O Individual e o Coletivo

Desde o início dos protestos pelo Brasil, tenho pensado muito nas principais reivindicações dos manifestantes. Acredito que a educação de qualidade seja o processo que realmente tem o poder de mudar o Brasil. A própria saúde pública também é função da educação do povo. Afinal sempre será melhor ensinar e promover a adoção de atitudes saudáveis do que tratar as doenças decorrentes de práticas de higiene e alimentação deficientes.

No ano passado, assisti a uma palestra da pesquisadora da Universidade Federal do Tocantins, Fernanda Dias Abadio Finco, contemplada com o Prêmio da Fundação Bunge 2012 na categoria “Juventude”, no tema Segurança Alimentar e Nutricional. Ela apresentou um dado que me chamou a atenção na época. O percentual de pessoas com peso abaixo do normal em comunidades carentes do estado do Tocantins era pequeno, enquanto que a parcela de pessoas com sobrepeso e obesidade era muito maior e crescia rapidamente. Por outro lado, muitas pessoas tinham deficiências de nutrientes. Ou seja, o principal problema não era a quantidade de calorias ingeridas e sim a variedade e qualidade dos alimentos. A proposta da pesquisadora era aproveitar a rica biodiversidade disponível no Brasil, através do uso de vegetais com propriedades funcionais. O conhecimento dessas propriedades seria obtido por meio de pesquisa científica. Como resultado, teríamos a melhoria da nutrição e saúde das comunidades locais, a agregação de valor em produtos tradicionais da região, colaborando para geração de renda da agricultura familiar, preservação das florestas nativas e, consequentemente, promovendo uma relação ganha-ganha.

Assim trocaríamos o paradigma do tratamento de doenças pela promoção da saúde, através da orientação próxima de profissionais da saúde sobre boas práticas de higiene e nutrição. Tenho certeza que se evitariam muitas doenças ou a recuperação seria mais simples e rápida.

Mais-Medicos

Os governos brasileiros, incluindo o atual e os anteriores independentemente dos partidos, não fizeram muito pela educação e saúde pública nas décadas passadas. O governo atual, pressionado pelas ruas, lançou o programa “Mais Médicos” com o objetivo de levar médicos para as periferias das grandes cidades e para as pequenas cidades do interior do Brasil. O problema principal recai na queda de braço entre o governo federal e as associações que representam a classe médica. O governo alega que não existem médicos brasileiros interessados em trabalhar nos confins do Brasil, longe do conforto dos grandes centros, sem as melhores condições de trabalho. A solução para este problema seria a contratação de médicos no exterior, principalmente, cubanos, portugueses e espanhóis. Os médicos brasileiros, por sua vez, exigem a revalidação dos diplomas dos médicos estrangeiros e afirmam também que não faltam médicos, mas sim condições para exercer suas atividades. Ou seja, o problema principal é referente à administração do SUS (Sistema Único de Saúde).

Parece que os dois lados têm alguma razão nesta discussão. Por tudo que eu vi e li até agora, na maioria das cidades brasileiras, a situação dos hospitais e postos de saúde realmente é ruim, mas faltam médicos especialmente nas regiões Norte e Nordeste do país. Veja o quadro abaixo.

Distribuiçao geográfica dos médicos no Brasil (Fonte: Blog do Dr. Dráuzio Varella)

Distribuiçao geográfica dos médicos no Brasil   (Fonte: Blog do Dr. Dráuzio Varella)

Outra medida proposta pelo governo é um estágio remunerado de dois anos no SUS para os estudantes de medicina a ser realizado no final do curso. Obviamente os médicos são contra!

Em minha opinião, todos os profissionais egressos de universidades públicas, independente da profissão, deveriam realizar atividades deste tipo ao encerrar o curso. Afinal, todo o curso foi custeado através de verbas públicas obtidas através de impostos pagos por toda a sociedade brasileira, incluindo pessoas pobres. Desta forma, nada mais justo do que retribuir à sociedade com um estágio remunerado em áreas críticas do país, como educação, saúde, saneamento básico e infraestrutura.

