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Política Monetária, Déficit e Desigualdade: por que 1 ponto da Selic pesa mais que muitos cortes no orçamento

Introdução

No debate público brasileiro, política fiscal e política monetária costumam ser tratadas como assuntos separados. Quando o governo anuncia cortes em saúde, educação ou programas sociais, o país inteiro discute, com razão, as consequências. Já as decisões do Banco Central sobre a taxa Selic, que movimentam centenas de bilhões de reais por ano, são vistas como algo técnico, neutro, quase natural. Mas não são!

Em 2024, o Brasil fechou o ano com um déficit primário em torno de R$ 48 bilhões e isso dominou as manchetes. Contudo, um ponto percentual da Selic custa aproximadamente R$ 40 bilhões por ano só em juros da dívida pública. Ou seja, 1 ponto de Selic custa quase o mesmo que o déficit primário anual inteiro.

E, ainda assim, enquanto cada real gasto com políticas sociais é escrutinado, avaliado e frequentemente cortado, os gastos com juros da dívida, que beneficiam investidores detentores de títulos públicos, seguem automáticos, protegidos e intocáveis.

Este artigo tenta trazer luz a essa assimetria, explicando:

  • quanto custa a Selic;
  • como é composta a dívida e por que a Selic amplifica esse custo;
  • o paradoxo de subir juros num momento em que a economia precisa investir;
  • o papel do “mercado” na formação das expectativas que o BC usa para decidir a Selic;
  • e como tudo isso reflete um desenho institucional que reforça desigualdades.

Quanto custa 1 ponto percentual da Selic

O cálculo é simples:

  • o Brasil tem entre R$ 8 e 9 trilhões de dívida pública interna;
  • quase metade dessa dívida é pós-fixada, isto é, rende Selic;
  • portanto, cerca de R$ 4 trilhões variam diretamente com a taxa básica.

Logo: 1 p.p. de Selic ≈ 1% de R$ 4 trilhões ≈ R$ 40 bilhões por ano.

Com essa ordem de grandeza em mente, dá para comparar:

RubricaOrçamento 2024  1 p.p. da Selic equivale a
SaúdeR$ 218 bi  18% da Saúde
EducaçãoR$ 112 bi  36% da Educação
PAC 2024R$ 54 bi  74% do PAC
Investimentos totaisR$ 210 bi  19% dos investimentos

Ou seja:

  • um único ponto da Selic consome quase três quartos do PAC,
  • mais de um terço da Educação,
  • e quase um quinto de toda a Saúde.

Não existe debate público proporcional a isso.

A composição da dívida e a hipersensibilidade à Selic

O Brasil possui um perfil incomum de dívida:

  • 49% pós-fixada (Selic)
  • 27% indexada ao IPCA
  • 20% prefixada
  • 4% em câmbio/outros

Essa composição faz com que qualquer aumento na Selic se transforme em gasto imediato, e gigantesco, para o Tesouro.

Países desenvolvidos têm o oposto, muito mais dívida prefixada, com prazos longos, blindando o governo contra volatilidade de juros. Por outro lado, nós ficamos expostos.

O hiato do produto e a lógica da Selic

O Banco Central usa, entre outros indicadores, o hiato do produto (output gap):

  • quando a economia está abaixo do seu potencial, a inflação tende a cair, então o Banco Central pode cortar juros;
  • quando está no limite da capacidade, inflação tende a subir, então o Banco Central aumenta juros.

Em tese, isso faz sentido. Mas, na prática, isso nos leva a um paradoxo profundo.

O paradoxo da capacidade máxima: quando investir fica mais necessário e mais caro

Quando a economia está “no limite da capacidade”, isso significa que:

  • as fábricas estão cheias;
  • as empresas precisam investir;
  • a economia precisa expandir capacidade produtiva.

O que a política monetária faz? Sobe a Selic para esfriar a demanda. Isso acontece, porque a política monetária trabalha sobre a demanda, não sobre a oferta.

  • A Selic mais alta reduz consumo, crédito e investimento.
  • Mas a inflação em momentos de capacidade cheia não vem só da demanda, vem também da falta de capacidade produtiva, da baixa produtividade e de gargalos estruturais.

Então o BC sobe a Selic sobe como se todos os problemas fossem de “demanda aquecida”, quando muitas vezes o problema é capacidade insuficiente.

O efeito prático é:

  • crédito mais caro;
  • expansão produtiva adiada;
  • menor produtividade futura.

Ou seja, justo quando o país mostra que precisa investir para crescer, a Selic sobe e torna o investimento mais difícil.

Nos EUA e na Europa, quando a economia aquece, o crédito barato sustenta o aumento de capacidade. No Brasil, a economia aquece e recebe um freio.

É um mecanismo que nos condena a ciclos curtos de crescimento – os famosos “voos de galinha”.

Expectativas, mercado e o círculo de retroalimentação

Outra peça crucial é como o Banco Central decide a Selic.

Entre os principais elementos que alimentam a decisão do Banco Central sobre a Selic estão:

  • o Boletim Focus;
  • as curvas de juros;
  • as projeções publicadas por grandes instituições financeiras.

Quem produz essas expectativas?

  • bancos;
  • gestoras;
  • fundos;
  • mesas de operação.


Todos os atores diretamente interessados em juros mais altos. Por isso, cria-se um loop de retroalimentação:

  1. O mercado projeta inflação alta.
  2. O BC interpreta isso como necessidade de juros altos.
  3. Juros altos aumentam rendimentos financeiros.
  4. Projeções permanecem elevadas.

Não é teoria conspiratória – é estrutural.

Nos EUA e na Europa, a estrutura é mais ampla: sindicatos, indústria, consultorias e universidades também influenciam expectativas. No Brasil, o sistema é muito mais concentrado.

A assimetria injusta: cortes para muitos, proteção para poucos

Aqui chegamos ao ponto mais sensível do debate.

Quando o governo precisa “ajustar as contas”, os cortes costumam cair em:

  • Saúde;
  • Educação;
  • Investimentos do poder executivo;
  • programas sociais.

Enquanto isso, o gasto com juros, muito maior do que qualquer uma dessas áreas, quase 1 trilhão de reais, é tratado como inevitável, automático e politicamente intocável.

O resultado é moralmente assimétrico:

  • quem depende do Estado paga o ajuste;
  • quem vive de renda financeira recebe o ajuste, via maior remuneração.

Não se trata de demonizar investidores. Eles cumprem função importante no sistema. Mas reconhecer que as duas políticas – fiscal e monetária – produzem efeitos distributivos, mas apenas a fiscal é debatida, votada e contestada. A política monetária opera sem exame proporcional ao seu impacto.

Para onde seguir: caminhos possíveis

Não existe solução simples, mas alguns movimentos poderiam reduzir essa distorção. Parte deles envolve usar plenamente o mandato duplo do Banco Central, definido pela Lei Complementar nº 179/2021, que estabelece dois objetivos formais:

  1. assegurar a estabilidade de preços (controle da inflação), e
  2. zelar pela estabilidade financeira, contribuindo também para o pleno emprego e o crescimento econômico sustentável.

Apesar disso, na prática, o debate público — e muitas vezes a atuação operacional — tende a tratar a inflação como o único parâmetro relevante. A dimensão relativa ao emprego, atividade econômica e bem-estar social, prevista em lei, permanece subutilizada e raramente aparece como guia explícito na política monetária.

Considerar o mandato completo não significa “afrouxar” a política de controle inflacionário, mas sim colocar a política monetária em diálogo com a realidade produtiva e social do país, evitando que decisões de juros ignorem impactos distributivos, fiscais e de crescimento.

Isso passa por algumas mudanças estruturais:

diminuir a parcela pós-fixada da dívida, reduzindo a sensibilidade extrema da despesa com juros a cada movimento da Selic;
alongar os prazos de emissão, diminuindo a volatilidade e o peso dos juros de curtíssimo prazo;
diversificar as fontes de formação de expectativas, de modo que projeções usadas pelo Banco Central incluam não apenas agentes financeiros, mas também empresas, trabalhadores, universidades, centros de pesquisa e organismos independentes;
integrar, de forma mais explícita, a política fiscal e monetária, evitando choques desnecessários entre o esforço de ajuste de um lado e o encarecimento dos juros de outro;
criar instrumentos de crédito produtivo anticíclico, permitindo que o país invista mesmo em momentos de aperto monetário;
reforçar a transparência sobre os impactos distributivos e fiscais das decisões de juros, algo que hoje sequer entra na comunicação oficial.

Nenhuma dessas medidas afeta a autonomia formal do Banco Central. Todas, porém, ajudam a construir um sistema econômico mais coerente, menos volátil e mais alinhado ao interesse público, combinando estabilidade de preços com responsabilidade social e capacidade de investimento.

Conclusão

A Selic não é apenas um número técnico. Ela é:

  • uma decisão com impacto fiscal gigantesco;
  • um mecanismo com efeitos redistributivos profundos;
  • e um dos fatores que mais moldam o crescimento – ou a falta dele – no Brasil.

Enquanto o país continuar:

  • cortando gastos sociais para “fazer ajuste”,
  • mantendo juros altos como se fossem neutros,
  • e ignorando o paradoxo de frear a economia no momento exato em que ela precisa investir,

continuaremos presos no mesmo ciclo: pouco crescimento, baixa produtividade, desigualdade elevada e dependência de juros altos.

Rever esse arranjo não significa abandonar responsabilidade fiscal; significa torná-la mais inteligente, mais transparente e mais alinhada ao interesse público.

O Brasil não precisa escolher entre estabilidade e desenvolvimento. Precisa apenas reconhecer que parte do que tratamos como ‘natural’ no desenho atual da política monetária é, na verdade, um fator que limita o crescimento e amplia desigualdades e, portanto, pode e deve ser repensado.

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Operações Letais, Mercados Bilionários (Parte 3): política criminal, saúde pública e o dia seguinte da legalização

Este texto é a Parte 3 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Na Parte 1, discuti a ordem de grandeza do mercado de drogas no Brasil; na Parte 2, simulei como a legalização da maconha poderia mexer no caixa das facções.

Agora, a pergunta muda: se a maconha for regulada, o que o Estado faz com essa oportunidade? Aqui entro em cenários de política criminal e saúde pública, para além da lógica puramente repressiva.

6. Três caminhos de política criminal depois da legalização

Legalizar a maconha não é, por si só, uma política de segurança pública; é apenas mudar uma peça importante no tabuleiro. O impacto real sobre violência, facções e sistema prisional vai depender de qual política criminal vem na sequência: manter a inércia, focar na macrocriminalidade ou integrar segurança, saúde e finanças leva a resultados muito diferentes usando o mesmo ponto de partida.

Foram construídos três cenários muito simples de política criminal, resumidos na Tabela 6:

  1. Cenário 1 – Inércia reativa
    • A lei muda, mas a prática não.
    • Continua-se gastando muita energia em varejo e “peixe pequeno”, agora menos com maconha e mais com cocaína e crack.
    • Resultado: o P&L cai 26% porque a maconha foi regulada, mas não cai muito além disso. Violência e encarceramento seguem altos.
  2. Cenário 2 – Foco em drogas pesadas e macrocriminalidade
    • Aproveita-se o “alívio” de recursos na maconha para redirecionar os esforços para:
      • rotas de cocaína;
      • laboratórios e depósitos de crack;
      • e, principalmente, lavagem de dinheiro.
    • A lógica deixa de ser “quantos presos” e passa a ser “quanto de prejuízo financeiro para as facções”.
    • Nesse cenário, é razoável imaginar o P&L de drogas caindo perto de 40%, com cocaína e crack perdendo espaço através da ação, principalmente, da Polícia Federal e polícias estaduais.
  3. Cenário 3 – Estratégia integrada Segurança + Saúde + Finanças
    • Mantém o foco duro do Cenário 2,
    • mas inclui dois braços a mais:
      • saúde, usando parte da arrecadação da maconha para tratar dependência, reduzir danos e cuidar de saúde mental em territórios vulneráveis;
      • sistema financeiro, com COAF, Receita Federal, Banco Central e órgãos reguladores atacando lavagem de dinheiro, empresas de fachada e instrumentos financeiros usados para esconder o dinheiro do crime.
    • Aqui não é só cortar receita, é também mexer na demanda (menos gente presa no ciclo crack–prisão–rua) e no “colchão” financeiro das organizações.

Tabela 6 – Três linhas de política criminal pós-legalização (visão comparada)

(Toda esta tabela é análise qualitativa da IA, inspirada em literatura sobre macrocriminalidade e políticas de drogas.)

IndicadorCenário 1 – InérciaCenário 2 – Foco macro (drogas pesadas)Cenário 3 – Integrado (Segurança + Saúde + Finanças)
Queda no P&L de drogas (base hoje)~26% (só maconha)~40%~40 – 45%
Queda no P&L com maconha~70%~70%~70%
Impacto em cocaína/crackPequenoAltoAlto
Redução de homicídiosBaixaMédiaMédia/Alta
Redução de internações / danos sociaisBaixaBaixa/MédiaAlta
Redução da população prisionalBaixaMédiaMédia/Alta
Ganho fiscal líquidoMédioMédio/AltoAlto
Complexidade de implementaçãoBaixaMédiaAlta

Na prática, os três cenários mostram que legalizar maconha é condição necessária, mas não suficiente. Se a política criminal não se recalibra, troca-se um tipo de guerra por outro. Se ela se recalibra bem, abre-se uma janela rara para:

  • tirar dinheiro do crime;
  • aliviar pressão sobre comunidades e sistema prisional;
  • e ainda financeiramente sustentar políticas de saúde e prevenção.

7. E a saúde? Não dá para varrer os riscos para debaixo do tapete

Qualquer conversa honesta sobre legalização precisa encarar o outro lado: quais são os riscos reais do consumo de maconha?

A Tabela 7 resume as principais evidências:

  • Efeitos agudos: vão do relaxamento e da “larica” até crises de ansiedade, paranoia e prejuízo de reflexos. Dirigir ou operar máquina sob efeito é perigoso.
  • Dependência: não é mito nem é igual a heroína. Algo como 1 em 10 usuários pode desenvolver dependência; o risco sobe se o uso começa cedo e é diário.
  • Saúde mental: uso frequente, com produtos de alta potência em THC, aumenta o risco de quadros psicóticos, especialmente em pessoas com vulnerabilidade genética.
  • Adolescentes: aqui o consenso é amplo. Cérebro em desenvolvimento mais uso regular é igual a mais problemas escolares, mais risco de dependência, mais chance de desfechos psiquiátricos adversos.
  • Pulmão e coração: fumar implica exposição à fumaça (bronquite, irritação) e aumenta frequência cardíaca e pressão por um tempo – o que importa em quem já tem doença cardiovascular.

