Defendia a completa separação entre Estado e religião. Para exemplificar a coerência de suas posições, Rand se recusou a votar no liberal Ronald Reagan para presidente dos Estados Unidos, na década de 1980, devido a sua posição antiaborto e a favor da religião.

        Ex-Presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan

        No livro, durante o longo discurso de John Galt, há uma passagem sobre a não-violência que transcrevo abaixo.

        “Tudo está aberto à discordância, menos um ato mau, o ato que homem nenhum pode cometer contra os outros, aprovar nem perdoar. Enquanto os homens quiserem viver em comunidade, nenhum homem pode tomar a iniciativa – estão me ouvindo? –, nenhum homem pode tomar a iniciativa de usar a força física contra os outros.

        Interpor a ameaça da destruição física entre o homem e sua percepção da realidade é negar e paralisar seu meio de sobrevivência. Forçá-lo a agir contra seu discernimento é como forçá-lo a agir contra sua própria visão. Todo aquele que, com qualquer objetivo e em qualquer grau, tome a iniciativa de lançar mão da força, é um assassino que parte da premissa da morte, mais ainda do que o assassino propriamente dito: a premissa de destruir a capacidade de viver do homem.

        Não venham me dizer que sua mente os convenceu de que vocês têm o direito de forçar minha mente A força e a mente são coisas opostas. A moralidade termina onde começa a força da arma”.

        Sem dúvida, além da violência física, todas as formas de coação, chantagem e assédios são condenadas.

        Assim fica difícil para os conservadores brasileiros exaltarem Ayn Rand, porque ela era uma mulher defensora da liberação sexual, a favor do aborto, antirreligiosa, a favor da descriminalização das drogas e defensora ampla da não-violência.

        Outro ponto é a separação entre o público e o privado. Nas páginas da “Revolta de Atlas”, existem inúmeros casos de empresários que buscam privilégios através de suas relações com o Governo. Este tipo de conluio é execrado por Rand. Em um Estado mínimo, as empresas deveriam vencer a competição no mercado exclusivamente através de seus próprios méritos, sem ajudas ou reservas de mercado. Nós sabemos como muitos empresários brasileiros atuam com lobbies no Executivo e no Legislativo para favorecer seus negócios, restringindo a livre concorrência, são os falsos liberais.

        Nos próximos artigos, abordarei outros pontos como as mensagens subliminares do livro, o Objetivismo, o egoísmo ético e o Liberalismo Laissez-faire de Rand.

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        Matrix Resurrections – A Fuga da Obviedade

        Na última semana do ano, eu e minha filha, Júlia, fomos ao cinema assistir a Matrix Resurrections. Desde que vi, em setembro, o primeiro trailer oficial com trilha sonora da música White Rabbit da banda Jefferson Airplane, jurei que não perderia oportunidade de “voltar à Matrix”.

        Todos os comentários que detonaram o filme causam-me um certo estranhamento. Afinal o filme não era tão ruim para ser atacado de formas tão incisivas. Eu considero um bom filme, nota 7,0 ou 7,5. Por outro lado, não foram atendidas as expectativas destas pessoas. Ou, talvez, as expectativas eram elevadas demais.

        Matrix (1999) é uma obra-prima das, hoje, irmãs Wachowski. Este é um filme que transcendeu o cinema e, em muitos aspectos, foi absorvido pela cultura popular. Já escrevi um artigo onde comparo a Matrix com a alegoria da Caverna de Platão. As duas continuações, lançadas em 2003, não chegam perto da qualidade e profundidade filosófica do primeiro filme. Provavelmente, as cenas de ação sejam as maiores lembranças dos dois últimos filmes da trilogia.

        Mesmo assim, em Matrix Reloaded, há um espetacular diálogo entre Neo e o Arquiteto (criador da Matrix), quando ele classifica Neo como o resultado de uma anomalia da Matrix. Também informa que aquela era a sexta versão da Matrix. No final, o Arquiteto avisa que Zion, cidade onde vivem os últimos humanos livres, será destruída novamente e Neo teria a missão de selecionar algumas mulheres e alguns poucos homens para reiniciar o processo. Mas, naquele exato momento seu amor, Trinity, estava correndo sério risco de vida. Então Neo opta por salvar Trinity. Logicamente, esta opção não faria sentido, porque, no caso de desaparecimento da humanidade, ele e Trinity também morreriam. O Arquiteto avalia brilhantemente a escolha de Neo:

        “Esperança. É a quintessência da auto-ilusão humana, simultaneamente, a fonte de sua maior força e de sua maior fraqueza.”

