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Política Monetária, Déficit e Desigualdade: por que 1 ponto da Selic pesa mais que muitos cortes no orçamento

Introdução

No debate público brasileiro, política fiscal e política monetária costumam ser tratadas como assuntos separados. Quando o governo anuncia cortes em saúde, educação ou programas sociais, o país inteiro discute, com razão, as consequências. Já as decisões do Banco Central sobre a taxa Selic, que movimentam centenas de bilhões de reais por ano, são vistas como algo técnico, neutro, quase natural. Mas não são!

Em 2024, o Brasil fechou o ano com um déficit primário em torno de R$ 48 bilhões e isso dominou as manchetes. Contudo, um ponto percentual da Selic custa aproximadamente R$ 40 bilhões por ano só em juros da dívida pública. Ou seja, 1 ponto de Selic custa quase o mesmo que o déficit primário anual inteiro.

E, ainda assim, enquanto cada real gasto com políticas sociais é escrutinado, avaliado e frequentemente cortado, os gastos com juros da dívida, que beneficiam investidores detentores de títulos públicos, seguem automáticos, protegidos e intocáveis.

Este artigo tenta trazer luz a essa assimetria, explicando:

  • quanto custa a Selic;
  • como é composta a dívida e por que a Selic amplifica esse custo;
  • o paradoxo de subir juros num momento em que a economia precisa investir;
  • o papel do “mercado” na formação das expectativas que o BC usa para decidir a Selic;
  • e como tudo isso reflete um desenho institucional que reforça desigualdades.

Quanto custa 1 ponto percentual da Selic

O cálculo é simples:

  • o Brasil tem entre R$ 8 e 9 trilhões de dívida pública interna;
  • quase metade dessa dívida é pós-fixada, isto é, rende Selic;
  • portanto, cerca de R$ 4 trilhões variam diretamente com a taxa básica.

Logo: 1 p.p. de Selic ≈ 1% de R$ 4 trilhões ≈ R$ 40 bilhões por ano.

Com essa ordem de grandeza em mente, dá para comparar:

RubricaOrçamento 2024  1 p.p. da Selic equivale a
SaúdeR$ 218 bi  18% da Saúde
EducaçãoR$ 112 bi  36% da Educação
PAC 2024R$ 54 bi  74% do PAC
Investimentos totaisR$ 210 bi  19% dos investimentos

Ou seja:

  • um único ponto da Selic consome quase três quartos do PAC,
  • mais de um terço da Educação,
  • e quase um quinto de toda a Saúde.

Não existe debate público proporcional a isso.

A composição da dívida e a hipersensibilidade à Selic

O Brasil possui um perfil incomum de dívida:

  • 49% pós-fixada (Selic)
  • 27% indexada ao IPCA
  • 20% prefixada
  • 4% em câmbio/outros

Essa composição faz com que qualquer aumento na Selic se transforme em gasto imediato, e gigantesco, para o Tesouro.

Países desenvolvidos têm o oposto, muito mais dívida prefixada, com prazos longos, blindando o governo contra volatilidade de juros. Por outro lado, nós ficamos expostos.

O hiato do produto e a lógica da Selic

O Banco Central usa, entre outros indicadores, o hiato do produto (output gap):

  • quando a economia está abaixo do seu potencial, a inflação tende a cair, então o Banco Central pode cortar juros;
  • quando está no limite da capacidade, inflação tende a subir, então o Banco Central aumenta juros.

Em tese, isso faz sentido. Mas, na prática, isso nos leva a um paradoxo profundo.

O paradoxo da capacidade máxima: quando investir fica mais necessário e mais caro

Quando a economia está “no limite da capacidade”, isso significa que:

  • as fábricas estão cheias;
  • as empresas precisam investir;
  • a economia precisa expandir capacidade produtiva.

O que a política monetária faz? Sobe a Selic para esfriar a demanda. Isso acontece, porque a política monetária trabalha sobre a demanda, não sobre a oferta.

  • A Selic mais alta reduz consumo, crédito e investimento.
  • Mas a inflação em momentos de capacidade cheia não vem só da demanda, vem também da falta de capacidade produtiva, da baixa produtividade e de gargalos estruturais.

