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Como Sobreviver a Dez Quarentenas

No século XIV, durante a epidemia de Peste Negra na Europa, os navios que desejavam aportar em Veneza, vindos de portos onde havia casos da doença, eram obrigados a ficar ancorados quarenta dias na ilha de San Lazzaro. Daí a origem da palavra quarentena.

Ilha de San Lazzaro – Tela de Guardi Giacomo.

Quase seis séculos e meio depois, no dia 20 de março de 2020, me despedi dos colegas de trabalho. O plano inicial seria retornar a Campo Grande na noite do dia 29 de março. Um dos colegas perguntou para mim quando eu estaria de volta na fábrica. Eu respondi, para sua surpresa, que, em algum dia, eu voltaria. Expliquei que meu voo era para São Paulo, naquele momento o epicentro da epidemia de Covid-19 no Brasil, e que as fronteiras do estado poderiam ser fechadas em breve e os voos cancelados.

Na semana seguinte, a empresa colocou-me em home office até nova orientação, situação que ainda permaneço quatrocentos dias depois daquele 20 de março.

Passei por várias fases, durante este período. Posso começar pelo período anterior à minha quarentena. Confesso que as primeiras notícias não me sensibilizaram. Parecia uma doença exótica que sumiria da mesma forma que apareceu. Espantei-me ao cruzar com as primeiras pessoas, usando máscaras no Aeroporto de Guarulhos. Achei um exagero. Quase fiquei bêbado com a quantidade de álcool gel que a passageira sentada numa poltrona próxima usou durante minha última viagem de São Paulo para Campo Grande. Talvez se eu fosse submetido ao teste do bafômetro naquela noite, seria barrado.

Minha percepção começou a mudar com as notícias vindas, inicialmente, da Itália e depois de New York no Estados Unidos. A doença parecia muito mais grave do que a H1N1, por exemplo.

Na primeira semana em casa, recebi um amargo presente de aniversário, o primeiro discurso de Jair Bolsonaro sobre a doença e as medidas restritivas que governadores e prefeitos adotavam com base na experiência de outros países e aconselhamento científico. A Covid-19 era uma doença nova, muito contagiosa, sem tratamento conhecido e sem vacinas para preveni-la. Mesmo assim, Bolsonaro chamou a doença de gripezinha, além de criar um falso dilema entre a doença e a economia. Voltarei a este ponto mais adiante.

Como engenheiro de processo, sempre gostei de ver o que acontece no chão de fábrica e conversar, olhos nos olhos, com quem realmente põe a mão na massa. Este tempo de contatos virtuais, com Skype, Teams, Google Meeting e Zoom, não é o ideal para meu estilo. Reconheço que ganhamos agilidade, mas, depois de algum tempo, estava completamente esgotado. Pedi uma semana de folga que me ajudou a “desintoxicar”. Desde então, tenho conseguido levar adiante as coisas, existem semanas mais leves, outras mais pesadas. “Cê la vie”…

Por outro lado, como eu estava, há dois anos, passando somente os finais de semana em casa, gostei de ficar mais tempo com as filhas e a Claudia. No início, eu sentia até uma pequena culpa por estar em uma situação privilegiada. Depois, me dei conta que era uma besteira minha. Este convívio me ajudou a resistir durante todo este período. Chegamos a festejar o São João, fazendo uma fogueira no nosso quintal.

No final do ano, eu e a Claudia conversamos muito sobre onde passaríamos o Natal e a entrada de 2021. Nossas mães moram no Rio Grande do Sul e estavam com outras doenças. Decidimos redobrar os cuidados e viajar de automóvel até Porto Alegre. Fiquei três semanas no apartamento da mãe. Convivi diariamente com ela, minha tia-dinda, meu filho Leonardo e meus irmãos. Foi ótimo! Só saia do apartamento para correr, usando máscara. Também voltarei ao tema das corridas mais adiante.

Houve um momento no qual os números de casos e mortes declinavam no início de 2021. Planejei minha volta a Campo Grande, mas, neste exato momento, a segunda onda veio de forma avassaladora. Desisti do retorno e, hoje, fecha quatrocentos dias de home office.

Tive altos e baixos neste período, mas os balanços profissional e pessoal foram positivos. Apesar de ter trabalhado apenas dois meses de modo presencial, sinto que as conexões com meus novos colegas só se fortaleceram nos treze meses seguintes.

Continuei minha rotina de corridas. Normalmente treino três vezes por semana. Devo ter percorrido uns 1.700 quilômetros nestes treinos. Pela primeira vez, corri 10 quilômetros em menos de uma hora. Fiz algumas meia-maratonas. E, no último trimestre de 2020, comecei a aumentar a duração dos treinos e percorri 26 quilômetros em 3 horas. Isto me ajudou a manter o peso e melhorar a disposição para o trabalho.

