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Autenticidade e Coragem em A Alma Imoral – Zusya, Mar Vermelho e Viktor Frankl

No último sábado, eu e a Claudia fomos assistir à peça A Alma Imoral, com Clarice Niskier, baseada no livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Saí do teatro com aquela mistura boa de silêncio reflexivo e vontade de conversar — sinais de que algo tocou no lugar certo.

Clarice Niskier em “A Alma_Imoral”

A montagem é um monólogo poderoso. Clarice fala de corpo e alma, tradição e transgressão, obediência e autenticidade, fidelidade e traição. Não é apologia à rebeldia inconsequente, é um convite à honestidade: o que ainda fazemos por dever, quando a alma já não está mais ali?

Alguns temas ficaram comigo:

  • Tradição e transgressão. A peça propõe que a tradição só continua viva quando aceita ser “traída” — não no sentido de negar o passado, mas de renovar o sentido.
  • Corpo e alma. O corpo preserva, organiza, dá forma. A alma inquieta, pergunta, desafia, atravessa. Um sem o outro é desequilíbrio.
  • Dúvida e certeza. O texto valoriza a dúvida como motor ético. Não é hesitação improdutiva; é espaço de consciência.
  • Fidelidade e traição. Não apenas ao pacto externo, mas à verdade interna. Às vezes, manter o pacto exige transformá-lo.

Destaco dois trechos que conversam entre si. Me atingiram com mais força por questões atuais da minha vida.

O rabino Zusya: ser quem se é

Há um momento em que surge a história do rabino Zusya (muitas vezes grafado “Zusha” ou “Sucia”).

“Por que estás tão irrequieto? – perguntou o discípulo ao rabino Zusya, ao vê-lo em seus momentos finais de vida.

— Tenho medo – respondeu Zusya.

— Medo de que, rabino?

— Medo do Tribunal Celeste.

— Tu? Um homem tão piedoso, cuja vida foi exemplar? Se tu tens medo, imagine nós, cheios de defeitos e imperfeições.

Rabino Zusya então diz:

— Não temo ser inquirido por não ter sido como o profeta Moisés, não deixei um legado de seu porte. Eu posso me defender, dizendo que não fui como Moisés, porque eu não sou Moisés. Nem temo que me cobrem ensinamentos como os de Maimônides, por eu não ter oferecido ao mundo a qualidade de sua obra e seu talento. Eu posso me defender, dizendo que eu não fui como Maimônides, porque eu não sou Maimônides. O que me apavora, neste momento, é que me venham indagar: Zusya, por que não foste Zusya?

“Um Velho Judeu” de Rembrandt

A questão é devastadora. A questão não é “por que não fomos grandes”, e sim por que não fomos nós. Por que deixamos a vida escorrer por papéis, expectativas e personagens que não nos servem mais?

Essa ideia conversa diretamente com Viktor Frankl. Para ele, o ser humano não busca primeiro prazer ou poder, mas sentido. E sentido é pessoal, original e intransferível — ninguém pode viver o nosso por nós. Como disse Nietzsche:

“Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.”

Zusya está dizendo o mesmo, de outra forma: o fracasso verdadeiro é falhar em ser quem somos. Ele teme ter sido “correto” sem ter sido autêntico. E Frankl nos lembra que a vida nos pergunta o tempo todo — e espera respostas em forma de escolhas e ações.

Viktor Emil Frankl

O Mar Vermelho: o passo que abre as águas

Outro trecho que me pegou foi a releitura da travessia do Mar Vermelho. Não como milagre pronto, mas como metáfora de coragem. O trecho fala de um hebreu que entrou no mar antes de ele se abrir. Só quando a água chegou à altura do seu peito, as águas se dividiram.

A cena desloca o foco: não é “o mar que se abre para eu passar”; sou eu que passo — e o mar responde. A alma transgride o medo, e o caminho aparece depois do passo.

Com Frankl, isso vira linguagem de responsabilidade: não temos garantias, temos liberdade para responder. Em cada situação, há uma tarefa que traz o sentido. Às vezes, é continuar. Em outras, é atravessar. Em quase todas, é assumir o risco do primeiro passo.

No trecho sobre o Mar Vermelho, o sentido se revela no movimento. Para Frankl, responder ao chamado único da situação é o centro da liberdade humana.