Então o BC sobe a Selic sobe como se todos os problemas fossem de “demanda aquecida”, quando muitas vezes o problema é capacidade insuficiente.

O efeito prático é:

  • crédito mais caro;
  • expansão produtiva adiada;
  • menor produtividade futura.

Ou seja, justo quando o país mostra que precisa investir para crescer, a Selic sobe e torna o investimento mais difícil.

Nos EUA e na Europa, quando a economia aquece, o crédito barato sustenta o aumento de capacidade. No Brasil, a economia aquece e recebe um freio.

É um mecanismo que nos condena a ciclos curtos de crescimento – os famosos “voos de galinha”.

Expectativas, mercado e o círculo de retroalimentação

Outra peça crucial é como o Banco Central decide a Selic.

Entre os principais elementos que alimentam a decisão do Banco Central sobre a Selic estão:

  • o Boletim Focus;
  • as curvas de juros;
  • as projeções publicadas por grandes instituições financeiras.

Quem produz essas expectativas?

  • bancos;
  • gestoras;
  • fundos;
  • mesas de operação.


Todos os atores diretamente interessados em juros mais altos. Por isso, cria-se um loop de retroalimentação:

  1. O mercado projeta inflação alta.
  2. O BC interpreta isso como necessidade de juros altos.
  3. Juros altos aumentam rendimentos financeiros.
  4. Projeções permanecem elevadas.

Não é teoria conspiratória – é estrutural.

Nos EUA e na Europa, a estrutura é mais ampla: sindicatos, indústria, consultorias e universidades também influenciam expectativas. No Brasil, o sistema é muito mais concentrado.

A assimetria injusta: cortes para muitos, proteção para poucos

Aqui chegamos ao ponto mais sensível do debate.

Quando o governo precisa “ajustar as contas”, os cortes costumam cair em:

  • Saúde;
  • Educação;
  • Investimentos do poder executivo;
  • programas sociais.

Enquanto isso, o gasto com juros, muito maior do que qualquer uma dessas áreas, quase 1 trilhão de reais, é tratado como inevitável, automático e politicamente intocável.

O resultado é moralmente assimétrico:

  • quem depende do Estado paga o ajuste;
  • quem vive de renda financeira recebe o ajuste, via maior remuneração.

Não se trata de demonizar investidores. Eles cumprem função importante no sistema. Mas reconhecer que as duas políticas – fiscal e monetária – produzem efeitos distributivos, mas apenas a fiscal é debatida, votada e contestada. A política monetária opera sem exame proporcional ao seu impacto.

Para onde seguir: caminhos possíveis

Não existe solução simples, mas alguns movimentos poderiam reduzir essa distorção. Parte deles envolve usar plenamente o mandato duplo do Banco Central, definido pela Lei Complementar nº 179/2021, que estabelece dois objetivos formais:

  1. assegurar a estabilidade de preços (controle da inflação), e
  2. zelar pela estabilidade financeira, contribuindo também para o pleno emprego e o crescimento econômico sustentável.

Apesar disso, na prática, o debate público — e muitas vezes a atuação operacional — tende a tratar a inflação como o único parâmetro relevante. A dimensão relativa ao emprego, atividade econômica e bem-estar social, prevista em lei, permanece subutilizada e raramente aparece como guia explícito na política monetária.

Considerar o mandato completo não significa “afrouxar” a política de controle inflacionário, mas sim colocar a política monetária em diálogo com a realidade produtiva e social do país, evitando que decisões de juros ignorem impactos distributivos, fiscais e de crescimento.

Isso passa por algumas mudanças estruturais:

diminuir a parcela pós-fixada da dívida, reduzindo a sensibilidade extrema da despesa com juros a cada movimento da Selic;
alongar os prazos de emissão, diminuindo a volatilidade e o peso dos juros de curtíssimo prazo;
diversificar as fontes de formação de expectativas, de modo que projeções usadas pelo Banco Central incluam não apenas agentes financeiros, mas também empresas, trabalhadores, universidades, centros de pesquisa e organismos independentes;
integrar, de forma mais explícita, a política fiscal e monetária, evitando choques desnecessários entre o esforço de ajuste de um lado e o encarecimento dos juros de outro;
criar instrumentos de crédito produtivo anticíclico, permitindo que o país invista mesmo em momentos de aperto monetário;
reforçar a transparência sobre os impactos distributivos e fiscais das decisões de juros, algo que hoje sequer entra na comunicação oficial.