Tabela 7 – Efeitos do consumo de maconha (resumo)

DimensãoEvidência principal
Efeitos agudosRelaxamento, alteração da percepção, aumento de apetite; mas também ansiedade, taquicardia, paranoia e piora de reflexos e coordenação.
DependênciaCerca de 1 em 10 usuários desenvolve algum grau de dependência; risco maior (aproximadamente 1 em 6) se iniciar na adolescência e usar com frequência.
Saúde mentalUso frequente (principalmente diário e com alta potência de THC) está associado a maior risco de psicose; relação dose–resposta documentada em meta-análises.
Ansiedade/depressãoAssociação bidirecional: pessoas com sofrimento psíquico tendem a usar mais, e uso pesado pode piorar sintomas em parte dos casos.
CogniçãoPrejuízos em atenção e memória de curto prazo; uso precoce e intenso pode associar-se a desempenho escolar pior e déficit cognitivo duradouro.
PulmãoFumar implica exposição a fumaça e produtos da combustão → risco de bronquite crônica e irritação de vias aéreas, similar em lógica ao tabaco.
CoraçãoAumento transitório de frequência cardíaca e pressão; cautela em pessoas com cardiopatias.
GravidezUso na gestação associado a possíveis efeitos adversos no desenvolvimento fetal e neurológico → recomendação geral é evitar.
AdolescentesConsenso de maior risco: cérebro em desenvolvimento, maior risco de dependência e de desfechos psiquiátricos adversos.

A Tabela 8 tenta traduzir isso em desenho regulatório:

  • Se adolescentes são mais vulneráveis, então faz sentido ter idade mínima e proibir marketing direcionado a jovens.
  • Se alta potência aumenta risco de psicose, então faz sentido limitar THC em produtos recreativos e exigir rotulagem clara.
  • Se fumar faz mal para o pulmão, então faz sentido permitir formas não combustíveis (óleos, comestíveis), com regulação rígida de dose.
  • Se gestantes e pessoas com histórico de psicose correm mais riscos, então faz sentido ter alertas específicos e protocolos de aconselhamento na rede de saúde.

Tabela 8 – Riscos e regulação (exemplos)

Risco identificadoMedida regulatória coerente
Maior risco em adolescentesIdade mínima (18 ou 21 anos), proibição de marketing para jovens.
Risco de psicose com uso    pesado / alta potênciaLimites de THC, rotulagem clara de concentração, avisos de risco.
Danos respiratórios ao fumarPermitir produtos não combustíveis (óleos, vaporização regulada, comestíveis) e informar riscos de fumar.
Dependência e uso problemáticoDestinar parte da arrecadação para prevenção e tratamento, triagem em atenção primária.
Risco para gestantesAdvertências específicas em rótulos e campanhas públicas direcionadas.

Em outras palavras: legalizar não é liberar geral. É trocar um mercado sem regras por um mercado com regras que incorporam o que a ciência sabe sobre riscos e danos.


8. Fechando a conta

Se você juntar as peças:

  • um mercado bilionário de drogas,
  • um aparato repressivo que mira desproporcionalmente o elo mais fraco,
  • operações letais como a do Rio,
  • e um conjunto de evidências sobre riscos e possibilidades de regulação da maconha,

a pergunta deixa de ser “legalizar é certo ou errado?” e passa a ser:

Que combinação de regulação, política criminal e atenção à saúde minimiza os danos e o poder econômico do crime organizado?

As tabelas e figuras das três partes deste artigo não dão uma resposta definitiva (nem poderiam), mas ajudam a fazer uma coisa que o debate público brasileiro raramente faz: colocar números na conversa, explicitar premissas, separar o que é dado do que é cenário, o que é convicção do que é evidência.

Se a gente continuar respondendo com a mesma lógica que produziu a operação mais letal da história recente, é provável que vejamos outras grandes operações, outras dezenas de mortos, e o varejo do tráfico funcionando como se nada tivesse acontecido.

Se a gente conseguir tirar a discussão apenas do gatilho e trazê-la também para a planilha e para o SUS, talvez não resolvamos o problema das drogas – mas teremos, pelo menos, parado de repetir a mesma guerra com as mesmas vítimas de sempre.


O que é dado e o que é estimativa da IA:

  • As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
  • O resumo dos efeitos de saúde da maconha (Tabela 7) é baseado em revisões sistemáticas e meta-análises recentes sobre cannabis, psicose, dependência e outros desfechos de saúde, além de relatórios do UNODC.
  • Todas as tabelas com rótulos “2025E”, “Brasil realista” e os cenários de política criminal (Tabelas 2, 3, 4, 5 e 6) são estimativas de IA, construídas a partir:
    • dos números de 2015,
    • da inflação (IPCA) acumulada,
    • de tendências globais descritas no World Drug Report e em estudos sobre mercados legais de cannabis (Canadá, Califórnia etc.).
  • Esses cenários não devem ser lidos como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza e efeitos relativos.

Fontes principais:

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Operações Letais, Mercados Bilionários (Parte 2): cenários de legalização da maconha e o caixa das facções

Este texto é a Parte 2 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Na Parte 1, olhei para o tamanho do mercado de drogas no Brasil e para a distribuição de faturamento entre maconha, cocaína, crack e sintéticos.

Aqui, dou o passo seguinte: uso esses números para simular o que aconteceria com o caixa das facções se a maconha saísse (em parte) do mercado ilegal e fosse para um mercado legal e regulado.

3. O que aprendemos com Canadá, Califórnia e outros “laboratórios” de legalização?

Se o objetivo é tirar dinheiro do crime sem simplesmente trocar um tipo de guerra por outro, faz sentido olhar para quem já mexeu na peça “maconha” do tabuleiro. Canadá, alguns estados dos EUA e outros países funcionam como laboratórios avançados: neles, a maconha passou a ser vendida legalmente, com impostos, regras e, mesmo assim (ou por isso), o mercado ilegal não desapareceu por completo.

Aqui entram dois experimentos importantes:

  • Canadá, que legalizou em 2018 e, alguns anos depois, conseguiu que algo em torno de 70–80% do gasto em cannabis fosse para o mercado legal.
  • Califórnia, que também legalizou, mas, por uma combinação de impostos altos, burocracia e restrições locais, ainda vê cerca de 60% do consumo passando por canais ilegais.

A Tabela 3 resume três cenários, inspirados nesses casos:

  • Um Brasil que imita o “modelo Califórnia ineficiente”, no qual o mercado legal só consegue capturar uns 40% do gasto em maconha, mantendo um mercado ilícito gordo.
  • Um “modelo Canadá médio”, em que cerca de 75% do gasto em maconha vai para o legal.
  • E um cenário mais ambicioso, em que o país usa imposto mais baixo e ampla oferta para asfixiar o mercado ilegal da maconha, chegando a 85% de captura.

Tabela 3 – Cenários de legalização da maconha (captura de mercado e impostos)

(Todos os valores abaixo são estimativas de IA baseadas em benchmarks de Canadá e Califórnia.)

O interessante é notar que, mesmo com parâmetros conservadores, aparecem bilhões de reais por ano em vendas legais e algo entre 1 e 2 bilhões de reais em impostos.

Na Figura 3 (barras empilhadas legal x ilegal por cenário), vemos como cada desenho tributário e regulatório distribui o bolo entre Estado e crime.


4. Um “Brasil realista”: nem utopia, nem catástrofe

Em vez de imaginar um Brasil que vira Canadá amanhã, tentei traduzir isso para um trajeto mais plausível: como poderia ser a legalização da maconha ao longo de alguns anos aqui.

A Tabela 4 mostra um cenário em três marcos:

  • Ano 0 – onde estamos hoje: tudo ilícito, R$ 12,5 bi de mercado de maconha, zero imposto, 100% do P&L na mão do crime.
  • Ano 3 – legalização implantada, mas ainda cheia de atritos: redes legais concentradas nas capitais, muita gente ainda comprando nas bocas. Nesse ponto, algo como 45% do mercado já poderia estar no legal.
  • Ano 7 – mercado maduro, com lojas e cooperativas espalhadas, imposto moderado e repressão focada no comércio ilegal: aqui é onde o cenário supõe 70% do gasto em maconha no mercado regulado.

Tabela 4 – Cenário “Brasil realista” (legalização da maconha em 3 marcos)

(Toda esta tabela é estimativa de IA, inspirada em dados de Canadá, Illinois-EUA e relatórios da Califórnia-EUA, adaptados ao contexto brasileiro.)

Reforçando, essa tabela é um exercício; não uma previsão. Mas ela ajuda a enxergar ordens de grandeza:

  • Em sete anos, o faturamento ilegal com maconha cairia de 12,5 bilhões para 3,7 bilhões (uma redução de aproximadamente 70%).
  • O Estado passaria a arrecadar algo como R$ 1,6 bilhão por ano só com impostos específicos sobre a maconha, fora IR, ISS etc.
  • Boa parte da classe média urbana passaria a comprar em canais legais; o varejo ilegal ficaria concentrado em nichos e territórios mais vulneráveis.

A Figura 4 (gráfico de linha) mostra o crescimento do mercado legal e a queda do ilícito ao longo dos anos.


5. E como ficaria o “P&L do crime” com drogas como um todo?

Legalizar só a maconha não zera o tráfico, obviamente. Mas muda quanto e onde ele ganha.

Partindo do cenário 2025E do mercado de todas as drogas e aplicando o cenário “Brasil realista” apenas na maconha, a Tabela 5 mostra como ficaria o P&L das drogas ilícitas:

  • O faturamento ilícito total com drogas cairia de R$ 33,35 bilhões para R$ 24,65 bilhões – uma redução de cerca de 26%.
  • Só na maconha, o baque é muito maior: queda em torno de 70% na receita ilícita.
  • A contrapartida é que o crime fica mais dependente de cocaína e crack: juntos, eles passam a representar quase 70% do mercado de drogas ilícitas.

Tabela 5 – P&L de drogas ilícitas antes e depois da legalização da maconha

(Coluna “Depois” = estimativa de IA com base no cenário Brasil realista.)

A Figura 5, com duas séries de barras (antes e depois), ajuda a enxergar a mudança:

  • no “antes”, a maconha é a maior barra do gráfico;
  • no “depois”, quem domina o ilícito são a cocaína e o crack.

Isso joga uma luz importante para o debate de política criminal: legalizar maconha mexe muito com o caixa, mas não resolve sozinho o problema da violência associada às drogas, que hoje está muito vinculada justamente à cocaína, ao crack e às armas.

Se a maconha regulada pode tirar até um terço do P&L das drogas ilícitas, o que o Estado faz com essa oportunidade? Mantém a lógica de operação letal, ou recalibra a política criminal para mirar no caixa das drogas pesadas, na lavagem de dinheiro e na saúde dos usuários? É isso que analiso na Parte 3.


O que é dado e o que é estimativa da IA:

  • As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
  • Todas as tabelas com rótulos “2025E” e “Brasil realista (Tabelas 2, 3, 4 e 5) são estimativas de IA, construídas a partir:
    • dos números de 2015,
    • da inflação (IPCA) acumulada,
    • de tendências globais descritas no World Drug Report e em estudos sobre mercados legais de cannabis (Canadá, Califórnia etc.).
  • Esses cenários não devem ser lidos como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza e efeitos relativos.

Fontes principais:

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Operações Letais, Mercados Bilionários (Parte 1): quanto vale o tráfico de drogas no Brasil?

Este texto é a Parte 1 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Aqui, eu olho para os números do mercado de drogas no Brasil e tento responder: de que tamanho é esse negócio? Nas Partes 2 e 3, entro em cenários de legalização da maconha, impacto no caixa das facções e opções de política criminal e de saúde pública.

No fim de outubro de 2025, o Rio de Janeiro assistiu à operação policial mais letal da história do país. Em poucas horas, a Operação Contenção, realizada principalmente nos complexos da Penha e do Alemão, deixou 121 mortos, entre eles quatro policiais e mais de uma centena de pessoas classificadas como “suspeitos” pelas autoridades. A ação superou inclusive o massacre do Carandiru, em 1992, e ganhou repercussão internacional, com questionamentos de organizações de direitos humanos sobre proporcionalidade, legalidade e respeito à vida.

Independentemente da leitura política de cada um sobre essa operação específica, um dado salta aos olhos: estamos repetindo a mesma receita há décadas. Entram centenas de agentes, helicópteros, caveirões, dezenas de mortos, apreensões de armas e drogas… E, alguns meses depois, o comércio de drogas segue funcionando, as facções seguem lucrando e a vida cotidiana das comunidades volta ao “normal” de sempre – com medo, tiroteio e precariedade. Moradores relatam que, depois da fumaça, sobram casas destruídas, escolas fechadas, gente traumatizada e nenhuma mudança estrutural.

Quando olhamos para o problema só pela lente da “guerra ao tráfico”, a conta parece simples: é matar ou morrer, polícia contra bandidos. Mas, do ponto de vista econômico, não estamos falando de meia dúzia de “aviõezinhos”: estamos falando de um mercado bilionário, com cadeias de suprimento, logística, finanças, gestão de risco e diversificação de portfólio. Ao focar quase toda a energia em “peixes pequenos” – o varejo da boca, o jovem armado na esquina – o Estado ataca justamente o elo mais substituível da cadeia. O que não é tocado com a mesma força é o P&L do crime (P&L é o relatório financeiro que detalha as receitas, custos e despesas de uma empresa) – a estrutura que permite que o negócio continue lucrando, recrutando e se reinventando.

Esta série de artigos parte dessa constatação incômoda: se tratamos drogas apenas como problema de polícia, a polícia vira, sozinha, a política de drogas. E os resultados estão aí, em operações como a do Rio: muita gente morta, pouca mudança estrutural. Em vez disso, proponho olhar para o tráfico como o que ele também é – um grande negócio – e perguntar: quanto fatura esse mercado no Brasil? Onde está o grosso do dinheiro? O que aconteceria se uma parte importante desse faturamento saísse da ilegalidade?

A partir de dados públicos de 2015 sobre o mercado de drogas ilícitas no Brasil e de experiências de países e estados norte-americanos que legalizaram a maconha, construo, com ajuda de IA, alguns cenários exploratórios:

  • como pode estar hoje a distribuição de faturamento entre maconha, cocaína, crack e sintéticos;
  • o que mudaria se a maconha fosse legalizada em um cenário “Brasil realista”;
  • e como diferentes desenhos de política criminal podem reduzir (ou não) o caixa das facções.

