Muitas pessoas ao lerem o título deste artigo já ficaram tão injuriadas que não seguiram a leitura nem desta primeira frase. Claro que isto inclui os seguidores inquestionáveis de Lula e os de Sérgio Moro. Neste artigo, não defenderei os erros de nenhum dos lados. Apenas demonstrarei meu ponto de vista, tanto Lula, quanto Moro empregam o mesmo modelo de ética.
Recentemente assisti novamente ao filme Watchmen. Os principais personagens adotam diferentes modelos de ética. Recomendo que assistam ao filme (disponível no Netflix) dirigido por Zack Snyder ou leiam o livro em quadrinhos (romance gráfico), escrito por Alan Moore e ilustrado por Dave Gibbons. A Revista Time considerou este livro um dos cem melhores romances publicados em inglês desde 1923. A seguir apresento o modelo ético de alguns personagens do filme.
Rorschach segue o modelo da Deontologia, também conhecido como a ética de Kant. É o agir pelo dever. Pode parecer estranho, mas só pode ser atingida através do livre arbítrio. Só a vontade pode embasar a moralidade e suplantar os instintos. Para Rorschach, tudo é preto no branco; é olho por olho, dente por dente.

Immanuel Kant
Ozymandias e Dr. Manhattan seguem o modelo teleológico, também conhecido como Utilitarismo. Foi defendido pelos filósofos e economistas britânicos Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Pode ser resumida na frase “agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar”. Para Ozymandias, pessoas podem ser prejudicadas para o benefício da maioria.

Jeremy Bentham e John Stuart Mill
Coruja II segue a ética da virtude clássica, a ética do filosofo grego Aristóteles. Ele busca o equilíbrio, o caminho do meio, entre os extremos.

Aristóteles
Se já viu o filme ou não pretende vê-lo, siga a leitura. Caso contrário, os próximos parágrafos serão spoilers. Volte ao artigo após a foto dos super-heróis do filme. E quando for assistir ao filme, lembre-se de que é um filme de super-heróis só para adultos.
O filme se passa nos anos 80, onde uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética é iminente. Ozymandias traça um plano para destruir algumas das principais cidades do planeta, usando uma tecnologia desenvolvida através dos poderes do Dr. Manhattan. Quando isto acontece os EUA e a URSS se unem contra um inimigo comum (Dr. Manhattan) e o mundo entra em um período de paz. Ou seja, Ozymandias mata milhões para salvar a vida de bilhões, seguindo o utilitarismo.
Rorschach e o Coruja tentam impedir o plano sem sucesso. Dr. Manhattan e Espectral aparecem e, ao verem na TV o discurso do presidente americano, Nixon, os heróis se dão conta que contar a verdade poderia destruir a paz obtida através do plano de Ozymandias. Rorschach não se conforma e, mesmo sabendo que provavelmente aquele seria o último ato de sua vida, diz que denunciaria o plano de Ozymandias, porque todos têm o direito de saber a verdade.
Temos então o seguinte diálogo:
Ozymandias – Será mesmo Rorschach, se me denunciar irá sacrificar a paz pela qual milhões morreram hoje.
Coruja II – Paz baseada em uma mentira.
Ozymandias – Mas é paz, apesar de tudo.
Dr. Manhattan – Ele está certo.
Espectral – Não, não podemos fazer isso!
Dr. Manhattan – Você me ensinou o valor da vida humana, se quisermos preservá-la aqui, temos que ficar em silêncio.
Rorschach – Fiquem vocês com suas mentiras! Não faço acordos, nem mesmo
diante do Armagedom.
Fora do palácio de Ozymandias, Rorschach encontra Dr. Manhattan e o diálogo prossegue.
Dr. Manhattan – Rorschach, você sabe que não posso permitir isso!
Rorschard – Se tivesse se importado desde o começo com a humanidade nada disso aconteceria.
Dr. Manhattan – Posso mudar quase tudo Rorschach, mas não posso mudar a natureza humana.
Rorschach – Claro, deve proteger a utopia de Veidt (nome verdadeiro de Ozymandias). Um cadáver a mais não faz diferença. Muito bem, o que está esperando, vai me mate, me mate…
Dr. Manhattan explode Rorschach, porque também aderiu ao utilitarismo. A morte de Rorschach garantiria a paz e, deste modo, as vidas de bilhões estariam salvas. Por outro lado, Rorschach seguiu a ética de Kant até o último instante de sua vida. A justiça e a verdade devem estar acima de tudo, não importam as consequências.