        Quando revi recentemente o terceiro filme, Matrix Revolutions, existe um diálogo entre Neo e o agente Smith em uma das últimas cenas. Agente Smith quer entender o motivo que Neo continuava lutando mesmo sabendo que seria derrotado. A resposta de Neo é simples e marcante e vale por todo o filme:

        “Porque eu escolhi (Because I choose to)!”

        Esta é uma expressão clara do livre arbítrio. Voltarei a este ponto específico, durante a análise do novo filme.

        Decidi que escreveria este artigo somente após rever o filme na HBO Max. Deste modo, pude confirmar algumas impressões e ver outros pontos que passaram despercebidos na primeira vez.

        Em primeiro lugar, o filme não foi desrespeitoso com a trilogia. Em minha opinião, foi um grande tributo. A solução para trazer de volta Neo e Trinity foi muito aceitável. As mudanças da nova versão da Matrix e a paz entre humanos e máquinas também são apresentados. Certamente, as informações são insuficientes para aqueles que não se lembram ou não assistiram os filmes anteriores, mas não era este o público da esmagadora maioria dos espectadores.

        A rejeição injusta não veio dos neófitos da Matrix, mas daqueles que são fãs desta trilogia. Como já mencionei, neste artigo, Matrix de 1999 é uma obra-prima, incrivelmente original, o que torna praticamente impossível a missão de igualá-la em qualidade. Quem foi ao cinema com esta expectativa só poderia se frustrar.

        Aqueles que esperavam cenas de ação inovadoras, como o “bullet-time” do primeiro filme, também se decepcionaram. Muitas cenas de luta do Matrix Resurrections são caóticas. Uma das primeiras até causou-me um desconforto pela quebra da minha expectativa. Por incrível que pareça, achei estas cenas melhores de assistir na tela da TV do que numa sala de cinema IMAX.

        Talvez os decepcionados esperavam por grandes revelações como, por exemplo, novas camadas de Matrix. Assim poderia existir uma Matrix dentro de outra Matrix, dentro de outra Matrix, dentro de outra Matrix… Seria quase um “Inception” (a Origem de 2010), onde as camadas da Matrix substituiriam as camadas de sonhos.

        Esta Matrix de 2021 foi muito mais psicológica e sociológica do que filosófica, como o filme de 1999.

        Thomas Arderson (Neo) está trabalhando em um novo jogo chamado Binary. Várias passagens do filme nos apresentam algumas destas polaridades, muitas vezes difíceis de distinguir, como se tudo fosse binário no mundo:

        • real x imaginário;
        • desejo x medo;
        • livre arbítrio x destino;
        • Thomas Anderson x Agente Smith (em um certo momento do filme até mesmo este antagonismo desaparece temporariamente).

        Bugs, jovem e idealista comandante de uma nave da frota, fala para Niobe, que agora é a líder dos humanos livres na nova cidade de IO, que Niobe estava mais preocupada em cultivar vegetais do que libertar mentes. Assim, Niobe estaria mais interessada nas sensações do que no real. Também percebemos este ponto com o céu falso de IO.

        Niobe também demonstra claramente medo que a paz com as máquinas termine por causa da liberdade de Neo e do seu interesse em resgatar Trinity. Ou seja, é a paz baseada em uma ética utilitarista, na qual os sofrimentos de Neo e Trinity seriam irrelevantes frente à paz em si.

        A nova versão da Matrix foi criada pelo Analista. Ele coloca que os humanos decidem através dos sentimentos ao invés da razão. As versões anteriores, criadas pelo Arquiteto, eram baseadas unicamente em equações matemáticas, na razão. Esta nova versão previa esta característica humana, assim os humanos presos na Matrix ficavam confortáveis. Qualquer semelhança com realidade e distrações, no mundo atual, não é mera coincidência.