Por fim, não dá para falar de legalização ignorando a saúde pública: a maconha tem riscos reais, especialmente em adolescentes e pessoas vulneráveis a transtornos mentais, ao mesmo tempo em que políticas bem desenhadas podem reduzir danos, regular a potência dos produtos e financiar prevenção e tratamento. A ideia aqui não é fazer apologia nem demonização, mas tirar a discussão apenas do gatilho e levar para a planilha, o ambulatório e o planejamento de longo prazo. A operação no Rio mostra com brutalidade o que acontece quando a resposta é praticamente só bala. A partir daqui, sigo por outro caminho, usando números, cenários de regulação e evidências de saúde pública para imaginar que país teríamos se o alvo fosse menos o gatilho e mais o desenho da política de drogas.


1. Quanto dinheiro gira no mercado de drogas no Brasil?

Antes de discutir legalização, saúde pública ou política criminal, vale encarar a pergunta mais básica (e mais incômoda) de todas: quanto vale o tráfico de drogas no Brasil? A resposta não é trivial, mas os dados de 2015 já nos dão uma boa ordem de grandeza para entender o tamanho desse mercado e quem são seus “campeões de faturamento”.

A Tabela 1 traz a melhor estimativa pública que temos do mercado interno de drogas ilícitas no Brasil, feita a partir de dados de 2015. É um retrato tirado há 10 anos, mas ainda é o único que fecha a conta com metodologia explícita: número de usuários, quantidade média consumida e preço de rua.

Tabela 1 – Mercado interno de drogas ilícitas no Brasil em 2015

Dados de Luciana Teixeira (Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, 2016) – valores nominais de 2015

O ponto principal não é discutir a segunda casa decimal, mas a ordem de grandeza:

  • Estamos falando de um mercado de cerca de R$ 14,5 bilhões/ano, só considerando maconha, cocaína, crack e ecstasy.
  • A maconha aparece como o maior faturamento, com algo perto de 40% do total.
  • Cocaína e crack, somados, respondem por mais da metade do bolo restante.

Ao transformar a Tabela 1 em um gráfico de pizza (Figura 1), a imagem é simples: um terço maconha, um terço cocaína, um quinto crack, um pedaço menor de ecstasy.

Este é o P&L básico do varejo de drogas no Brasil há dez anos.


2. E hoje, como isso pode estar?

A segunda pergunta óbvia é: “Ok, 2015 passou faz tempo. Como pode estar isso em 2025?”

O problema: ninguém refez essa conta com a mesma qualidade metodológica. Em vez de inventar um “dado novo”, eu preferi construir um cenário exploratório: pegar a base de 2015 e projetar para 2025 usando:

  • a inflação acumulada nesse período,
  • tendências globais e nacionais (mais cannabis, boom de cocaína, sintéticos em alta),
  • e mantendo o padrão de consumo físico médio por pessoa.

O resultado está na Tabela 2. É importante lembrá-la como um modelo de IA, não um relatório do IBGE.

Tabela 2 – Cenário exploratório 2025E do mercado ilícito de drogas no Brasil

(Toda a coluna “2025E” é estimativa de IA, a partir da base 2015 + IPCA + tendências globais.)

Algumas ideias chave para ler essa tabela:

  • Em valores nominais, o “mercado de drogas” pode estar na casa de R$ 33 bilhões/ano, basicamente o dobro de 2015, puxado por inflação e aumento moderado de consumidores.
  • A maconha seguiria relevante, mas perdendo um pouco de participação para cocaína e sintéticos.
  • Drogas sintéticas, praticamente invisíveis na conta de 2015, ganham um pedaço pequeno, mas crescente.

Se você montar a Figura 2 (barras com faturamento 2015 x 2025E para cada droga), a mensagem visual é: as barras de todas as drogas crescem, mas a de cocaína cresce de forma especialmente preocupante.

Na Parte 2, eu parto desses números e os transformo em um cenário de política pública: simulo o que aconteceria com o caixa das facções, a arrecadação do Estado e o sistema de saúde se a maconha saísse (em parte) do mercado ilegal e fosse tratada como um produto regulado.


O que é dado e o que é estimativa da IA:

  • As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
  • A Tabela 2 com rótulo “2025E”, “é estimativa de IA, construída a partir:
    • dos números de 2015,
    • da inflação (IPCA) acumulada,
    • de tendências globais descritas no World Drug Report.
  • Esse cenário não deve ser lido como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza.

Fontes principais:

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Dienekes, o Herói que Manteve a Linha até o Final

No post 300 deste blog, eu prometi voltar a Portões de Fogo, de Steven Pressfield, para falar de Dienekes. E aqui estou, pagando a promessa. Hoje não é o campeão que ganha estátuas; é o oficial veterano que dá o tom, segura a fileira, ensina o jovem e cuida da casa. O romance é narrado pelo seu escudeiro Xéones, e pela voz dele a gente vê o que realmente sustenta a coragem quando as flechas persas escurecem o céu.

“Então lutaremos à sombra.”
(a frase atribuída a Dienekes pela tradição — Pressfield a incorpora no livro)

Essa frase espirituosa resume o personagem: lucidez sem pose, coragem sem teatro. Abaixo, três lentes ajudam a enxergá-lo melhor: quem ele é, o que o liga a Arete e o que ele forma em Alexandros.

Dienekes

1. Quem é Dienekes: coragem moral antes da militar

Dienekes é o oficial que prefere a eficácia à glória. Ele ensina que o problema não é “sentir medo”, é o que fazemos com ele. Em Portões de Fogo, isso vira método: transformar medo em amor (philia) — o cuidado pelo homem à esquerda e à direita, pela cidade, pelo código que os une.

No treinamento, tudo é caráter. Quando Dienekes ajusta a altura do escudo, não é capricho estético: é ética em movimento, porque a aspis protege mais o companheiro da esquerda do que a si mesmo. Quando ele insiste na cadência da falange, não é mania de sargento: é confiabilidade — o outro pode contar com o seu passo. E quando corrige o ângulo da lança, é autodomínio em ação: nada de abrir a asa para “brilhar” e deixar o flanco exposto. Em Esparta, técnica é moral, porque o gesto certo salva alguém. Repetido mil vezes, o gesto vira hábito; o hábito, disposição; e a disposição, caráter. É assim que a disciplina do corpo vai esculpindo a disciplina da alma — até que, quando o medo surge, o corpo faz o certo do jeito certo antes mesmo que a cabeça invente desculpas para fugir. E o humor seco dele aparece quando a tensão sobe — não para minimizar o perigo, mas para manter a cabeça no lugar.

2. Dienekes & Arete: amor que escolhe a lealdade

Arete é uma mulher inteligente, com iniciativa; não é uma esposa-troféu, é parceira. E é na relação com ela que vemos a coragem íntima de Dienekes:

  • Eros disciplinado por respeito – apaixonado por Arete, ele afasta-se por lealdade ao irmão a quem ela fora prometida. Em Esparta, rasgar esse vínculo destruiria a casa e a honra entre pares. Ele escolhe perder algo importante para não quebrar o que é maior.
  • A verdade viva sobre a letra fria – anos depois, quando Arete corre risco real, ela traça um plano — e ele endossa a “mentira justa” e assume a paternidade de uma criança para salvá-la. A cena mostra um casamento entre iguais: ele não manda; confia, decide com ela e assume as consequências.

Em casa ou em Termópilas, é a mesma ética: manter a linha — da falange e da família.

3. Dienekes & Alexandros: o mestre sereno

Alexandros começa como muitos de nós começaram em algo: potencial + impaciência. Quer brilho, feito individual, história para contar. Dienekes mira outro lugar:

  • Converte bravura em constância.
  • Ensina a sentir o medo sem colapsar.
  • Troca o heroísmo solitário por responsabilidade: “o posto do outro depende de você”.

A pedagogia é silenciosa: corrigir o passo, repetir a manobra, fazer perguntas em vez de discursos. No fim, Alexandros já não busca a cena; sustenta a linha.

Síntese das principais mensagens do livro

Eu destaco estas quatro ideias fortes que atravessam o livro:

  • Medo não é vergonha; é matéria-prima da coragem.
  • O antídoto do medo é o amor (philia): olhar para o lado, proteger o companheiro.
  • Treino é caráter e virtudes em movimento: forma o gesto e a pessoa.
  • Serviço antes de glória: a guerra (e a vida) como cuidado do comum.

Portões de Fogo não coloca Dienekes no pedestal do “grande herói”. Ele é o pilar invisível: o que fica, repara a falha do outro, morre sem teatro, com dignidade. Se há grandeza, é a grandeza do comum bem-feito — a mais difícil.

Por que isso importa fora do campo de batalha? Porque a vida tem suas Termópilas: família, trabalho, amizade, amor. “Manter a linha” é:

  • Escolher a lealdade certa, de acordo com seus valores essenciais, quando o desejo cutuca (Arete).
  • Assumir custos para proteger quem depende de nós (a criança).
  • Formar gente para que brilhe menos sozinha e sirva mais ao coletivo (Alexandros).

No fim, Dienekes lembra que coragem não é bravata: é fidelidade tranquila ao que sustenta o outro — e, principalmente, a nós mesmos — quando o céu escurece.

Se você leu Portões de Fogo, me diga: qual cena de Dienekes ficou em você? Se não leu, recomendo. Vá com tempo e, depois, deixe o corpo dar seu próximo passo.

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Autenticidade e Coragem em A Alma Imoral – Zusya, Mar Vermelho e Viktor Frankl

No último sábado, eu e a Claudia fomos assistir à peça A Alma Imoral, com Clarice Niskier, baseada no livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Saí do teatro com aquela mistura boa de silêncio reflexivo e vontade de conversar — sinais de que algo tocou no lugar certo.

Clarice Niskier em “A Alma_Imoral”

A montagem é um monólogo poderoso. Clarice fala de corpo e alma, tradição e transgressão, obediência e autenticidade, fidelidade e traição. Não é apologia à rebeldia inconsequente, é um convite à honestidade: o que ainda fazemos por dever, quando a alma já não está mais ali?

Alguns temas ficaram comigo:

  • Tradição e transgressão. A peça propõe que a tradição só continua viva quando aceita ser “traída” — não no sentido de negar o passado, mas de renovar o sentido.
  • Corpo e alma. O corpo preserva, organiza, dá forma. A alma inquieta, pergunta, desafia, atravessa. Um sem o outro é desequilíbrio.
  • Dúvida e certeza. O texto valoriza a dúvida como motor ético. Não é hesitação improdutiva; é espaço de consciência.
  • Fidelidade e traição. Não apenas ao pacto externo, mas à verdade interna. Às vezes, manter o pacto exige transformá-lo.

Destaco dois trechos que conversam entre si. Me atingiram com mais força por questões atuais da minha vida.

O rabino Zusya: ser quem se é

Há um momento em que surge a história do rabino Zusya (muitas vezes grafado “Zusha” ou “Sucia”).

“Por que estás tão irrequieto? – perguntou o discípulo ao rabino Zusya, ao vê-lo em seus momentos finais de vida.

— Tenho medo – respondeu Zusya.

— Medo de que, rabino?

— Medo do Tribunal Celeste.

— Tu? Um homem tão piedoso, cuja vida foi exemplar? Se tu tens medo, imagine nós, cheios de defeitos e imperfeições.

Rabino Zusya então diz:

— Não temo ser inquirido por não ter sido como o profeta Moisés, não deixei um legado de seu porte. Eu posso me defender, dizendo que não fui como Moisés, porque eu não sou Moisés. Nem temo que me cobrem ensinamentos como os de Maimônides, por eu não ter oferecido ao mundo a qualidade de sua obra e seu talento. Eu posso me defender, dizendo que eu não fui como Maimônides, porque eu não sou Maimônides. O que me apavora, neste momento, é que me venham indagar: Zusya, por que não foste Zusya?

“Um Velho Judeu” de Rembrandt

A questão é devastadora. A questão não é “por que não fomos grandes”, e sim por que não fomos nós. Por que deixamos a vida escorrer por papéis, expectativas e personagens que não nos servem mais?

Essa ideia conversa diretamente com Viktor Frankl. Para ele, o ser humano não busca primeiro prazer ou poder, mas sentido. E sentido é pessoal, original e intransferível — ninguém pode viver o nosso por nós. Como disse Nietzsche:

“Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.”

Zusya está dizendo o mesmo, de outra forma: o fracasso verdadeiro é falhar em ser quem somos. Ele teme ter sido “correto” sem ter sido autêntico. E Frankl nos lembra que a vida nos pergunta o tempo todo — e espera respostas em forma de escolhas e ações.

Viktor Emil Frankl

O Mar Vermelho: o passo que abre as águas

Outro trecho que me pegou foi a releitura da travessia do Mar Vermelho. Não como milagre pronto, mas como metáfora de coragem. O trecho fala de um hebreu que entrou no mar antes de ele se abrir. Só quando a água chegou à altura do seu peito, as águas se dividiram.

A cena desloca o foco: não é “o mar que se abre para eu passar”; sou eu que passo — e o mar responde. A alma transgride o medo, e o caminho aparece depois do passo.

Com Frankl, isso vira linguagem de responsabilidade: não temos garantias, temos liberdade para responder. Em cada situação, há uma tarefa que traz o sentido. Às vezes, é continuar. Em outras, é atravessar. Em quase todas, é assumir o risco do primeiro passo.

No trecho sobre o Mar Vermelho, o sentido se revela no movimento. Para Frankl, responder ao chamado único da situação é o centro da liberdade humana.

Entre Zusya e o Mar Vermelho: escolhas que nos fazem

Juntos, Zusya e o Mar Vermelho compõem um mapa simples:

  1. Quem sou eu, de fato? (autenticidade)
  2. O que a situação me pede agora? (responsabilidade)
  3. Qual passo é meu, mesmo sem garantias? (coragem)

A peça não entrega respostas prontas — “graças a Deus”. Ela faz outra coisa: abre espaço para as perguntas que nos interessam.

Uma reflexão pessoal: sobre mudar e enfrentar o desconhecido

Saí do teatro pensando nas minhas próprias travessias. Em quantas vezes adiei um passo esperando o mar abrir? Em quantas vezes fui “correto” quando precisava ser verdadeiro? Em quantas decisões, no trabalho e na vida a dois, a alma já sussurrava: “é por ali” — e eu pedia mais uma confirmação.

Não tenho grandes heróis internos (como Moisés ou Maimônides) à disposição, mas tenho um Zusya possível e alguns hebreus que adentraram o Mar Vermelho antes de se abrir: aqueles passos pequenos, quase invisíveis, que mudam a direção de uma história.