Minha impressão é que os médicos estão cuidando muito mais dos seus interesses pessoais do que das necessidades dos cidadãos que vivem nas zonas mais pobres e remotas do país. A maioria dos médicos em atividade ou dos estudantes de medicina estudou nas melhores escolas particulares de ensino médio, senão não teriam passado nos vestibulares mais concorridos do país. Desta forma, são oriundos predominantemente das classes A e B, estão acostumados com uma série de confortos e não querem abrir mão deles, mesmo recebendo bons salários para trabalhar no interior do Brasil.

O primeiro grande teórico do Liberalismo Econômico, Adam Smith, em seu livro a “Riqueza das Nações”, criou o termo “mão invisível” para descrever como numa economia de mercado, apesar da inexistência de uma entidade coordenadora do interesse comum, a interação dos indivíduos parece resultar numa determinada ordem, como se houvesse uma “mão invisível” que os orientasse. Dois séculos depois, o americano Eric Maskin, um dos três vencedores do Prêmio Nobel de Economia de 2007, afirmou que “o mercado não funciona muito bem quando se trata de bens públicos” e completou:

– Sociedades não devem contar com as forças do mercado para proteger o ambiente ou fornecer um sistema de saúde de qualidade para todos os cidadãos.

Adam Smith x Eric Maskin

Adam Smith x Eric Maskin

Ou seja, o Estado deve interferir para garantir que a população tenha à disposição serviços públicos de boa qualidade, seja fornecendo-os diretamente ou através de fiscalização permanente sobre a empresa privada que o executa. No momento, a importação de médicos pode ser uma boa medida emergencial, se até o final de julho não houver candidatos brasileiros em número suficiente para cobrir a demanda. No futuro, o problema só será resolvido se houver novas escolas de medicina localizadas no interior do Brasil, suportadas por postos saúde e hospitais públicos com boas condições de trabalho para os profissionais da saúde e por escolas de ensino fundamental e médio de boa qualidade. Estas escolas serão as responsáveis por levar o desenvolvimento humano para estas regiões do país.

Parece que comecei e terminei falando de educação…

5 Comentários

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5 Respostas para “O Individual e o Coletivo

  1. Pingback: Post 200 – Retrospectiva | World Observer by Claudia & Vicente

  2. Delvone Teixeira Poitevin

    Vicente, mais uma vez demonstras que temos muitas afinidades de pensamento. Sempre defendi que profissionais egressos de Universidades Públicas prestassem algum tipo de Serviço Civil obrigatório (não cumulativo ao Militar) e que pudessem contribuir para melhorias dos indicadores sociais entre outros.
    Nunca simpatizei com a idéia de trazer-se médicos estrangeiros sem avaliação de seu conhecimento. Acho que tem que passar pelo Revalida sim … mas nesse caso quem elabora as provas ? O conselho Federal de Medicina ? O ministério da Educação ? O ministério da Saúde ? Quem quer que o faça terá sempre uma sombra de desconfiança. O ideal seria que os médicos estrangeiros e brasileiros fossem avaliados pela mesma prova, algo como o Exame da OAB. Mas dificilmente, o corporativismo das associações médicas permitiria algo do tipo. Por falar em corporativismo, recentemente, frente a uma crítica de um amigo Médico nas redes sociais, me posicionei a favor do plano de serviço obrigatório no SUS … inclusive afirmando que este sempre foi meu pensamento em relação a qualquer egresso de qualquer curso de escola pública … Para minha surpresa, a mãe deste médico (mães devem sempre ser respeitadas pois estão sempre prontas para defender seus filhos, exatamente como o fazem as Associações de Classe …) entendeu um pouco errado o que eu havia escrito e defendeu que seu filho tinha entrado, estudado e se formado em uma Universidade Pública porque se esforçou e passou noites em claro estudando e que não seria justo com seu eaforço, e que também estaria em desacordo com o Artigo V da Constituição Federal … e blablabla. Argumentei, que se fosse para seguir o Artigo V, a entrada na Universidade deveria ocorrer por sorteio, o que desbancaria certamente a necessidade da política de Cotas, tornando tudo muito mais justo … E provavelmente mais caótico ! O que não dá pra aceitar é que formemos, como bem destacou o Médico e ex-ministro da Saúde Adib Jatene, candidatos a especialistas … Que saem da graduação pra estudar para a prova de residência … Cada vez mais concorrida … A qual para obter aprovação e classificação muitas vezes se faz necessário cursos preparatórios, que não existem em cidades pequenas … Pra complicar, Médicos em geral se formam entre os 23 e os 26 anos … Jovens demais, ainda sem família constituída … Vão querer trabalhar em Nova Mutum ? Seguido eu vejo cidades pequenas do norte do país buscando profissionais médicos aqui no Sul, oferecendo salários entre R$ 20.000 e R$ 30.000 e não os encontrando … Pois esses anúncios se repetem por semanas … Sem contar hospitais e postos de saúde construídos e que nunca entraram em operação em razão da incompetência de nossos gestores públicos e da falta de médicos nos pequenos centros urbanos. Apoio sim o Mais Médicos ! O que não quer dizer que concorde com tudo de olhos fechados … Acho sim que a classe médica tem na mão uma ótima oportunidade pra brigar por melhores remunerações no SUS, mais vagas de residência e melhores bolsas … Talvez assim se considerem menos explorados e permita que alguns também deixem de explorar o povo cobrando R$ 300,00 a R$ 500,00 por uma consulta particular de 20 a 30 min.
    Qualquer outra ação por parte deles tratar-se-á, na minha opinião, apenas de preocupar-se com seu próprio umbigo.