        Em minha opinião, a principal reflexão deste filme é sobre a motivação das nossas escolhas. Elas seriam resultado do nosso livre arbítrio ou apenas obra do destino? Se for obra do destino, então todo o livro já está escrito e só nos resta a tarefa de encenar o texto, com pequena liberdade para alguns “cacos” menos importantes. Podemos pensar, por outro lado, que devemos fazer o que é certo. Este conceito nos alinha a ética do filósofo Immanuel Kant. Assim, o livre arbítrio seria fazer o que deve ser feito sem distrações e procrastinações. Como o novo Morpheus fala para Neo:

        “A escolha é uma ilusão. Você já sabe o que deve fazer”.

        Niobe, no filme, decide apoiar o plano para dar a Trinity a oportunidade de decidir sobre sua saída da Matrix. Ela fez o deveria fazer.

        Matrix Resurrections também é uma grande história de amor entre Neo e Trinity – um amor “impossível” entre duas pessoas que estão próximas, mas separadas dentro e fora da Matrix.

        Como eu e a Júlia achamos que não haveria uma cena pós-créditos, perdemos a piadinha do “The Catrix”, que faz sentido nos dias atuais, e a bela dedicatória de Lana Wachowski para seus pais:

        Para papai e mamãe:

        “O amor é a gênese de tudo”

        O que é a mais pura verdade!

        Para finalizar este artigo, o Analista faz a seguinte declaração para Neo e Trinity no final do filme:

        “As ovelhas não vão a lugar nenhum. Eles gostam do meu mundo. Eles não querem esse sentimentalismo. Eles não querem liberdade ou empoderamento. Eles querem ser controlados. Eles anseiam pelo conforto da certeza.”

        Talvez a esmagadora maioria das pessoas que odiaram o filme buscassem, na verdade, o “conforto da certeza” e Lana Wachowski não lhes deu isso.

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        Carta de um Suicida

        A carta a seguir foi encontrada ao lado do corpo sem vida de um homem de meia idade.

        A depressão é minha companhia mais frequente. Costumo ficar sozinho com ela durante horas, dias… Muitas vezes miro no fundo de seus olhos. Nestes momentos, meu coração dói.

        Em algumas ocasiões, tiro a atenção sobre ela, assistindo a um filme ou algum jogo de futebol, mas, tão logo a diversão acaba, lá está ela mais firme e forte junto a mim.

        Outras horas, eu corro, como se estivesse fugindo dela. E ela fica para trás… Mas, quando termina a corrida, e eu volto para casa, sinto-me como a lebre da fábula que sabe que a tartaruga não desistirá e, inevitavelmente, a alcançará. E ela me alcança…

        Em algumas noites, bebo cerveja ou vinho. Parece que, por algum tempo, minha visão se turva e eu paro de enxergá-la com clareza. A depressão transmuta-se em um vulto indefinível, mas, quando o entorpecimento causado pelo álcool passa, sua imagem volta a ficar nítida e parece ainda mais poderosa.

        Meu vazio preenche tudo! E a minha rotina diária não preenche nada, só alimenta o vazio.

        Há dias melhores; outros, piores! Mesmo os dias melhores são insuficientes…

        Decidi abreviar tudo. Eu sou o único responsável pelo sofrer e pela libertação.

        Atenção! Esta carta é fictícia, mas é a expressão do que muitas pessoas sentem atualmente. A depressão ataca parcelas cada vez mais expressivas da população. Como perceber seus sinais e não se entregar? Converse com seus amigos de verdade, normalmente são poucos. Se estiverem distantes, use qualquer meio eletrônico para contatá-los e abra seu coração. Procure ajuda especializada, faça terapia. Vá atrás das causas de seu sofrimento. Pratique algum esporte e evite drogas lícitas ou ilícitas. Lute contra esta inimiga silenciosa!

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        Coringa, Osho, Krishnamurti e…

        Qual é a relação entre o enlouquecido personagem de ficção Coringa, o polêmico guru Osho e o filósofo indiano Krishnamurti? Este breve artigo fará alguns comentários sobre estes personagens e seus impactos nos indivíduos e na sociedade.

        O filme Coringa (Joker em inglês) foi um dos mais instigantes que eu assisti nos últimos anos. Não me lembro de outro filme tão aberto para a interpretação dos espectadores. Afinal nós podemos decidir o que aconteceu e o que era alucinação do Coringa e de sua mãe. Aliás, toda a história pode ser alucinação ou fantasia do personagem principal.