Se eu pudesse resumir o aprendizado da noite em uma linha, diria assim:

Coragem não é ausência de medo; é fidelidade serena ao que a alma já sabe.

O resto, a gente descobre andando — e o mar costuma colaborar com quem se compromete com o passo.

No sábado, a peça terminou; o assunto, não. E talvez seja esse o melhor efeito da arte: deixar a porta entreaberta para o próximo movimento — o nosso.

Se você já viu A Alma Imoral, me conte o que ficou com você. Se ainda não viu, recomendo. Dê tempo para a alma — e, na saída, deixe o corpo dar seu próximo passo.

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O que sustenta uma relação a dois? 13 fatores para cultivar vínculos reais, vivos e duradouros.

Relacionamentos não andam sozinhos.

Não basta ter vivido bons momentos ou lembrar com carinho do começo. Com o tempo, o que segura a relação de pé não é a memória; é o que se constrói no presente.

A convivência testa. O cotidiano, às vezes, oprime. E, nesse cenário, é o cuidado, quase invisível, que faz diferença: pequenos gestos, conversas que alinham, escolhas que sustentam.

Com o tempo — observando, vivendo, errando e aprendendo — percebi que os casais que seguem inteiros (e não apenas juntos) têm algo em comum: há práticas e valores que eles cultivam.

Nada mágico ou heroico, mas constante. E isso já é muito.

Listei aqui 13 desses fatores. Não são fórmulas, nem garantias, mas são pistas. Ou melhor, são sementes que, com cuidado e presença, podem criar raízes fortes o bastante para sustentar uma história a dois.

1. Companheirismo

Há dias em que o amor parece só isso: estar ali. Seja no cansaço, na rotina ou no trânsito congestionado do fim do dia… Companheirismo é o que transforma a presença em cuidado.

Não é sobre concordar sempre ou ter os mesmos gostos. É sobre não deixar o outro sozinho quando o mundo fica pesado demais.

2. Filhos

Ter filhos muda tudo! E é justamente por isso que o casal precisa se lembrar do que existe para além da parentalidade.

Filhos dão trabalho, ocupam espaço, demandam energia. O amor de casal precisa continuar existindo mesmo ali, no meio do “caos”, porque é desse amor que vem boa parte da estrutura emocional que sustenta a família inteira.

3. Estabilidade emocional

Ninguém nasce pronto, mas é preciso querer crescer. Relações são laboratórios emocionais: revelam nossas fortalezas e nossas feridas. Ter estabilidade emocional não é nunca explodir; é saber se responsabilizar quando isso acontece.

Quem coloca tudo nas costas do outro acaba esgotando a relação. Quem evita olhar para dentro de si mesmo, repete os mesmos erros. Amor maduro pede que cada um se responsabilize pelo que sente e pelo que leva para a relação.

4. Estabilidade financeira

Não dá para romantizar: dinheiro impacta relação. O estresse financeiro desgasta, cria tensão, atrapalha o afeto. A falta de conversa sobre o assunto também.

Não importa o modelo adotado, o que conta é o acordo claro, o respeito e a sensação de que ninguém está levando tudo nas costas sozinho.

5. Reconhecimento público e status

Para algumas pessoas, ser visto ao lado de quem se ama importa. É estar incluído na vida social, apresentado com afeto, lembrado nas conversas.

Não é sobre fazer post com legenda clichê. É sobre não ser invisível. O amor pode ser discreto, mas não deve ser escondido.

6. Valores e visão de mundo compartilhados

Quando os valores combinam, a vida anda mais fluida. Decisões difíceis ficam menos pesadas. As prioridades batem e a relação não vira cabo de guerra.

Não precisa ser tudo igual. Mas os pilares — respeito, visão de futuro, jeito de lidar com outras pessoas e com o mundo — precisam conversar entre si.

7. Comunicação clara e empática

O que não é dito apodrece por dentro. Casal que aprende a conversar com empatia resolve muita coisa antes que vire bomba.

Fale com verdade, ouça de coração aberto e pergunte sem rodeios. Evite adivinhações e recados disfarçados. Priorize afeto e clareza na conversa.

8. Projetos e crescimento em comum

Ter um plano, uma ideia ou um projeto juntos faz bem. Pode ser uma casa, uma viagem, um livro, uma horta ou melhorar o mundo que os cerca. Seja o que for…

O importante é que exista futuro compartilhado, não só passado lembrado. Crescer lado a lado, com propósito, fortalece a relação.

9. Sexualidade e desejo

O corpo se expressa quando as palavras falham. E o desejo, quando aparece ou desaparece, costuma dizer muito sobre o que está vivo ou faltando na relação. Se a vida sexual some ou vira obrigação, algo deve ser olhado.

O desejo é frágil, mas também pode ser reativado com escuta, leveza e reconexão. A forma como a gente se toca, se olha, se aproxima comunica muito. A sexualidade fala. E o desejo reflete: mostra como nos sentimos com o outro e com a gente mesmo dentro da relação.

10. Tempo e qualidade de presença

Não adianta estar do lado se a cabeça está longe. Presença não é só estar lá, é estar inteiro.

Cinco minutos de atenção genuína valem mais do que um dia inteiro de presença distraída. É disso que a relação se alimenta.

11. Autonomia e espaço individual

Estar junto não é virar um só. Amor maduro respeita espaço, incentiva crescimento individual, não tenta controlar.

Quem tem autonomia não precisa fugir da relação para respirar. E quem ama com liberdade, volta querendo ficar.

12. Capacidade de reparar rupturas

Todo casal erra. A questão é o que se faz depois. É essencial saber pedir desculpas de coração, perdoar de verdade, escutar com presença e mudar de atitude.

Reparar não é apagar o que houve, é reconstruir com mais verdade.

Tem gente que nunca briga. E tem gente que briga demais. O que sustenta é saber voltar depois da quebra.

13. Rituais e renovação simbólica

Todo amor precisa de gestos, de lembranças e de ritmo. Um jantar especial, um cartão com uma mensagem escrita à mão, um apelido carinhoso, um sorriso cheio de cumplicidade. Pequenos rituais dizem: “isso aqui importa pra mim”.

Ritual não é obrigação. É escolha. E é também memória futura.

Conclusão

Relação viva é aquela que se cuida, se escuta e se reinventa — sem perder o que tem de essencial.

Não é sobre perfeição. É sobre constância. É sobre escolher, todo dia, cultivar o que vale a pena.

E quando os dois estão nessa, o amor não só dura — ele floresce.

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Eros, Philia e Ágape: Três Formas de Amar em uma Relação a Dois

Quando falamos sobre amor em um relacionamento, tendemos a usar uma única palavra para expressar algo que, na prática, é multifacetado e dinâmico. A tradição grega antiga nos oferece uma chave interessante para entender melhor essa complexidade: ela nomeia três formas distintas de amor — Eros, Philia e Ágape.

Esses três aspectos não competem entre si. Pelo contrário, eles se complementam e podem coexistir em diferentes proporções ao longo da vida a dois. Conhecer suas características nos ajuda a cultivar vínculos mais conscientes e duradouros.

Eros – Desejo, atração e encantamento

Eros é o amor do impulso e da conexão física. É o que nos aproxima do outro nos primeiros encontros, aquilo que provoca fascínio, excitação e a sensação de urgência. É uma força vital que desperta o desejo, o toque, o olhar atento.

Nos relacionamentos duradouros, Eros tende a mudar de forma. Pode perder intensidade se não for cuidado, mas também pode se renovar em novas fases da vida a dois. A intimidade física, o prazer mútuo e o desejo cultivado com intenção mantêm essa dimensão viva — não como no início, mas com mais profundidade.

Philia – Amizade, companheirismo e confiança

Philia é o amor da convivência, da admiração mútua e da cumplicidade. É o vínculo que se constrói quando aprendemos a gostar do outro como pessoa — não só como objeto do nosso desejo. É o amor que se expressa em conversas tranquilas (às vezes, intensas e corajosas), apoio nas dificuldades, projetos compartilhados e risos espontâneos.

Essa dimensão é essencial para a sustentação do vínculo. É quando o casal se torna também amigo, parceiro, alguém com quem é possível dividir tanto as dúvidas quanto os sonhos. Com o tempo, Philia aprofunda a base do relacionamento, tornando-o mais estável e acolhedor.

Ágape – Amor consciente, entrega e transcendência

Ágape é uma forma de amor que transcende o desejo e o vínculo emocional imediato. Trata-se de uma entrega mais profunda, marcada por empatia, escuta e presença consciente.

Diferente de Eros e Philia, que foram amplamente discutidos na filosofia grega, Ágape ganhou destaque principalmente na tradição cristã, onde passou a representar o amor incondicional e generoso, com uma dimensão espiritual e ética.

Ágape não significa passividade ou anulação pessoal. É um tipo de amor que se manifesta na capacidade de cuidar, perdoar e escolher estar junto, mesmo quando há falhas e imperfeições. Ele convida à maturidade emocional e à construção consciente do vínculo.

A seguir, uma visão comparativa dos três tipos de amor, destacando suas contribuições e os desafios que podem surgir quando estão em desequilíbrio.

Tipo de AmorFunção na RelaçãoRiscos Quando Isolado ou Desequilibrado
ErosAlimentar a intimidade física e emocional; criar conexão pelo desejo e encantamento.Pode ser passageiro e ilusório. Sem base emocional, tende a se esgotar com o tempo.
PhiliaSustentar a convivência no longo prazo; fortalecer o vínculo por meio da amizade, respeito e confiança.Sem Eros, pode virar apenas parceria funcional.
Sem Ágape, pode faltar profundidade.
ÁgapeSer o eixo ético e espiritual da relação; promover empatia, perdão e crescimento mútuo.Quando não equilibrado, pode gerar autoanulação ou relações assimétricas.

Amar é também um exercício de consciência

Nenhum desses três amores é suficiente por si só. Eles se misturam, mudam de intensidade e exigem cuidado constante. Um relacionamento saudável é aquele em que Eros, Philia e Ágape não competem, mas colaboram — cada um oferecendo sua força no momento certo.

Cultivar esse equilíbrio é um caminho possível para construir vínculos mais conscientes, afetivos e verdadeiros. Afinal, amar também é um verbo: exige ação, presença, escolha e construção diária.

No próximo post, apresentarei 13 fatores práticos que influenciam diretamente a sustentação de uma relação a dois.

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O que Muda com a Nova Faixa de Isenção do Imposto de Renda até R$ 5 Mil Mensais?

No dia 16 de julho de 2025, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou o relatório do deputado Arthur Lira, que atuou como relator do projeto de reformulação do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). A medida mais emblemática é a ampliação da faixa de isenção para todos os contribuintes que recebem até R$ 5 mil por mês, com vigência prevista para o ano-base de 2026.

A proposta ainda precisa ser votada em plenário e posteriormente analisada pelo Senado Federal, mas já mobiliza discussões entre setores da sociedade civil, economistas e lideranças empresariais.

Este artigo apresenta os principais pontos do projeto, os grupos mais beneficiados, as medidas compensatórias para manter a neutralidade fiscal e o impacto estimado nas contas públicas.

Quem será beneficiado?

Segundo estimativas do Ministério da Fazenda e da Receita Federal, cerca de 37 milhões de contribuintes brasileiros ficarão isentos do IR, um aumento de 13 milhões de pessoas em relação à regra atual. A nova faixa contempla:

  • Assalariados e aposentados com rendimentos de até R$ 5 mil mensais;
  • Profissionais autônomos e MEIs com rendimentos brutos anuais até R$ 60 mil;
  • Pessoas físicas que, após deduções (dependentes, saúde, educação), alcancem renda líquida abaixo do novo teto;
  • Além disso, contribuintes com rendimentos mensais entre R$ 5.000,00 e R$ 7.350,00 também terão redução no valor do imposto pago, devido ao ajuste da tabela progressiva e da faixa de isenção ampliada.

A medida tem forte impacto distributivo, aliviando a carga tributária da classe média e ampliando o poder de consumo.

Como será compensada a perda de arrecadação?

A ampliação da faixa de isenção representa uma renúncia fiscal de R$ 27,9 bilhões por ano, segundo estimativa oficial. Para cumprir a meta de neutralidade fiscal, o projeto propõe três frentes de compensação:

1. Alíquota mínima para altas rendas (IRPFM)

Será instituído um Imposto de Renda Pessoa Física Mínimo (IRPFM) sobre a soma total de rendimentos, incluindo salários, aluguéis, dividendos e ganhos de capital.

A nova regra:

  • Não incide sobre rendas anuais até R$ 600 mil (R$ 50 mil/mês);
  • Cresce progressivamente entre R$ 600 mil e R$ 1,2 milhão/ano;
  • Ativa alíquota mínima de 10% para rendas acima de R$ 1,2 milhão.
Rendimento Anual (R$)Mensal (R$)Alíquota Mínima Efetiva (%)Observação
R$ 600.000R$ 50.0000%Limite de isenção da alíquota mínima
R$ 700.000R$ 58.3331,67%Início da incidência
R$ 800.000R$ 66.6663,33%
R$ 900.000R$ 75.0005,00%
R$ 1.000.000R$ 83.3336,67%
R$ 1.100.000R$ 91.6668,33%
R$ 1.200.000R$ 100.00010,0%Teto da alíquota mínima

Essa medida busca garantir que altas rendas não escapem da tributação progressiva, mesmo utilizando isenções ou deduções legais.

2. Tributação de dividendos acima de R$ 50 mil por mês

O projeto retoma a tributação sobre lucros e dividendos pagos a pessoas físicas, hoje isentos. A regra:

  • Isenta valores de até R$ 50 mil mensais por empresa;
  • Aplica IRRF de 10% sobre o valor excedente, retido na fonte;
  • Permite que esse valor seja compensado com o IRPFM anual.

O objetivo é atingir sócios e acionistas com rendimentos elevados, preservando pequenos empresários.

3. Outras medidas compensatórias

O relatório também inclui:

  • Tributação de investimentos no exterior;
  • Eliminação de deduções específicas e regimes privilegiados;
  • Extinção de dispositivos que permitiriam “neutralizar” a alíquota mínima.

Impacto fiscal da reforma (base anual)

MedidaValor (R$ bilhões)
Total da renúncia fiscal estimada-27,9
Tributação mínima (IRPFM) para rendas altas+12,0
Tributação de dividendos (acima de R$ 50 mil/mês)+9,8
Tributação sobre investimentos no exterior+4,5
Fim de isenções e deduções específicas+2,6
TOTAL DE ARRECADAÇÃO COMPENSATÓRIA+28,9
RESULTADO LÍQUIDO (SUPERÁVIT FISCAL)+1,0

O que é a meta de neutralidade fiscal?