Watchmen – da esquerda para direita: Ozymandias, Dr. Manhattan, Espectral II, Rorschach, Coruja II e Comediante
Voltando agora a Lula e Sérgio Moro…
No livro “Uma ovelha negra no poder”, dos jornalistas Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz, lançado em 2015 sobre a vida do ex-presidente uruguaio, Pepe Mujica, há um trecho sobre o Mensalão, escândalo que assolou o primeiro mandato de Lula. Abaixo transcrevo a página do livro traduzida para o português.
Lula teve de enfrentar um dos maiores escândalos da história recente do Brasil: o mensalão, uma mensalidade cobrada por alguns parlamentares para aprovar os projetos mais importantes do Poder Executivo. Compra de votos, um dos mecanismos mais antigos da política. Até José Dirceu, um dos principais assessores de Lula, está processado por esse caso.
“Lula não é corrupto como era Collor de Mello e outros presidentes brasileiros”, disse Mujica, referindo-se ao caso. Contou também que Lula viveu aquele episódio com angústia e com um pouco de culpa. “Neste mundo tenho que lidar com muitas coisas imorais, chantagens”, disse Lula com pesar a Mujica e Astori, algumas semanas antes de assumirem o governo do Uruguai. “Essa era a única forma de governar o Brasil”, se justificou. Eles tinham ido visitá-lo em Brasília, Lula sentiu necessidade de esclarecer a situação. “O mensalão é como este país, tudo é enorme”, refletiu.
“O mensalão é mais velho do que o agujero del mate (expressão uruguaia que se refere a algo velho)”, opina Mujica. Grandes políticos da história tiveram de recorrer a mecanismos semelhantes. “Às vezes, este é o preço infame das grandes obras”, argumentou ao lembrar-se Abraham Lincoln, justo nos dias em que havia estreado um filme de Steven Spielberg sobre a vida do presidente dos Estados Unidos, no qual ele mostrou como ele tinha que entregar algo em troca de votação para seus projetos.
De acordo com Mujica, Lula aceita pagar o mensalão para viabilizar o seu governo. O pagamento a deputados para votarem a favor das leis propostas pelo governo é ilícito e imoral. Este ato vai contra a Deontologia (a ética de Kant), porque afronta a justiça e a verdade. Por outro lado, ao aprovar rapidamente essas leis, o governo obteve o que precisava para a execução do seu plano. Ou seja, a ética usada foi utilitarista.
O pior no utilitarismo é que pode seguir aquela máxima de que os fins justificam os meios. E isto fica claro nos escândalos de corrupção que visavam financiar a permanência do PT no governo, investigados pela Operação Lava-Jato.
Sérgio Moro cometeu um ato ilegal ao divulgar a escuta telefônica em que Lula conversava com a então presidente Dilma Rousseff. Ele despachou às 11:13 do dia 16/03/2016, suspendendo a escuta telefônica contra o ex-presidente Lula. No mesmo dia, às 13:32 foi gravada a conversa de Lula com Dilma, onde é combinada a assinatura do termo de posse de Lula como Ministro da Casa Civil. Apesar da escuta ser considerada ilegal, Moro derrubou o sigilo e liberou sua divulgação. Não estou nem discutindo a questão do foro para autorizar a divulgação de grampo telefônico de uma presidente no exercício do cargo.
Moro, no seu despacho que autoriza a divulgação dos áudios, arremata:
“A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras.”
Eu sei que você ficou em dúvida se Moro agiu como Rorschach, seguindo a ética kantiana numa luta para punir o mal, ou como Ozymandias, seguindo o utilitarismo em que os fins justificam os meios.
A condenação de Lula no caso do “Triplex do Guarujá” pode dirimir esta dúvida. Moro condenou Lula a 9 anos e meio de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O problema é que o triplex nunca saiu do nome da OAS, foi inclusive usado como garantia na Caixa. A condenação foi baseada em alguns depoimentos e mensagens, sem provas realmente concretas.

Lula e Moro no interrogatório do Processo do Triplex do Guarujá (Fonte: Folha de São Paulo).
Para Kant, o Estado não pode punir um cidadão para inibir os outros a cometerem ilícitos. Neste caso, o utilitarismo seria aplicado. A pena é uma retribuição ética que se justifica pela moral, fundamentando a pena tão somente pelo mal que o condenado já praticou e não como uma maneira utilitária de promover o bem de outros ou do próprio condenado.
Sérgio Moro agiu em relação à Lula de acordo com a perspectiva do utilitarismo. Mesmo sem provas suficientes para condená-lo, ele decidiu fazê-lo, removendo Lula do processo eleitoral brasileiro no ano passado.
Para completar, Moro suspendeu os novos interrogatórios de Lula para evitar exploração política que pudesse interferir nas eleições. Por outro lado, há seis dias do primeiro turno das eleições presidenciais, quebrou o sigilo da delação de Antônio Palocci que fazia acusações contra Lula. Assim Moro, mais uma vez, agiu de modo utilitarista, reduzindo as chances eleitorais do PT. Afinal, na sua visão, seu objetivo de combater a corrupção seria prejudicado com a volta de Lula, ou pelo menos de alguém do PT, à presidência de República.
E você segue qual perspectiva ética – kantiana, utilitarista ou aristotélica?
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