Entre Zusya e o Mar Vermelho: escolhas que nos fazem

Juntos, Zusya e o Mar Vermelho compõem um mapa simples:

  1. Quem sou eu, de fato? (autenticidade)
  2. O que a situação me pede agora? (responsabilidade)
  3. Qual passo é meu, mesmo sem garantias? (coragem)

A peça não entrega respostas prontas — “graças a Deus”. Ela faz outra coisa: abre espaço para as perguntas que nos interessam.

Uma reflexão pessoal: sobre mudar e enfrentar o desconhecido

Saí do teatro pensando nas minhas próprias travessias. Em quantas vezes adiei um passo esperando o mar abrir? Em quantas vezes fui “correto” quando precisava ser verdadeiro? Em quantas decisões, no trabalho e na vida a dois, a alma já sussurrava: “é por ali” — e eu pedia mais uma confirmação.

Não tenho grandes heróis internos (como Moisés ou Maimônides) à disposição, mas tenho um Zusya possível e alguns hebreus que adentraram o Mar Vermelho antes de se abrir: aqueles passos pequenos, quase invisíveis, que mudam a direção de uma história.

Se eu pudesse resumir o aprendizado da noite em uma linha, diria assim:

Coragem não é ausência de medo; é fidelidade serena ao que a alma já sabe.

O resto, a gente descobre andando — e o mar costuma colaborar com quem se compromete com o passo.

No sábado, a peça terminou; o assunto, não. E talvez seja esse o melhor efeito da arte: deixar a porta entreaberta para o próximo movimento — o nosso.

Se você já viu A Alma Imoral, me conte o que ficou com você. Se ainda não viu, recomendo. Dê tempo para a alma — e, na saída, deixe o corpo dar seu próximo passo.

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Como a Falta ou o Excesso de Propósito Podem Ser Devastadores

Eu tenho visto cada vez mais especialistas e gurus, falando sobre a importância de se ter um propósito na vida. Esta orientação não é válida apenas para as pessoas físicas (PF), como também para as empresas (PJ). O propósito é um objetivo maior, de longo prazo, não é somente ganhar dinheiro, adquirir um bem ou fazer uma viagem. Estes exemplos podem ser metas de curto e médio prazos que apoiam um objetivo maior de longo prazo.

Há alguns anos, escrevi um artigo sobre o psiquiatra austríaco Viktor Frankl. Ele percebeu que as pessoas que resistiam aos horrores dos campos de concentração nazistas eram as que tinham um sentido maior para suas vidas, um propósito. Estes propósitos estavam além das suas próprias existências, impactavam positivamente pessoas próximas, grupos maiores ou, até mesmo, toda a humanidade.

Viktor Emil Frankl

Pessoas com propósitos desejam deixar legados positivos no mundo. Se existe algo maior além do horizonte, fica mais fácil suportar os períodos mais difíceis e superá-los, extraindo aprendizados.

Quando falta propósito, um objetivo significativo na vida, todos os dias são tediosamente ou desesperadamente iguais. Onde deveria estar o propósito há apenas um vazio que traz apatia e indiferença pelo que acontece ao redor. Deste estado depressivo, podem surgir alternativas para preencher o vazio da vida, como distrações, drogas ou seguir cegamente líderes, religiões e ideologias políticas.

As pessoas com propósitos podem trabalhar em empresas que não tenham os mesmos objetivos. Deste desalinhamento, pode nascer uma frustração crescente que leva a desmotivação do funcionário. Nestes casos, o melhor a fazer é procurar outra ocupação.

Mas pode haver também excesso de propósito? Minha resposta é sim. E as consequências podem ser muito graves. Nestes casos, o objetivo é tão rígido que impede que o entorno seja percebido. Pessoas com esta mentalidade pensam e conversam, quase que exclusivamente, sobre seu objetivo maior. Perdem o repertório, tornam-se os chatos nas rodas de conversa. Suas vidas passam a se resumir a esta busca incessante. Família, amizades e lazer são relegados a um plano muito inferior de importância. Qualquer atividade que as afaste, mesmo que momentaneamente, do seu propósito causam ansiedade e culpa. No final, estas pessoas ficam tão obcecadas que podem destruir seus relacionamentos e acabarem isoladas e doentes.

Pequenas empresas e startups, onde os donos são a empresa, podem sofrer também deste mal. Muitas oportunidades não são perseguidas, porque seus líderes estão cegos e inflexíveis pelo propósito inicial. No final, a empresa quebra e boas ideias são desperdiçadas.

Como tudo na vida, o equilíbrio é essencial. Devemos estar atentos e periodicamente analisarmos se nosso propósito de vida ainda faz sentido. Por outro lado, não podemos agir como “birutas” que mudam de direção conforme os ventos.

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