A meta de neutralidade fiscal é o princípio segundo o qual toda perda de arrecadação provocada pela reforma deverá ser compensada por novas receitas. Essa diretriz foi estabelecida pela equipe econômica para preservar o equilíbrio fiscal, conforme determina o novo arcabouço em vigor desde 2023.

“A medida expande justiça social e equidade sem comprometer a responsabilidade fiscal.”
Ministério da Fazenda – Apresentação PL 1087/2025

Conclusão

A proposta aprovada pela Comissão Especial representa um importante avanço na direção de um sistema tributário mais justo, progressivo e transparente. Ao isentar milhões de brasileiros com renda média e tributar de forma proporcional as rendas muito altas, o texto enfrenta distorções históricas do IR brasileiro.

Contudo, a proposta ainda precisa ser votada pelo Plenário da Câmara e pelo Senado Federal. Até lá, ajustes e emendas poderão ser apresentados — inclusive por setores que buscam reverter ou atenuar os dispositivos de tributação sobre dividendos e alta renda.

Será essencial acompanhar os próximos passos para entender o formato final da reforma e seus efeitos práticos na vida de milhões de contribuintes.

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Acolhendo Nossa Criança Interior

No final de maio deste ano, a Claudia promoveu um workshop especial sobre a criança interior no nosso espaço. A proposta era simples e, ao mesmo tempo, profunda: ouvir as vozes sutis (ou às vezes barulhentas) que vivem dentro de nós desde a infância. Foi um convite ao reencontro com nossa essência mais autêntica, nossos medos, tristezas e raivas antigos, além da nossa capacidade de brincar com a vida de forma leve e autêntica. Tudo isso em meio a trocas sinceras, lágrimas, acolhimento e olhos brilhando. E ali, mais uma vez, ficou claro que atrás de muitos dos nossos conflitos do dia a dia, está o velho conhecido ego.

O ego, essa parte da personalidade que quer manter o controle, ser reconhecido, ter razão e proteger-se a qualquer custo, nos guia com frequência mais (e de forma diferente) do que gostaríamos. Ele constrói máscaras, reforça padrões automáticos e, quando ferido, reage como uma criança! E é aí que entra a beleza do trabalho com a criança interior: reconhecer que dentro de cada um de nós habitam várias vozes infantis, com necessidades legítimas, mas frequentemente inconscientes.

Eu Adulto com suas Crianças Interiores

A “Criança Livre” é a que corre descalça no campo das ideias e emoções. Ela ri alto, inventa soluções, brinca com espontaneidade, dança sem música e ama com o corpo inteiro. O Eu Adulto pode abraçá-la, canalizando sua leveza e criatividade, mas também ajudando-a a saber a hora de repousar e respeitar limites.

Já a “Criança Adaptada” é moldada por exigências externas. Pode ser submissa, ressentida ou culpada. Muitas vezes diz “sim” querendo gritar “não” — ou espera, em silêncio, que o mundo adivinhe suas necessidades. O Eu Adulto precisa estar atento, como um bom cuidador, ensinando a essa criança que é possível se expressar sem medo, colocar limites com afeto e buscar o próprio valor fora da aprovação alheia.

E há também a “Criança Rebelde”, que quando ferida ou desacreditada, grita, ironiza, faz birra ou se fecha em silêncio. Ela pode ser uma potência criativa ou uma sabotadora impaciente. Cabe ao Eu Adulto compreender sua dor e transformá-la em força de ação — não como quem castiga, mas como quem escuta e a guia com firmeza e ternura.

Nesse caminho, o Eu Adulto não é um juiz, nem um pai severo. Ele é um guardião interno — aquele que observa, acolhe e age com consciência. Ele é quem consegue dizer “sim” com inteireza e “não” com serenidade. Olha para suas feridas sem julgamento; e para seus talentos, sem soberba.

Foi isso que vi no workshop da Claudia: adultos reencontrando suas crianças internas. Chorando memórias antigas, resgatando bons momentos esquecidos e, sobretudo, aprendendo a se escutar com mais compaixão.

Talvez este seja o maior desafio da vida adulta: crescer sem abandonar (ou querer matar) quem fomos. A maturidade não é enterrar a criança, mas oferecer-lhe um bom lugar no nosso coração.

Se você quiser viver essa experiência, haverá um novo workshop no dia 31 de agosto. Será uma nova oportunidade de escutar as vozes da sua criança interior.

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Os 7 Pilares para um Relacionamento Consciente

Há um tempo, assisti a um vídeo do Jonas Masetti, professor tradicional de Vedanta, sobre os sete fundamentos para um relacionamento saudável. A proposta é simples, mas poderosa: repensar o amor como uma prática consciente — não como ideal romântico ou tarefa de autossacrifício.

Os pontos me tocaram porque são, ao mesmo tempo, espirituais e profundamente humanos. Reflito sobre cada um deles a seguir, com um olhar aberto e, espero, útil para quem também busca construir vínculos com mais verdade e presença.

  1. Sacrifício não é símbolo de amor

      Durante muito tempo, aprendemos que amar é se sacrificar, que a prova do amor está na renúncia. Quanto mais você sofre, mais ama. Mas essa lógica, quando vivida de forma crônica, tende ao desequilíbrio e à perda de si mesmo.

      O amor saudável envolve generosidade, mas não exige autoanulação. A verdadeira entrega nasce da liberdade, não da obrigação.

      Amar não é se apagar para que o outro brilhe — é iluminar juntos, respeitando a própria chama.

      2. Local de fala

        Todos nós falamos a partir de uma história com vivências, traumas, referências e expectativas. Em um relacionamento, respeitar o local de fala do outro é mais do que escutar. É compreender que o que ele sente não precisa fazer sentido para mim para ser legítimo.

        É sair do lugar da defesa e entrar no campo da empatia. E isso só é possível quando reconhecemos que não somos o centro da experiência do outro.

        Escutar com presença é reconhecer que o outro tem um mundo próprio que merece ser visitado com respeito.

        3. Amor não é troca

        Essa é talvez uma das mudanças mais desafiadoras. Em muitos relacionamentos atuais, nos acostumamos a amar esperando algo em troca: reconhecimento, afeto, estabilidade, cuidado. Mas o amor verdadeiro é doação, não barganha.

        Claro, reciprocidade é importante. Mas quando o amor se baseia na expectativa de retorno, ele se torna transação, não vínculo.

        Amar é oferecer o melhor de si sem transformar isso em cobrança. E confiar que o outro saberá responder com o que tiver de mais verdadeiro.

        4. Capacidade de ouvir

        Ouvir parece simples, mas exige esforço. A escuta verdadeira requer que a gente suspenda julgamentos, respostas prontas e a vontade de “corrigir” o outro. Requer presença.

        Ouvir, deste modo, é um exercício de silêncio interno, uma forma de entrega. E é isso que transforma conversas comuns em momentos de conexão real.

        Ouvir não é natural, é escolha — uma prática consciente de abertura e respeito.

        5. Demonstrações de amor em suas diferentes linguagens

        Nem todo mundo se sente amado da mesma forma. Cada pessoa se sente amada de maneiras distintas — seja por meio de palavras carinhosas, do toque, de um presente significativo, de uma ajuda prática ou da simples presença atenta. O amor precisa ser comunicado na linguagem que o outro compreende.

        Reconhecer e praticar essas formas de expressão é essencial para nutrir o vínculo afetivo. Não basta amar em silêncio ou apenas da forma que nos é natural. Amar também é aprender a se comunicar fora da própria zona de conforto.

        Amar é falar na língua emocional do outro — mesmo que, no início, seja com “sotaque”.

        6. Celebrar o não

        Este talvez seja o ponto mais contraintuitivo. Em um mundo que valoriza o “sim” como sinal de aceitação, aprender a dizer “não” e a acolher o “não” do outro são gestos de maturidade.

        O “não” preserva a individualidade e fortalece a confiança. Relacionamentos saudáveis são aqueles em que se pode discordar e recusar — e, mesmo assim, continuar juntos.

        Celebrar o “não” é confiar que o amor é forte o suficiente para sustentar os limites e as diferenças.

        7. Os três propósitos: individuais, da relação e da evolução espiritual

        Esse ponto sintetiza uma visão elevada do relacionamento como um caminho de crescimento. Quando os propósitos individuais são respeitados, o projeto da relação é nutrido, e ambos crescem espiritualmente. Há alinhamento profundo e a relação se torna um campo fértil. Não é só afeto, é também aprendizado, transformação e sentido.

        É uma visão que transcende o amor romântico e o coloca como prática de autoconhecimento. Relacionar-se, desta forma, é ser espelho e espaço de crescimento mútuo. Os três propósitos atuam como bússola. Sem eles, a relação perde o norte e se desgasta na rotina.

        Relacionar-se é partilhar uma travessia. E cada um carrega algo que o outro precisa para seguir mais inteiro.

        Conclusão

        Relacionamentos conscientes não são perfeitos, mas são “mais reais”. São feitos de presença, escuta, verdade e afeto expressado de forma concreta. Não exigem que sejamos outra pessoa, apenas que sejamos inteiros, com coragem para crescer e amar ao mesmo tempo.

        Se você está em uma relação, talvez esses pontos sirvam como um convite à conversa. Se está só, podem servir como um espelho, porque, no fundo, o primeiro relacionamento que exige consciência é o que temos com nós mesmos.

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        Post 300 – A Resistência contra o Colapso da Blogosfera

        E não é que este blog chegou ao tricentésimo post?! Em tempos em que muita gente torce o nariz até para vídeos com mais de cinco minutos no YouTube, como estimular a leitura de textos com mil palavras?

        Com a ascensão da inteligência artificial, respostas instantâneas dispensam visitas a sites ou blogs. Ainda assim, continuo resistindo. Escrever, para mim, é um exercício vital — de reflexão, expressão e partilha.

        Por isso, neste marco simbólico, não pude deixar de lembrar dos trezentos de Esparta, que resistiram ao poderoso exército persa no desfiladeiro de Termópilas. No início do ano, li o romance histórico Portões de Fogo, de Steven Pressfield, e confesso: identifiquei-me com Dienekes, o guerreiro que acreditava que o verdadeiro campo de batalha era interior. Quem sabe, em breve, escrevo sobre isso. Por ora, sigo firme — com minha lança, meu escudo e meu notebook.

        Nestes últimos cem posts, diversidade não faltou…

        O post nº 202 tratou do reuso de água durante a crise hídrica de São Paulo (2014–2015). Também publiquei uma apresentação didática para crianças sobre poluição hídrica, com roteiro e explicações de slides.

        O tema da sustentabilidade apareceu em vários momentos. Comecei com uma mesa-redonda durante uma feira ambiental na Alemanha — Por um Mundo mais Sadio e Justo: o Lixo e a Consciência. Ali conheci o conceito de economia circular. Anos depois, fiz um curso do MIT sobre este tema e publiquei seis artigos baseados nas reflexões do curso. A pergunta segue: ainda temos tempo para discutir o aquecimento global?

        As proteínas vegetais entraram na pauta com uma carta aberta à Revista dos Vegetarianos e em uma conversa que tive com Pat Brown, fundador da Impossible Foods. Também compartilhei como preparar proteína texturizada de soja e um saborosíssimo estrogonofe vegano.

        Criei uma série com quatro textos que conectam físico-química e comportamento humano. Expliquei, de forma descomplicada, conceitos como a Primeira Lei da Termodinâmica, reações químicas, energia de ativação, equilíbrio químico e soluções tampão. Afinal, tem gente endotérmica e exotérmica!

        Lá em 2016, escrevi sobre os algoritmos das redes sociais e a formação de bolhas digitais. Em 2017, manifestei preocupação com a ascensão do nacionalismo e as ameaças à democracia. Em 2020, após ler Engenheiros do Caos, de Giuliano Da Empoli, algumas peças se encaixaram. A busca pelos “Arquitetos da Ordem” continua.

        A polarização daquele período levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff e, pouco depois, à ascensão do Bolsonarismo. Vários posts trataram do governo Bolsonaro, inclusive sobre o início da pandemia — O Triste Clown e seu All-In.

        Comemorei meu cinquentenário com uma série de reflexões sobre a vida. Agora, rumo aos sessenta, sigo na luta…

        Em 2017, fraturei a perna jogando futebol com minhas filhas no quintal. No ano seguinte, contei o que aconteceu depois. E em 2024, contei o surgimento do “Vicente maratonista“, uma consequência surpreendente do acidente de 2017.

        Em um momento mais leve, nasceu a “Trilogia das Sílfides”: histórias fantasiosas sobre jabuticabas, beija-flores e o mormacento verão de Porto Alegre.

        Li As Seis Lições, de Ludwig Von Mises, e escrevi três artigos sobre convergências e divergências. O mundo mudou desde os anos 1950, mas muitos ainda defendem um liberalismo sem freios. Também sugiro ler Autofagia Liberal e Umbigocentrismo e refletir sobre as Três Formas Modernas de Escravidão.

        Parece que muita gente cristalizou posições. Esquecem que polaridade e ritmo são essenciais para uma vida saudável.

        2021 ainda era pandêmico… Escrevi sobre a convivência familiar em tempos de quarentena. Em agosto, perdi minha mãe, Dona Ladi, e fiz uma homenagem com Descartes, Shakespeare e Hilel, o Ancião como testemunhas.

        Li A Revolta de Atlas, de Ayn Rand. Depois de devorar suas 1.200 páginas, escrevi sobre a autora, Francisco D’Anconia, Ragnar Danneskjöld e Ellis Wyatt. Mas esse capítulo ainda não terminou, porque — afinal — quem é John Galt?

        O Papa Francisco, que infelizmente nos deixou, foi citado em um post sobre polarização política. Parece que todos precisam ser rotulados em alguma caixinha.

        O Islamismo foi tema de outros textos. Como escrevi certa vez: Para obter a paz não basta uma vitória militar sobre o Estado Islâmico — ou sobre o Hamas.

        Este blog passou por temas como eutanásia, maioridade penal, empatia, cancelamento digital, David Bowie, Marie Curie, o filme Fragmentado e o último Matrix.

        Fiz uma fusão entre Coringa, Osho e Krishnamurti para falar dos riscos de seguir líderes cegamente. Este tema volta no que considero meu melhor artigo dos últimos cem: I’m Not Dog No – A Servidão Voluntária.

        Quando deixei o conforto da CLT, escrevi As Gaiolas e o Corvo. Porque, sim, tanto a falta, quanto o excesso de propósito podem nos devastar.