        O ponto do filme que eu gostaria de destacar é a forma como a população de Gotham City revoltou-se contra os poderosos da cidade, escolhendo Coringa como símbolo de seu descontentamento, inclusive usando máscaras de palhaço. Talvez a inspiração dos roteiristas tenha sido a máscara de Guy Fawkes, usado inicialmente pelo anarquista personagem principal e depois pela população de Londres em “V de Vingança”. Pessoas descontentes com sua própria vida normalmente canalizam suas frustrações para o exterior. Algumas vezes, existe um alvo fixo; em outras, há alvos difusos. Assim, Coringa transformou-se em um líder improvável seguido pelos descontentes.

        Bhagwan Shree Rajneesh, mais conhecido atualmente como Osho, foi um guru cercado por polêmicas. O excelente documentário da Netflix “Wild Wild Country” ajuda a conhecer a história da mudança de seu centro de meditação de Pule, na Índia, para o estado americano do Oregon. Em um rancho no meio do nada, foi criada do zero uma cidade autossuficiente batizada como Rajneeshpuram. Alguns milhares de seguidores, chamados de sannyasins e rajneeshees, largaram tudo para participar da construção da cidade e, depois, trabalharam e viveram nesta comunidade. No documentário, vemos a xenofobia e o preconceito dos habitantes antigos da pequena cidade próxima contra as pessoas da nova comunidade. Por outro lado, a forma como a comunidade reagiu às ameaças dos locais foi absurda – tráfico de armas, criação de uma milícia armada, escutas ilegais, planejamento de assassinatos e bioterrorismo, através da contaminação da comida de restaurantes da cidade de The Dalles com a perigosa bactéria Salmonela.

        Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho

        Provavelmente apenas uma minoria dos membros de Rajneeshpuram tinha conhecimento do que foi apresentado no documentário da Netflix. Por outro lado, fica claro que Ma Anand Sheela, secretária e pessoa de confiança de Rajneesh, extrapolou em muito o aceitável e muitos membros da comunidade tornaram-se mais fiéis a ela do que ao próprio Rajneesh.

        E agora eu chego a Jiddu Krishnamurti… Aos treze anos de idade, ele foi considerado pela Sociedade Teosófica como o “Instrutor do Mundo”. Dois anos depois, foi fundada a Ordem da Estrela do Oriente, com Krishnamurti como chefe, mas, aos 30 anos de idade, ele deixa esta posição. A partir daí, torna-se um filósofo e palestrante independente.

        Jiddu Krishnamurti

        Este parágrafo extraído do livro de Krishnamurti “A Primeira e Última Liberdade” ajuda a compreender sua escolha de não ser guru ou mestre e de evitar seguidores.

        Mas esta é a última coisa que desejamos:  conhecer a nós mesmos. Ela é, no entanto, seguramente, a única base sobre a qual podemos criar. Mas antes de podermos construir, antes de podermos transformar, antes de podermos condenar ou destruir, precisamos conhecer aquilo que somos. Sair por aí procurando, mudando de instrutores, de gurus, praticando ioga, técnicas de respiração, realizando rituais, seguindo mestres, e todo o resto, é inteiramente inútil, não acham? Isso não tem nenhum sentido, mesmo que as próprias pessoas a quem seguimos digam: “Estudem a si mesmos” – porque o mundo é o que somos. Se somos mesquinhos, invejosos, superficiais, gananciosos – isso é o que criamos ao nosso redor, isso é a sociedade em que vivemos.

        Para Krishnamurti, as diversões são formas de fugir da batalha que chamamos viver. Entre as diversões, além das óbvias, ele cita as religiões estabelecidas com seus líderes e sacerdotes. A palavra religião, neste artigo e em textos ou palestras de Krishnamurti, não tem o sentido de religação espiritual, o que é desejável e necessário, ela diz respeitos às religiões “oficiais”, como o Cristianismo (e todas suas vertentes), ao Judaísmo, ao Islamismo, ao Budismo, e demais. Deste modo, o tédio diário de uma existência superficial é aliviado, por exemplo, quando se segue um guru espiritual, mas também pode ser um guru de outras áreas como negócios, arte, esporte ou política. Seguir alguém traz segurança.