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    • Delvone,

      Agradeço teu comentário! Realmente nossas percepções fecham em relação a este assunto. E outros também…

      As associações médicas entraram na Justiça contra o Programa Mais Médicos para “preservar a saúde dos brasileiros”. Ou seja, é melhor para a saúde dos brasileiros não ter médico do que ter um médico estrangeiro. Outro dia o José Simão fez uma “piada” muito séria, ele perguntou qual a nacionalidade de médico ele preferia se ficasse doente no meio da Floresta Amazônica. A resposta foi um médico humano. Mas a miopia da classe médica está levando à perda da oportunidade de lutar por melhores condições ao invés de preservar seu mercado.

      Todas as profissões deveriam fazer uma prova, nos moldes da OAB, após a conclusão do curso para receber o registro profissional, mas os corporativismos não permitem.

      A verdade é que o povo das regiões mais remotas e das periferias das grandes cidades têm urgência e não podem ficar à espera que as associações dos médicos, os governantes e a Justiça cheguem a um acordo…

      Grande abraço…

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  3. Sob meu ponto de vista a questão chave é o que tu chamou de “emergencial” e que eu costumo chamar de “curto prazo”. Neste sentido, faço uma analogia com o sistema de cotas nas universidades, que entendo ser também uma questão de curto e médio prazo visando iniciar uma solução sistêmica: encontra-se o problema (neste caso que tava pedindo pra ser encontrado há décadas), compreende-se o problema, estuda-se soluções, implementa-se soluções emergenciais e, concomitantemente, aprofunda-se os estudos de soluções. Isso seria condizente com o curto prazo. A partir daí, no médio prazo, conclui-se os estudos de solução e propõe-se a solução final. No longo prazo, vê-se a execução da solução.

    Me parece que falta aos médicos brasileiros um pouco desta visão, e até nem acho que estamos falando de um problema acadêmico, mas cultural. A visão brasileira é muito imediatista e não compreende planejamento como a cultura japonesa, pra se fazer uma comparação drástica. Neste sentido, quando se propõe uma solução emergencial, o brasileiro a renega, pois entende que o problema é mais profundo e deve ser consertado imediatamente, mas não compreende que a profundidade do mesmo o faz necessitar de planejamento mais intenso.

    Acho que daí resulta um outro lado da xenofobia corporativista dos médicos brasileiros neste momento, que se complementa com a tua visão da manutenção da zona de conforto. Quem sabe chamando o Fernandão?

    Abraço!

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    • Nilson,

      Com exceção da sugestão de chamar o Fernandão, tua análise é perfeita… rsrsrs

      O que não pode acontecer é a discussão interminável sobre a solução do problema da saúde à espera de uma solução definitiva. Vi há pouco num noticiário os médicos pedindo melhores condições para o exercício da medicina. Acho certo, mas não se pode ficar simplesmente esperando que nossos hospitais estejam com padrão de primeiro mundo, enquanto os brasileiros ficam sem assistência médica na periferia das grandes cidades e no interior do Brasil.

      Abraço,

      Vicente

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