        Não sou Martha Medeiros, nem Fabrício Carpinejar, mas escrevo sobre relacionamentos porque a vida me provoca. Por isso, surgiram textos como O Amor Constrói, a Paixão e o Ódio Arrasam Quarteirões; Dores, Crescimento Pessoal e Cicatrizes; Relacionamentos São como Pudins; e, parafraseando Fernando Pessoa: Correr é Preciso, Viver Não é Preciso.

        Chegarei ao post 400? Só o tempo dirá…

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        Relacionamentos são como Pudins

        Você já ouviu essa frase? “Relacionamentos são como pudins; só dá pra saber se são bons provando-os.” É uma daquelas metáforas que parece simples, mas carrega uma enorme profundidade. E, pensando bem, quem inventou isso deve gostar tanto de pudim quanto de refletir sobre a vida. Porque, convenhamos, um bom pudim é praticamente uma declaração de amor em forma de sobremesa.

        Um pudim perfeito é aquele que tem a textura cremosa, o equilíbrio no doce, e uma calda de caramelo que não puxa para o amargo, nem fica cristalizada como se alguém tivesse se distraído no meio do processo. Mas quando o pudim dá errado? Ele pode sair com furinhos demais, um gosto de ovo que ninguém merece ou, pior, desandar completamente, virando uma poça de caramelo e leite condensado mal resolvidos. A questão é que, olhando de fora, tudo parece promissor. Até aquele pudim meio torto pode parecer delicioso. Mas você só descobre a verdade na primeira colherada.

        Agora, troque o pudim por relacionamento. A frase fez sentido?

        Na nossa cabeça, é fácil imaginar aquele “quase relacionamento” como o pudim perfeito da vida amorosa. Por fora, as coisas podem parecer perfeitas. Cremoso, equilibrado, sem defeitos… Aquele que você não provou, mas tem certeza de que seria tudo o que você sempre quis. Só que essa fantasia não leva em conta os “furinhos” que você só percebe quando experimenta de verdade: as diferenças de rotina, de personalidade e de visão de mundo. E eu nem falei dos desentendimentos e imperfeições que todo relacionamento real tem.

        E sabe o que mais? Esses “quase relacionamentos” geralmente se tornam terreno fértil para a idealização. Eles são como aquele pudim que você viu na foto do Instagram, com a calda brilhando sob a luz perfeita. Você pensa: “isso deve ser a melhor coisa do mundo!”. Mas, na prática, pode ser só um doce gelado e sem gosto. E enquanto você está pensando no pudim dos sonhos, aquele pudim real que está na sua mesa – feito com carinho, com os ingredientes disponíveis, e até com uns furinhos de personalidade – acaba sendo subestimado.

        A verdade é que relacionamentos reais não são sobre perfeição. Eles são sobre testar receitas, ajustar o fogo, tentar de novo quando algo desanda. O que diferencia um pudim bom de um ruim não é só a receita – é o cuidado com que ele é feito e a paciência para acertar o ponto. Isso também vale para os relacionamentos. Eles são sobre colocar a mão na massa, resolver os “furinhos” juntos e aceitar que, mesmo quando as coisas não saem perfeitas, elas ainda podem ser deliciosas.

        Então, se você está aí fantasiando sobre um “quase relacionamento”, imaginando que seria tudo o que falta na sua vida, respira… Lembra que o pudim que você ainda não provou pode ser incrível, mas também pode não corresponder às expectativas. Fantasiar sem limites sobre ele só alimenta uma ideia que pode não ter base na realidade. Ao mesmo tempo, o pudim que você já tem na sua frente – com seus pequenos “furinhos” e sua doçura construída no dia a dia – também merece ser apreciado e valorizado, especialmente porque é real, palpável, e já passou pelo teste do tempo.

        A questão principal não é sobre qual “pudim” escolher, mas sobre fazer escolhas conscientes, baseadas na realidade, e não em fantasias. Se você decidir provar algo novo, que seja com clareza e responsabilidade, sabendo que nenhuma receita vem pronta e perfeita. E se a escolha for continuar saboreando o “pudim” que você já tem, que seja com gratidão por cada camada de doçura que ele oferece. O importante é lembrar que a vida não é sobre viver na expectativa de um “pudim” idealizado, mas sobre reconhecer e valorizar o que é real, aqui e agora.

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        A Revolta de Atlas – Ellis Wyatt, Riqueza, Criação de Valor, Mérito e a Criação de uma Sociedade Justa – Um Ideal Utópico?

        Este é o quarto artigo sobre o livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Hoje o assunto é a fala de Ellis Wyatt sobre riqueza e criação de valor, durante seu encontro com Dagny Taggart em Galt’s Gulch.

        Ellis Wyatt é o proprietário da Wyatt Oil, um personagem secundário com merecido destaque no livro. Ele revitalizou quase sozinho a economia do Colorado ao inventar um método inovador para extrair petróleo de poços antes considerados esgotados. Contudo, quando novas legislações e decretos governamentais impedem a operação livre de seu empreendimento, ele ateia fogo em seus poços petrolíferos e deixa apenas uma nota: “Estou deixando como encontrei. Assuma o controle. É seu.” Um dos poços, que desafiou todas as tentativas de apagar as chamas, passa a ser conhecido como a “Tocha de Wyatt”.

        Em outra passagem do livro, ele diz: “O que é riqueza? É a criação de valor. O que você valoriza é o que você considera riqueza.”

        Ellis Wyatt representa o arquétipo do empreendedor produtivo que, com esforço, inteligência e inovação, transforma o que parece ser um recurso inútil — neste caso, um campo de petróleo esgotado — em riqueza tangível. Wyatt é a personificação dos ideais objetivistas de Rand, que celebra o mérito individual, a liberdade de mercado e a rejeição absoluta da interferência estatal, especialmente na forma de redistribuição de riqueza.

        Ellis Wyatt e a “Tocha de Wyatt”

        Ao longo da narrativa, Wyatt defende que a riqueza deve ser o resultado direto do esforço produtivo e que qualquer tentativa de a redistribuir constitui uma forma de coerção imoral. Sua frase emblemática, “Se meu óleo pode ser produzido com menor esforço, peço menos àqueles com quem eu troco pelas coisas de que necessito”, contém o princípio da troca justa: quanto menos esforço envolvido na produção, menor deve ser o preço cobrado. Isso parece, à primeira vista, uma visão economicamente virtuosa e moralmente correta. No entanto, ao trazer essa visão para a realidade dos mercados atuais, permeados por oligopólios, lobbies poderosos e assimetria de informações, surgem questões críticas sobre o real funcionamento desse ideal. Além disso, ao rejeitar totalmente a redistribuição de riqueza, Wyatt pode promover a formação de uma sociedade marcada por desigualdade extrema e falta de oportunidades, algo que muitas vezes resulta em instabilidade social.

        Oligopólios e a Concentração de Mercado

        Na visão de Rand, o mercado é um campo de competição livre e justa, onde os mais capazes prosperam e os ineficientes são naturalmente eliminados. Todavia, essa visão ignora a realidade de muitos setores econômicos, que atualmente são dominados por oligopólios — estruturas de mercado em que poucas empresas controlam a maioria da oferta. Essas grandes corporações têm um poder de mercado substancial, o que lhes permite influenciar preços e impor barreiras à entrada de novos concorrentes.

        No cenário de oligopólios, a competitividade com base no mérito, tão defendida por Wyatt, é comprometida. Grandes empresas podem controlar preços, muitas vezes mantendo-os artificialmente altos, independentemente de reduções nos custos de produção. A lógica de Wyatt, onde menores custos de produção resultariam em menores preços, esbarra na prática comum de oligopolistas de priorizar lucros em detrimento de eficiência. Isso cria um ambiente onde a inovação pode ser desestimulada, pois as empresas estabelecidas podem se concentrar em preservar sua participação de mercado, ao invés de melhorar continuamente seus produtos ou serviços.

        Além disso, essas corporações utilizam barreiras econômicas e regulatórias para impedir que novos concorrentes entrem no mercado, o que impede a meritocracia que Wyatt valoriza. Assim, em um ambiente dominado por grandes players que ditam as regras, o princípio de troca justa e livre, no qual Wyatt acredita, torna-se utópico, visto que os mecanismos naturais de competição são comprometidos pela concentração de poder econômico.

        Lobbies e a Influência Política

        Outro obstáculo significativo ao ideal de Wyatt é a existência de lobbies poderosos que influenciam governos e políticas públicas em favor de grandes corporações. Empresas podem utilizar sua influência para moldar o ambiente regulatório de maneira a garantir vantagens competitivas que não têm base na eficiência ou no mérito, mas sim em relações políticas. Isso desvirtua a livre concorrência e reforça a desigualdade de oportunidades, uma vez que os pequenos concorrentes, sem acesso a esse tipo de poder, acabam marginalizados.

        A captura regulatória — quando agências governamentais responsáveis por regular setores específicos da economia são dominadas pelos interesses das empresas que deveriam supervisionar — também compromete a ideia de um mercado onde o mérito prevalece. As empresas que podem influenciar políticas e regulações conseguem criar proteções artificiais para seus negócios, perpetuando sua posição dominante. Isso vai diretamente contra a ideia de que o mercado deve ser o único regulador da riqueza, recompensando apenas os mais produtivos.

        Além disso, essas grandes corporações, com o apoio de políticas favoráveis, muitas vezes recebem subsídios ou benefícios fiscais que desincentivam a inovação e perpetuam a concentração de riqueza. Em um cenário como esse, a ideia de que a riqueza é proporcional ao mérito e ao esforço torna-se distorcida, uma vez que o sucesso pode depender mais da influência política do que da produtividade real.

        Assimetria de Informações e a Justiça nas Trocas

        A visão de Wyatt e Rand pressupõe que as trocas econômicas ocorrem de forma justa e transparente, com ambas as partes possuindo informações iguais e fazendo escolhas racionais. No entanto, no mundo real, a assimetria de informações é uma característica inerente a muitos mercados. Os produtores, especialmente grandes corporações, possuem muito mais informações sobre seus produtos, processos de produção e condições de mercado do que os consumidores. Isso cria uma vantagem desleal que mina a noção de troca justa.

        Por exemplo, em setores complexos como o de serviços financeiros ou de tecnologia, os consumidores muitas vezes não têm condições de avaliar completamente o valor ou os riscos de um produto. Essa falta de informação cria uma relação desigual entre as partes, na qual os vendedores podem explorar essa desvantagem para maximizar seus lucros. A ideia de Wyatt de que a riqueza deve refletir o esforço produtivo perde força, pois os consumidores não têm como avaliar de maneira adequada o valor do que estão comprando.

        Além disso, quando a complexidade dos produtos aumenta, como no caso de serviços de saúde ou seguros, os consumidores ficam ainda mais vulneráveis a práticas exploratórias, o que compromete o ideal de Rand de que as trocas no mercado são sempre justas e baseadas no mérito.

        Rejeição da Redistribuição de Riqueza e a Criação de uma Classe Marginalizada

        Uma das questões mais críticas na filosofia de Ellis Wyatt é a rejeição completa da redistribuição de riqueza. Segundo ele e Rand, a riqueza deve ser o resultado direto do mérito e do esforço individual, e qualquer tentativa de redistribuí-la seria uma violação da liberdade do produtor. No entanto, a consequência prática dessa postura pode ser a formação de um contingente populacional empobrecido, sem acesso à educação, saúde e sem perspectivas de ascensão social.

        Wyatt e Rand não reconhecem que, sem algum tipo de redistribuição, a desigualdade extrema pode se tornar insustentável. Embora a eficiência e a produtividade sejam virtudes inquestionáveis, elas não necessariamente atendem às necessidades sociais de uma grande parte da população, especialmente daqueles que, por diversos motivos, não têm acesso às mesmas oportunidades. Sem mecanismos de redistribuição, como educação pública, programas de assistência social e redes de proteção contra o desemprego, a pobreza pode se tornar hereditária, criando gerações inteiras sem perspectivas de melhorar suas condições de vida.

        A falta de redistribuição também pode exacerbar o problema do desemprego estrutural. Com o avanço da tecnologia e da automação, muitos trabalhadores, especialmente os menos qualificados, podem ser simplesmente excluídos do mercado de trabalho, sem qualquer rede de segurança. Isso pode resultar na criação de uma classe marginalizada, sem educação, sem emprego e sem futuro.

        Falta de Educação e Saúde: Barreiras à Mobilidade Social

        Wyatt acredita que o mercado, por si só, pode proporcionar a ascensão dos mais talentosos e produtivos. No entanto, sem acesso universal à educação e à saúde, as pessoas nascidas em condições de pobreza terão grandes dificuldades para competir em um mercado de meritocracia pura. A privatização completa desses serviços, algo que Wyatt e Rand parecem sugerir, tornaria a educação e a saúde privilégios dos ricos, perpetuando as desigualdades existentes.

        Sem educação de qualidade, uma parte significativa da população não teria as qualificações necessárias para participar ativamente do mercado e, portanto, ficaria relegada a empregos de baixa remuneração ou ao desemprego. Isso cria uma divisão social insustentável, onde as oportunidades estão concentradas nas mãos de poucos, enquanto a maioria permanece marginalizada.

        Riscos à Estabilidade Social

        A ausência de mecanismos de redistribuição, ao lado de uma crescente desigualdade, pode levar a uma instabilidade social significativa. Grandes desigualdades de renda e riqueza frequentemente resultam em tensões sociais, protestos e, em casos mais extremos, violência. As pessoas marginalizadas pela estrutura econômica tenderão a se ressentir da concentração de poder e riqueza nas mãos de uma pequena elite produtiva, o que pode gerar revoltas e conflitos.

        Além disso, a falta de uma rede de segurança social pode aumentar os níveis de criminalidade e criar um ambiente de insegurança generalizada. À medida que mais pessoas caem na pobreza extrema, sem acesso a bens essenciais como educação e saúde, a frustração social aumenta, comprometendo a estabilidade de qualquer sistema que não ofereça soluções coletivas para esses problemas.

        Conclusão

        A visão de Ellis Wyatt, e por extensão de sua criadora, Ayn Rand, oferece um ideal de meritocracia e trocas justas, onde a riqueza é resultado do esforço individual e da produtividade. No entanto, ao ser aplicada ao mundo real, essa visão encontra obstáculos significativos, como a existência de oligopólios, lobbies poderosos, assimetrias de informações e desigualdades estruturais. Além disso, a rejeição completa da redistribuição de riqueza pode criar uma sociedade profundamente desigual, com um contingente populacional empobrecido e sem perspectivas de mobilidade social.