        Na ficção de Gotham City, a falta de esperança era compensada, seguindo-se um palhaço. A violência preencheu o vazio. Não assistimos situações semelhantes no mundo real?

        Os milhares de seguidores de Osho, ao invés de mudar primeiro a si e, consequentemente, ao mundo ao seu redor, preferiram criar seu próprio mundo e idolatrar cegamente seus líderes. Eram arrogantes, acreditavam que eram superiores aos demais, consideravam-se como os escolhidos. Esta presunção de superioridade acirrou o conflito e aumentou a distância em relação aos demais habitantes do estado do Oregon, nos Estados Unidos. Não assistimos outros grupos religiosos com as mesmas atitudes nos dias de hoje?

        E assim também podemos entender outras distorções. O nacionalismo é outra diversão, assim como a religião, para preencher o vazio existencial das pessoas. O Estado é uma criação dos indivíduos e deveria estar a serviço dos indivíduos. Encare a frase “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” de outra forma, com sua real dimensão. Ela traz conforto e segurança para muitas pessoas e, deste modo, existe muita resistência para questioná-la e abandoná-la.

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        Fragmentados – Somos Kevin Crumb

        Quem assistiu ao Filme “Fragmentado” de M. Night Shyamalan ficou espantado com o número de personalidades diferentes do personagem principal, Kevin Wendell Crumb. O ator James McAvoy representou incrivelmente algumas das 24 personalidades de Crumb, desde o menino Hedwig de 9 anos, passando pela adolescente Jade, o designer de moda Barry e pelo violento Dennis até chegar à mortal Besta.

        James McAvoy interpretou as diferentes personalidades de Kevin Wendell Crumb.

        Talvez haja surpresa ou contrariedade com o que apresentarei a seguir, mas todos nós somos fragmentados. Somos pelo menos um fragmento com nossos pais (às vezes, um diferente para o pai e outro para a mãe). Somos pelo menos um fragmento diferente com nossos filhos (às vezes, um diferente para cada um). Somos um outro fragmento com nosso esposo ou nossa esposa. Somos pelo menos um fragmento no trabalho. Muitos agem de uma forma com o chefe; de outra, com os pares; e ainda de outra, com os subordinados. E assim por diante, somos fragmentos diferentes na escola, no futebol, com os amigos… E há aqueles que se parecem com a personalidade Besta de Kevin Crumb quando estão interagindo nas redes sociais da Internet.

        Eu nem falei dos efeitos da autoridade e do poder que geram outros fragmentos nas pessoas.

        Se concordarmos que em cada papel que exercemos temos comportamento diferente e agimos como se fôssemos outra pessoa, ficará mais fácil aceitar que consideramos nossa própria fragmentação como natural e necessária. Mesmo assim vivemos em conflito, não estamos satisfeitos com o trabalho, com as relações e assim por diante. Sentimos, muitas vezes, um tédio e um vazio interior preenchido com diversões e drogas lícitas ou ilícitas.

        A aceitação do pensamento sobre a naturalidade e inevitabilidade da fragmentação da vida torna naturais outras formas de fragmentação no mundo como, por exemplo, nacionalidades, etnias, religiões, ideologias e classes sociais. Nestes casos, a fragmentação gera a divisão e distanciamento do “nós” e “outros”. Estes “outros” são muitas vezes desumanizados pelo “nós”. O resultado final é o ódio e sua contínua realimentação.

        Como podemos desejar um mundo com paz e menos iniquidade, se nós mesmos vivemos em eterno conflito e admitimos a naturalidade da fragmentação em nós e no mundo?

        Fica claro que, sem resolver o problema dos conflitos no indivíduo, não solucionaremos os conflitos no mundo.

        Afinal quem nós realmente somos?

        Felizmente temos mais controle sobre nossos fragmentos (papéis e personalidades) do que o personagem Kevin Crumb. O poema “If” de Rudyard Kipling nos passa a mensagem que ao nos comportarmos de modo digno e único, não importando a situação ou ambiente, seremos um ser humano integral.

        If you can fill the unforgiving minute

        With sixty seconds’ worth of distance run

        Yours is the Earth and everything that’s in it,

        And – which is more – you’ll be a Man, my son.