Meu treino mais longo

Como curiosidade, não corto o cabelo desde março do ano passado. Além disso, estou cultivando um cavanhaque estilo Mestre Miyagi. Talvez eu esteja com uma aparência de Visconde de Sabugosa, menos ruivo e mais grisalho.

Visconde de Sabugosa

Passei por várias fases nesta pandemia. No início de 2020, eu estava na fase de negação. Achava que realmente não iria dar em nada. Depois fui tomando consciência do tamanho do problema e do risco. Depois do discurso da “gripezinha” do Bolsonaro, tive momentos que oscilaram entre a raiva e a incredulidade em relação às pessoas que confiavam cegamente nas diretrizes insanas de Bolsonaro para combater a doença.

Posso dizer que meu único medo de contrair a doença, seria morrer e deixar minha família em dificuldades. Procurei semear otimismo, busquei força nos estoicos, estudei as “Meditações” de Marco Aurélio. Lembrei daquela frase do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard:

A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para frente.

Assim meu navio continua ancorado em casa, junto com minha família, por um tempo equivalente a dez quarentenas exigidas pelos venezianos durante a epidemia da Peste Negra. Tenho convivido dia e noite com minha família, trabalhado muito, lido livros e artigos, ouvido músicas novas ou conhecidas, assistido a filmes e séries, publicado alguns artigos, corrido pelo condomínio… Espero minha hora para ser vacinado. E me mantive ativo e esperançoso que, depois de passar por tudo isso, encontraremos caminhos melhores a serem trilhados.

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Fernandão, Vida, Morte e Piscadas

O sábado iniciou com uma notícia impactante para os colorados – Fernando Lúcio da Costa, o Fernandão morreu devido a um acidente de helicóptero. Fiquei com uma sensação estranha, senti algo parecido quando Ayrton Senna morreu. Os ídolos têm uma espécie de onipresença em nossas vidas que muitas vezes não nos damos conta que o conhecemos profundamente apenas no âmbito profissional. Não os conhecemos realmente…

Fernandão chegou ao Inter em 2004 e, logo na estreia, marcou o milésimo gol da história dos Gre-Nais. Quando deixou o clube em 2008, havia conquistado vários títulos com destaque para a Copa Libertadores e o Mundial, ambos em 2006. Foi capitão do time, um líder dentro e fora de campo. Ele era um jogador de futebol muito acima da média – educado e bem articulado. Sempre atendia todos os fãs de forma atenciosa e simpática. Nunca vi frases deselegantes contra adversários ou jornalistas. Tudo isto explica a verdadeira comoção dos gaúchos com a sua morte.

Fernandão com meu filho Leonardo

Fernandão com meu filho Leonardo

Uma questão importante é a idade do ex-jogador colorado, 36 anos. Ou seja, ele era um jovem saudável, bem sucedido e, após a aposentadoria como jogador de futebol, tinha mais liberdade para aproveitar a vida com sua família. Além disto, estava iniciando uma nova carreira como comentarista esportivo do canal SporTV. Numa circunstância deste tipo, costumamos questionar:

– Como alguém pode morrer assim com todo um futuro pela frente?

Como diria a grande filósofa contemporânea Julinha, minha filha de 6 anos, “todos têm seu tempo neste mundo, o dele era este”. Felizmente ou infelizmente, dependendo do ponto de vista, não sabemos qual é a nossa hora.

Eu, sinceramente, acho ótimo não saber qual é a minha hora. Sinto que devemos equilibrar entre viver o hoje como se fosse o último dia e como se tivesse mais 50 anos pela frente. Equilíbrio difícil entre desfrutar e plantar… Esta é a beleza de nascer, viver e morrer…

Sobre a vida e o que acontece depois da morte, eu poderia pensar em alguma coisa, mas não chegaria aos pés desta verdadeira preciosidade escrita por Monteiro Lobato nesta passagem de “Memórias de Emília” de 1936.

– A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.

[…] A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos, por fim pisca pela última vez e morre.

– E depois que morre? – perguntou o Visconde.

– Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?

Visconde de Sabugosa e Emília

Visconde de Sabugosa e Emília

Eu e Visconde de Sabugosa só podemos dizer que isto faz muito sentido, Emília! Aproveite cada dia da vida, carpe diem, não deixe o essencial para amanhã, mas nunca se esqueça de semear para ter algo maravilhoso para colher amanhã, na próxima semana, daqui um ano ou cinquenta anos…

Fernandão, infelizmente, piscou pela última vez no sábado passado, mas, entre uma piscada e outra, fez a felicidade de milhões de pessoas…

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