        Embora o ideal de Wyatt celebre o mérito e a liberdade individual, a ausência de mecanismos de redistribuição pode levar a um ciclo de pobreza e desigualdade que não apenas prejudica os indivíduos marginalizados, mas também compromete a estabilidade social como um todo. Assim, a riqueza, quando acumulada sem a consideração de fatores coletivos, pode se tornar um catalisador de desequilíbrios sociais e tensões que minam a própria estrutura da sociedade que Wyatt deseja proteger.

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        Como Deixar o Etanol Brasileiro Ainda Mais Verde e Circular

        O governo brasileiro estimulou a produção de etanol para combustível a partir da cana de açúcar através do ProÁlcool, programa iniciado em meados da década de 1970. Este programa foi revitalizado nos anos 2000.

        Lançamento do Fiat 147 a álcool (Fonte: Anfavea)

        O etanol hidratado pode ser utilizado como substituto da gasolina. E atualmente etanol anidro é adicionado na gasolina comum na proporção de 27%. Através da tecnologia “flex-fuel” (ou “dual-fuel”), a maior parte da frota de automóveis do Brasil pode usar qualquer proporção de etanol e gasolina como combustível.

        Deste modo, há uma redução na queima de combustíveis fósseis, além da plantação de cana de açúcar absorver a maior parte do CO2 emitido pelos veículos, reduzindo assim os GHG (gases de efeito estufa) na atmosfera.

        Muitas usinas produzem etanol e açúcar refinado ou apenas semirrefinado. O melaço, subproduto da produção de açúcar, pode também ser aproveitado para a produção de etanol.

        O bagaço, sólido fibroso proveniente da extração dos açúcares, é usado como combustível nas caldeiras para produção de vapor de alta pressão. Este vapor alimenta turbinas para a geração de energia elétrica e o vapor de escape atende as demandas térmicas do processo. As cinzas da queima do bagaço possuem alto teor de nutrientes minerais, sendo compostadas com outros resíduos orgânicos da usina e usados como fertilizante no canavial.

        Produção de energia elétrica a partir de bagaço de cana (Fonte: Unica)

        A fermentação alcoólica gera aproximadamente 1 kg de CO2 por kg de etanol. Ou seja, há oportunidades para o desenvolvimento do uso desta corrente. Uma aplicação existente é a produção de carbonatos “verdes” a partir do CO2 da fermentação.

        Na destilação, são produzidos grandes volumes de vinhaça. São gerados em torno de 12 litros de vinhaça por litro de etanol hidratado. Esta vinhaça possui grande quantidade de matéria orgânica (alto DQO – demanda química de oxigênio) e minerais, sendo utilizada integralmente para irrigação dos canaviais.

        Fertirrigação de um canavial (Fonte: Embrapa)

        Apesar de vários aspectos positivos da recuperação de resíduos deste processo para outros processos ou retorno para o solo, existem oportunidades a serem perseguidas.

        No campo, a palha da cana de açúcar não é levada para a usina. Deste modo, sua função atual é proteção e nutrição do solo. Há oportunidade para usar parte desta matéria orgânica para produção de energia elétrica, biogás ou etanol de segunda geração (etanol celulósico).

        A vinhaça pode ser pré-digerida anaerobicamente e produzir biogás rico em metano, antes de irrigar os canaviais. O biogás pode ser combustível para produção adicional de energia elétrica ou, após purificação, pode ser transformado em metano verde. Se houver um gasoduto próximo, este gás pode ser injetado na rede.

        Sistema de geração de biogás (Fonte: Única)

        Os caminhões, colhedoras e tratores utilizam óleo diesel como combustível. Ou seja, existe consumo de combustível fóssil para produção de combustível renovável. E o óleo diesel é um dos itens mais importantes no custeio do etanol. Estima-se que 5% de todo o diesel consumido no Brasil é utilizado no setor sucroenergético. Uma alternativa é a transformação dos motores dos caminhões em “dual-fuel” (diesel-metano). Outra opção poderia ser motores híbridos elétricos e a metano. Nestas opções, os caminhões seriam abastecidos na fila para descarregamento para a moenda de cana.

        Outro ponto, pode ser a melhoria da eficiência térmica das usinas para aumentar a geração de energia elétrica para o grid. Existem correntes quentes de vapor de baixa pressão na evaporação de caldo de cana, normalmente, sem sistema reaproveitamento energético.

        Além disso, também se poderia melhorar o aproveitamento interno da água para reduzir a captação de água limpa dos rios e poços.

        Mesmo sem estas melhorias sugeridas, o etanol de cana no Brasil é muito mais eficiente do que o etanol de milho e estima-se que gere apenas 14% das emissões de CO2 em comparação com a gasolina.

        Os principais produtos da usina, açúcar e etanol, podem ser matérias primas para obtenção de produtos verdes. O etanol, por exemplo, pode ser a matéria prima para produção de eteno (matéria prima para produção de plásticos) 100% renovável. O açúcar pode ser usado como fonte de alimento de microrganismos para a produção de inúmeras moléculas, desde ácidos orgânicos e polímeros a óleos alimentícios.

        No que refere aos aspectos sociais, uma usina emprega centenas de pessoas, tornando-se um motor importante para a economia de pequenas cidades do interior do Brasil. As condições de trabalho melhoraram muito nas últimas duas décadas. Os impostos oriundos das atividades destas usinas ajudam a melhorar os serviços públicos de educação e saúde de pequenas cidades.

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        Os Orgânicos e a Circularidade

        A produção de vegetais (verduras, frutas, raízes e legumes) orgânicos possui algumas regras que facilitam a adoção da circularidade. A seguir estão listadas algumas diretrizes para a produção de produtos orgânicos:

        • Oferta de produtos saudáveis isentos de contaminantes.
        • Uso de boas práticas de manuseio e processamento com o propósito de manter a integridade orgânica e as qualidades vitais do produto.
        • Preservação da diversidade biológica dos ecossistemas naturais e a recomposição ou incremento da diversidade biológica dos ecossistemas modificados.
        • Emprego de produtos e processos que mantenham ou incrementem a fertilidade do solo e o equilíbrio da sua atividade biológica.
        • Adoção de práticas nas unidades de produção que contemplem o uso saudável do solo, da água e do ar.
        • Reciclagem de resíduos de origem orgânica, reduzindo ao mínimo possível o emprego de recursos naturais não renováveis.
        • Utilização de práticas de manejo produtivo que preservem as condições de bem-estar dos animais.
        • Estabelecimento de relações de trabalho baseadas no tratamento com justiça, dignidade e equidade, independentemente das formas de contrato de trabalho.
        • Incentivo à integração entre os diferentes participantes da rede de produção orgânica.
        • Regionalização da produção e do comércio dos produtos.

        De acordo com estas premissas, não são utilizados fertilizantes químicos no processo. A fertilização é realizada através dos resíduos vegetais da própria fazenda, através de compostagem. Pode-se caracterizar este processo como recuperação. Se a quantidade de fertilizante orgânico obtida não for suficiente, pode-se importar resíduos animais e vegetais de localidades próximas e compostá-las junto com os resíduos próprios. O processamento dos resíduos externos caracteriza-se como reciclagem.

        Compostagem aeróbia – Foto: Alexander Silva de Resende (site Embrapa.br)

        Em relação às emissões de gases de efeito estufa, se a fazenda conservar ou aumentar a quantidade de matéria orgânica no solo potencialmente pode ser net zero ou net negative. Ou seja, o empreendimento estaria sequestrando carbono da atmosfera ao invés de emitir.

        Uma questão interessante seria a substituição dos equipamentos movidos a óleo diesel por elétricos. Se a geração de energia elétrica for local através de painéis fotovoltaicos, seria ambientalmente ainda melhor.

        Como não são usados inseticidas, a existência de insetos polinizadores, como as abelhas, é estimulada. E pragas e doenças podem ser evitadas através da associação de diferentes espécies vegetais. Há aumento de biodiversidade.

        O recurso desafiador é o consumo de água. A fazenda pode implantar irrigação por gotejamento para reduzir em até 90% o consumo de água, entretanto ainda seria necessário aporte de água externa através de chuva ou abastecimento, por exemplo, através de um rio.

        Se o regime de trabalho na fazenda não for sazonal, pode-se estabelecer relações de trabalho duradouras e justas com possibilidade de participação nos resultados econômicos do empreendimento.

        Produtores e consumidores podem estar ligados através do modelo de agricultura apoiada pela Comunidade (CSA – Community-Supported Agriculture). Neste modelo socioeconômico alternativo, a comunidade subscreve a colheita de uma determinada propriedade ou grupo de propriedades agrícolas. A principal vantagem é a partilha dos riscos agrícolas.

        Um ponto importante é referente às embalagens. Muitos produtos orgânicos são vendidos em embalagens oriundas de fontes não renováveis como bandejas de isopor, filmes e sacos plásticos. Por uma questão de coerência, seria importante reduzir o volume de embalagens e substituir os materiais por fontes renováveis, recicláveis e biodegradáveis. Neste caso, a sustentabilidade e circularidade dos alimentos orgânicos seriam melhoradas. Esta medida poderia ser regulada pelos Estados que determinariam um prazo para banir embalagens de matérias primas não renováveis ou de reciclagem difícil.

        Muito plástico e isopor nas embalagens dos vegetais orgânicos nos supermercados

        No próximo artigo desta série sobre circularidade, apresentarei o caso da indústria brasileira do açúcar e etanol e suas contribuições e oportunidades.

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        Quando o Aumento do PIB Empobrece o País?

        Muitas pessoas definem o PIB, Produto Interno Bruto, como a soma das riquezas geradas por um país ou região durante um certo período. Esta definição é pobre, porque não considera o consumo do capital natural do país ou região.

        Imagine a seguinte situação: uma empresa tinha um estoque de produtos acabados no valor de dez milhões de reais e o saldo de sua conta corrente, incluindo investimentos, era de um milhão de reais em 2022. Neste caso, seu ativo circulante era onze milhões de reais. No ano seguinte, esta empresa reduziu em 50% seu estoque. O faturamento gerado pela venda dos produtos em estoque foi de 5 milhões de reais. Praticamente todo o dinheiro foi usado para a subsistência da empresa. No final do ano, o saldo na conta corrente era dois milhões de reais. Ou seja, os ativos foram reduzidos em quatro milhões de reais. A tabela abaixo, onde todos os valores estão expressos em milhões de reais, explicita esta análise.

        Tabela 1 – Evolução do Patrimônio de uma Empresa (valores em milhões de reais)

        Fica claro que o patrimônio desta empresa encolheu em 4 milhões de reais em um ano. Se esta empresa mantiver esta tendência, ficará endividada em dois anos.

        O economista Thomas Piketty no seu livro “Uma Breve História da Igualdade” apresenta o seguinte exemplo:

        “Um país que extraia 100 bilhões de euros de petróleo do seu solo gera um PIB adicional de 100 bilhões de euros. Em contrapartida, a Renda Nacional correspondente é nula, pois o estoque de capital natural foi reduzido na mesma proporção. Se além disso, escolhermos atribuir um valor negativo correspondente ao custo social das emissões de carbono geradas pela combustão do petróleo em questão, então obteremos uma Renda Nacional muito negativa.”

        Ou seja, o PIB não considera nem a variação do estoque de capital natural, nem as externalidades negativas geradas pelas atividades econômicas.

        Interação entre os Estoques de Capital Natural e a Atividade Econômica – Fonte: Reflections on the Role of Natural Capital for Economic Activity – European Comission, 2023

        O Brasil é um país muito relevante em termos de área coberta por florestas e outros ecossistemas naturais, bem como pela produção de alimentos e de fibras para uso industrial.

        Fica claro que a exportação de minérios se encaixa na mesma situação do exemplo do país exportador de petróleo apresentado por Piketty. Ou seja, a exportação de minério de ferro deve gerar uma Renda Nacional negativa, devido à redução do capital natural e aos impactos ambientais e sociais negativos.

        O caso da exportação de commodities agrícolas é bem mais complexo. O sol é a fonte de energia para a fotossíntese e, consequentemente, para o crescimento vegetal. A energia do sol entra com custo zero no nosso cálculo de capital natural. No caso da água, sais minerais e matéria orgânica do solo, precisaríamos analisar os seus estoques antes e depois de cada safra. Se a área da plantação for oriunda de desmatamento de uma floresta nativa, evidentemente houve uma redução do capital natural.

        O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) elaborou em 2021 a primeira contabilidade do capital natural do país, como resultado do Projeto NCAVES (Natural Capital Accounting and Valuation of Ecosystem Services) da ONU. O relatório analisou diferentes áreas:

        • Cálculo das dimensões dos Ecossistemas: uso da terra por bioma.
        • Determinação das condições dos corpos hídricos.
        • Serviços dos ecossistemas.
        • Relato de espécies ameaçadas no Brasil.
        • Ativos ambientais individuais e cálculo dos recursos.
        • Aplicações de contabilidade econômica ambiental para obtenção de indicadores.
        • Discussão da combinação dos resultados entre os cálculos das dimensões, determinação das condições, serviços ecossistêmicos, relato das espécies ameaçadas para os seguintes biomas: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pampa e Pantanal.

        Com base neste trabalho, se poderá calcular se há geração de riqueza em atividades econômicas importantes para o Brasil como, por exemplo, plantação de milho e soja para ração, ou criação de gado bovino em pastagens, ou plantação de eucaliptos para a produção de celulose. As discussões advindas da análise destes resultados podem gerar novas orientações para a economia do país. Deste modo, a melhoria contínua na qualidade dos dados é essencial para otimizar as tomadas de decisão.

        Ecosystem Accounts for Brazil: Report of the NCAVES project | System of Environmental Economic Accountinghttps://seea.un.org/content/ecosystem-accounts-brazil-report-ncaves-project

        No caso da agricultura, se o capital natural (água, solo, biodiversidade) está sendo preservado na propriedade, poderia haver redução de impostos e acesso a fontes de financiamento com juros mais baixos.

        O próximo artigo apresentará alternativas para aumentar a circularidade dos produtos não duráveis, os chamados bens de consumo de movimento rápido.

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        A Revolta de Atlas – Ragnar Dannesjöld, Sonegação e Meritocracia

        Chegamos ao terceiro artigo sobre o livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Hoje o assunto será o discurso do “pirata” Ragnar Danneskjöld sobre impostos e meritocracia.

        Ragnar Danneskjöld atua como um pirata que ataca os navios que transportam doações dos governos dos países ricos para países pobres. Segundo ele, estes bens são roubados dos produtores ricos pelos governos corruptos, através dos impostos. O resultado das pilhagens é vendido no mercado negro da Europa pelo maior preço possível e o ouro, oriundo destas operações, é depositado em contas secretas em nome de empresários, com base no imposto de renda pago por eles.