        Precisamos estar atentos a nossa forma de pensar e agir para tornarmo-nos uma única pessoa ao invés de um grande mosaico de pequenos cacos zumbis. Só assim nos pacificaremos internamente e, externamente, levaremos esta paz e a justiça aos nossos lares e ao mundo.

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        Os Nossos Pensamentos São Realmente Nossos?

        Este post é o pontapé inicial para uma reflexão mais profunda sobre a origem de nossas ideias. Sabemos que não temos liberdade para fazermos o que surgir em nossas cabeças, mas teríamos a liberdade plena no pensar? Qual é a origem dos nossos pensamentos – nossos cérebros, influências externas ou algo divino?

        A maioria responderá que é dono e responsável pelo nascedouro de suas ideias. Começo com um exemplo simples. Todos os dias o Sol nasce no leste e se põe no oeste. A Lua segue a mesma lógica e, todas as noites, cruza os céus, percorrendo seu caminho através das constelações que compõem o Zodíaco. Através desta simples observação, deduziríamos que a Terra está no centro do universo e o Sol, a Lua, demais planetas e estrelas giram ao nosso redor. Por que pensamos que, na verdade, é a Terra que gira ao redor do Sol, apesar de nossos sentidos nos mostrarem o contrário?

        Adotamos a concepção Heliocêntrica, não intuitiva, ao invés da Geocêntrica, contraditória em relação à nossa percepção, porque fomos convencidos (ou educados) que este modelo é o correto.

        Agora vamos pensar em todos os fenômenos naturais que nos cercam. Alguém, por exemplo, pode chegar à conclusão que as aves voam, porque têm penas. Em uma conversa com outra pessoa, pode convencê-la que isto é verdade.

        Nos dois casos, a matéria prima para os pensamentos veio do exterior e o resultado foi uma simples repetição de um conceito, independentemente da sua assertividade.

        Poderíamos dizer que devemos basear nossos pensamentos na ciência, mas a própria ciência muda seus conceitos com o passar do tempo. A Astronomia passou de Geocêntrica para Heliocêntrica. A Mecânica desenvolvida por Isaac Newton, que funciona perfeitamente conforme nossos sentidos, virou um caso particular na Mecânica Relativística de Albert Einstein.

        Isaac Newton e Albert Einstein [Fonte: BBC]

        E a medida que nos distanciamos das chamadas ciências exatas, mais problemas temos para definir o que é o certo e o errado. Assim assistimos a discussões intermináveis sobre ideologias políticas, papéis do Estado ou direitos e deveres dos indivíduos na sociedade. Ao aceitarmos os conceitos e as imagens que julgamos corretos, nós nos apropriamos deles e acreditamos que verdadeiramente fazem parte dos nossos pensamentos. Mas por que aceitamos algumas ideias e refutamos outras?

        Darei as primeiras pinceladas neste tema complexo, usando as definições de duas palavras alemãs – Zeitgeist e Weltanschauung.

        Zeitgeist pode ser definido como o espírito definidor de um determinado período da história, demonstrado pelas crenças e ideias desta época. Ou seja, sofremos forte influência do Zeitgeist, o espírito do nosso tempo. O estilo da Arte em cada época nos mostra claramente isso. Movimentos libertários pipocaram simultaneamente em vários lugares do mundo muito antes da evolução dos meios de comunicação. Como explicar isto?

        Weltanschauung é uma filosofia ou visão de vida particular, a visão de mundo de um indivíduo ou grupo. Assim os pensamentos são condicionados por esta visão de mundo que, por sua vez, é baseada nos valores de cada pessoa ou grupo.

        Deste modo, a primeira hipótese para a origem dos nossos pensamentos vem da submissão total ao Zeitgeist da época e ao Weltanschauung do grupo.

        O filósofo espanhol José Ortega y Gasset é o autor da famosa frase:

        – “O homem é o homem e a sua circunstância”.

        Filósofo espanhol José Ortega y Gasset

        Para Ortega y Gasset, não é possível considerar o ser humano como sujeito ativo sem levar em conta simultaneamente tudo o que o circunda, incluindo o contexto histórico em que se insere.

        Como superar esta circunstância, ou Zeitgeist e Weltanschauung, para ser realmente livre no pensar?

        Voltarei ao tema…

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