        O navio do “pirata” não ataca embarcações privadas ou Marinha de Guerra dos países. Ele segue a lógica ultraliberal que apenas a segurança, interna e externa, é função do Estado e nada mais.

        Danneskjöld odeia a figura Robin Hood que, segundo ele, é o símbolo da moralidade invertida que domina o mundo. Transcrevo o trecho abaixo, no qual Ayn Rand explicita, através de seu personagem, a sua forma de ver o mundo, usando a figura de Robin Hood como contraexemplo do seu pensamento.

        “Diz-se que ele lutava contra governantes saqueadores e restituía às vítimas o que lhes fora saqueado, mas não é esse o significado da lenda que se criou. Ele é lembrado não como um defensor da propriedade, e sim como um defensor da necessidade; não como um defensor dos roubados, e sim como protetor dos pobres. Ele é tido como o primeiro homem que assumiu ares de virtude por fazer caridade com dinheiro que não era seu, por distribuir bens que não produzira, por fazer com que terceiros pagassem pelo luxo de sua piedade. Ele é o homem que se tornou símbolo da ideia de que a necessidade, não a realização, é a fonte dos direitos; que não temos que produzir, mas apenas de querer; que o que é merecido não cabe a nós, e sim o imerecido. Ele se tornou uma justificativa para todo medíocre que, incapaz de ganhar seu próprio sustento, exige o poder de despojar de suas propriedades os que são superiores a ele, proclamando sua intenção de dedicar a vida a seus inferiores roubando seus superiores.”

        Ou seja, para Ayn Rand, os verdadeiros heróis são os ricos produtivos, porque criam valor para a sociedade com sua competência e seu trabalho. Os pobres, que não ganham o suficiente para seu sustento, são incompetentes e parasitas, porque se aproveitam da riqueza “roubada” dos ricos para sobreviver. Esta visão de mundo, nua e crua, é a defesa extrema da meritocracia social, na qual condena-se qualquer forma de redistribuição de renda ou altruísmo.

        Eu concordo que as pessoas devam ser recompensadas de acordo com o resultado de suas atividades produtivas e com a capacidade de gerarem valor. Por outro lado, não podemos desprezar que existe uma parcela pequena da população que já larga muito à frente da maioria em termos de educação. Imagine agora um país que siga 100% a ideologia de Ayn Rand, capitalismo liberal laissez-faire. Neste lugar, o Estado não recolheria mais a maior parte dos impostos pagos pelos produtores ricos e os pobres teriam que custear, além de suas despesas básicas (alimentação, habitação, transporte e vestuário), saúde e educação. Como qualquer forma de altruísmo é condenável, quem não tivesse meios de subsistência estaria entregue à própria sorte. E se hoje já é muito difícil a ascensão social dos mais pobres, neste país seria praticamente impossível.

        O curioso é que a autora parece desconhecer que uma ação social iniciada no governo do Presidente Roosevelt em 1944, o programa G.I. Bill, teve um enorme impacto econômico positivo nos Estados Unidos. O período de validade do programa, 1944-1956, é quase o mesmo em que Ayn Rand escreve “A Revolta de Atlas”, 1946-1956.

        Presidente Roosevelt assinou a Lei do Programa G.I. Bill em 1944.

        O programa G.I. Bill foi uma iniciativa do governo norte-americano para oferecer benefícios educacionais aos veteranos que serviram nas forças armadas durante a Segunda Guerra Mundial. Milhões de soldados americanos cursaram o ensino superior, técnico ou profissional, com custos subsidiados pelo governo. Este programa G.I. Bill foi considerado um dos maiores investimentos públicos em capital humano da história, e teve um impacto significativo na economia, na sociedade e na cultura dos Estados Unidos no pós-guerra. Infelizmente devido às leis de segregação racial vigentes nos estados sulistas norte-americanos, os negros não tiveram as mesmas benesses dos brancos. Assim a distância econômica e social entre brancos e negros aumentou naquele país.

        Além de tentar destruir o mito de Robin Hood, Danneskjöld também defendia a sonegação de impostos. Por todos os motivos já expostos, ele considerava os impostos uma forma de roubo praticada pelo Estado. Ele resume sua missão no primeiro encontro com o industrial Hank Rearden assim:

        “Bem, eu sou o homem que rouba dos pobres e dá para os ricos, ou, mais exatamente, que rouba dos pobres ladrões e devolve aos ricos produtivos.”

        Se Danneskjöld e Ayn Rand conhecessem o sistema tributário brasileiro, talvez ficassem felizes ao descobrir que os mais pobres pagam mais impostos do que os mais ricos. O peso dos impostos sobre bens e serviços no Brasil é bem mais alto do que nos países da OCDE (42% do total arrecadado contra média de 32% em 2020), onerando os mais pobres. Mesmo no imposto de renda, os super-ricos pagam alíquota média menor do que os brasileiros da classe média, porque dividendos não são tributados no Brasil. Veja o gráfico abaixo do Portal G1 com dados de 2020 sobre alíquotas médias de imposto de renda por faixa de rendimento.

        Diferentemente do discurso sobre dinheiro de Francisco D’Anconia, no qual eu concordo com a essência do seu conteúdo, considero o discurso de Ragnar Danneskjöld absurdo. Como procurei demonstrar neste artigo, mesmo os Estados Unidos na década de 1950 não seguiam este capitalismo ultraliberal. Se aplicássemos os postulados de Danneskjöld, não seria imoral juntar uma fortuna nababesca, enquanto milhares morrem de fome e doenças na mesma cidade.

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        A Revolta de Atlas – Francisco D’Anconia e o Dinheiro

        Como anunciei no artigo inaugural sobre a “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand, eu faria novas postagens sobre este livro. Resolvi iniciar por uma das minhas passagens favoritas, o discurso de Francisco D’Anconia sobre o dinheiro.

        Francisco D’Anconia é um dos personagens principais do livro. Ele é o herdeiro de uma das maiores fortunas do mundo e é um empresário bem-sucedido que administra a empresa de mineração de cobre de sua família. Durante a festa de aniversário de casamento de outro personagem, o industrial Hank Rearden, ao ouvir alguns convidados falando mal do dinheiro, D’Anconia faz um discurso a favor.

        Antes de entrar no discurso em si, gostaria de comentar as três funções do dinheiro: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. O dinheiro é usado como meio de troca para facilitar a compra e venda entre pessoas e empresas. Nos primórdios, o comércio era realizado através de escambo. Imagina como algumas transações eram complexas… O dinheiro é usado também como reserva de valor, permitindo que as pessoas e empresas economizem e guardem valor ao longo do tempo. Com esta reserva, pode-se realizar investimentos, como adquirir bens e serviços de valor mais elevado. O dinheiro também é usado como unidade de conta para facilitar a comparação de preços e valores. Assim, pode-se calcular o custo total de um produto para determinar seu preço mínimo de venda ou saber qual o custo de vida mensal de uma família.

        D’Anconia afirma que o dinheiro é o meio de troca universal que permite que as pessoas possam realizar suas trocas de bens e serviços de maneira mais eficiente e produtiva. Esta primeira função do dinheiro é apresentada em detalhes e como a oferta e procura determinam os valores dos bens materiais e serviços. Como o dinheiro vale o mesmo na mão de cada indivíduo, sem intervenções dos governos, ele torna-se um símbolo da liberdade humana. Todas as transações são guiadas pelo livre-arbítrio. Deste modo, o dinheiro é apenas um instrumento, não é o mal em si mesmo. O verdadeiro problema são a forma e o propósito como as pessoas utilizam o dinheiro para obter poder e controle sobre outras pessoas.

        D’Anconia enfatiza que a única forma de alcançar a verdadeira liberdade e prosperidade é através da produção e do comércio honestos, baseados em valores objetivos e não em manipulações políticas. Ele conclui seu discurso afirmando que deseja que as pessoas percebam que o dinheiro é um fator essencial na conquista da felicidade e da realização pessoal.

        Concordo com esta linha de ver o dinheiro apenas como um meio ou instrumento. Realmente existe influência de algumas religiões e linhas de pensamento de esquerda que consideram o dinheiro como algo sujo ou impuro. Esta crença prejudica sensivelmente as vidas de muitas pessoas que, muitas vezes, se sentem culpadas ao receber dinheiro como justa contrapartida à venda de um produto ou serviço. Sentem culpa pela própria prosperidade.

        O dinheiro é o sangue do tecido social. Ele é necessário para a economia funcionar, permitindo que as pessoas adquiram bens e serviços, invistam em empresas e poupem para o futuro. Na ausência de dinheiro, as relações sociais seriam significativamente afetadas, com impactos negativos na qualidade de vida das pessoas. Por isso, é fundamental garantir acesso igualitário ao dinheiro e promover sua circulação saudável na sociedade.

        Por outro lado, Ayn Rand, através de seu personagem, tem uma visão utópica, pois não dá o devido peso às imperfeições do mercado com seus cartéis, lobbies e assimetria de informações, para a prática de produção e comércio honestos. Sem dúvida, estas imperfeições desequilibram a balança para o lado dos que possuem poder econômico ou político.

        A seguir transcrevo uma parte muito interessante do discurso de D’Anconia.

        “O dinheiro se baseia no axioma de que todo homem é proprietário de sua mente e de seu trabalho. O dinheiro não permite que nenhum poder prescreva o valor do seu trabalho, senão a escolha voluntária do homem que está disposto a trocar com você o valor do trabalho dele. O dinheiro permite que você obtenha em troca dos seus produtos e do seu trabalho aquilo que esses produtos e esse trabalho valem para os homens que os adquirem, nada mais que isso. O dinheiro só permite os negócios em que há benefício mútuo segundo o juízo das partes voluntárias. O dinheiro exige o reconhecimento de que os homens precisam trabalhar em benefício próprio, não em detrimento de si próprios. Para lucrar, não para perder. De que os homens não são bestas de carga, que não nascem para arcar com o ônus da miséria. De que lhes é preciso oferecer valores, não dores. De que o vínculo comum entre os homens não é a troca de sofrimentos, mas a troca de bens.”

        Esta passagem defende o capitalismo consciente, onde se busca um equilíbrio entre as relações, um ganha-ganha, no qual o lado mais forte não explora ou deprecia o trabalho do lado mais fraco. O Liberalismo de Ayn Rand possui um fundo moral, onde a riqueza é obtida de forma ética, sem exploração dos funcionários das empresas.

        Pilares do Capitalismo Consciente

        “A riqueza é produto da capacidade humana de pensar.”

        No tempo de Ayn Rand, o capitalismo financeiro não era tão importante. Ela não aprovaria o dinheiro oriundo de mera especulação financeira. A riqueza deveria ser a expressão da capacidade humana de pensar e agir na agricultura, na indústria ou nos serviços.

        Neste contexto, “só o homem que não precisa da fortuna herdada merece herdá-la – aquele que faria sua fortuna de qualquer modo, mesmo sem herança”. Novamente Ayn Rand liga o dinheiro ao devido merecimento que é um fator importante para a felicidade e realização pessoal.

        Destaco a parte final da música Money do Pink Floyd:

        Money, it’s a crime
        Share it fairly but don’t take a slice of my pie.
        Money, so they say
        Is the root of all evil today
        But if you ask for a raise it’s no surprise that they’re
        Giving none away

        Acredito que o dinheiro em si não é a “raiz de todo o mal hoje”, mas sim a ambição cega por dinheiro e poder.

        Nas próximas semanas, comentarei os discursos de outros personagens do livro “A Revolta de Atlas”.

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        Como a Falta ou o Excesso de Propósito Podem Ser Devastadores

        Eu tenho visto cada vez mais especialistas e gurus, falando sobre a importância de se ter um propósito na vida. Esta orientação não é válida apenas para as pessoas físicas (PF), como também para as empresas (PJ). O propósito é um objetivo maior, de longo prazo, não é somente ganhar dinheiro, adquirir um bem ou fazer uma viagem. Estes exemplos podem ser metas de curto e médio prazos que apoiam um objetivo maior de longo prazo.

        Há alguns anos, escrevi um artigo sobre o psiquiatra austríaco Viktor Frankl. Ele percebeu que as pessoas que resistiam aos horrores dos campos de concentração nazistas eram as que tinham um sentido maior para suas vidas, um propósito. Estes propósitos estavam além das suas próprias existências, impactavam positivamente pessoas próximas, grupos maiores ou, até mesmo, toda a humanidade.

        Viktor Emil Frankl

        Pessoas com propósitos desejam deixar legados positivos no mundo. Se existe algo maior além do horizonte, fica mais fácil suportar os períodos mais difíceis e superá-los, extraindo aprendizados.

        Quando falta propósito, um objetivo significativo na vida, todos os dias são tediosamente ou desesperadamente iguais. Onde deveria estar o propósito há apenas um vazio que traz apatia e indiferença pelo que acontece ao redor. Deste estado depressivo, podem surgir alternativas para preencher o vazio da vida, como distrações, drogas ou seguir cegamente líderes, religiões e ideologias políticas.

        As pessoas com propósitos podem trabalhar em empresas que não tenham os mesmos objetivos. Deste desalinhamento, pode nascer uma frustração crescente que leva a desmotivação do funcionário. Nestes casos, o melhor a fazer é procurar outra ocupação.

        Mas pode haver também excesso de propósito? Minha resposta é sim. E as consequências podem ser muito graves. Nestes casos, o objetivo é tão rígido que impede que o entorno seja percebido. Pessoas com esta mentalidade pensam e conversam, quase que exclusivamente, sobre seu objetivo maior. Perdem o repertório, tornam-se os chatos nas rodas de conversa. Suas vidas passam a se resumir a esta busca incessante. Família, amizades e lazer são relegados a um plano muito inferior de importância. Qualquer atividade que as afaste, mesmo que momentaneamente, do seu propósito causam ansiedade e culpa. No final, estas pessoas ficam tão obcecadas que podem destruir seus relacionamentos e acabarem isoladas e doentes.

        Pequenas empresas e startups, onde os donos são a empresa, podem sofrer também deste mal. Muitas oportunidades não são perseguidas, porque seus líderes estão cegos e inflexíveis pelo propósito inicial. No final, a empresa quebra e boas ideias são desperdiçadas.

        Como tudo na vida, o equilíbrio é essencial. Devemos estar atentos e periodicamente analisarmos se nosso propósito de vida ainda faz sentido. Por outro lado, não podemos agir como “birutas” que mudam de direção conforme os ventos.

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