Nenhuma dessas medidas afeta a autonomia formal do Banco Central. Todas, porém, ajudam a construir um sistema econômico mais coerente, menos volátil e mais alinhado ao interesse público, combinando estabilidade de preços com responsabilidade social e capacidade de investimento.

Conclusão

A Selic não é apenas um número técnico. Ela é:

  • uma decisão com impacto fiscal gigantesco;
  • um mecanismo com efeitos redistributivos profundos;
  • e um dos fatores que mais moldam o crescimento – ou a falta dele – no Brasil.

Enquanto o país continuar:

  • cortando gastos sociais para “fazer ajuste”,
  • mantendo juros altos como se fossem neutros,
  • e ignorando o paradoxo de frear a economia no momento exato em que ela precisa investir,

continuaremos presos no mesmo ciclo: pouco crescimento, baixa produtividade, desigualdade elevada e dependência de juros altos.

Rever esse arranjo não significa abandonar responsabilidade fiscal; significa torná-la mais inteligente, mais transparente e mais alinhada ao interesse público.

O Brasil não precisa escolher entre estabilidade e desenvolvimento. Precisa apenas reconhecer que parte do que tratamos como ‘natural’ no desenho atual da política monetária é, na verdade, um fator que limita o crescimento e amplia desigualdades e, portanto, pode e deve ser repensado.

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O Triste Clown e seu All-In

No dia 24 de março, recebi um presente amargo de Jair Bolsonaro, um discurso no qual ele pediu para a vida voltar à normalidade. O racional (se podemos chamar assim no caso do Bolsonaro) é, se a economia do país parar, mais pessoas serão prejudicadas do que as seriam com a COVID-19. A venda desta ideia está claramente baseada na ética utilitarista que busca a maximização do bem-estar.

No poker, chamamos “all-in” quando o jogador aposta todas suas fichas em uma rodada. Bolsonaro, na terça-feira passada, fez um all-in. O problema desta aposta é que ela vai na contramão das recomendações dos cientistas de todo o mundo. Ou seja, a probabilidade de ele estar certo é muito baixa. E pior, mas muito pior mesmo, se ele estiver errado (o que deverá acontecer), a consequência não será apenas sua “eliminação do jogo”, mas a morte de centenas de milhares de pessoas no Brasil.

bolsonaro-ao-lado-do-humorista-carioca-no-palacio-da-alvorada

Bolsonaro com o Comediante Carioca

Em um artigo no Financial Times, Yuval Harari, o autor de Sapiens, deixou claro qual é a melhor opção nesta crise.

“Nos próximos dias, cada um de nós deve optar por confiar em dados científicos e especialistas em saúde, em detrimento de teorias infundadas da conspiração e de políticos egoístas.”

Acredito que a maioria da população brasileira não concorda com a posição de Bolsonaro, mas isso não é suficiente. Bolsonaro, em seu discurso, abriu a “Caixa de Pandora” e todos seus seguidores (25 a 30% dos brasileiros) passaram a pressionar pela volta à normalidade, encampando suas teorias conspiratórias sobre a Imprensa, a Esquerda e seus adversários políticos. Se o isolamento social for encerrado, a consequência deverá ser desastrosa – centenas de milhares de brasileiros mortos.

A minimização das mortes divulgadas em vídeos de Luciano Hang (dono da Havan), Junior Durski (dono do Madero), Alexandre Guerra (filho do dono do Giraffas) e Roberto Justus é um verdadeiro absurdo. Declarações como estas estimulam a histeria das pessoas em relação às perdas de emprego e renda. Nos últimos dias, carreatas aconteceram em cidades brasileiras pedindo que os prefeitos cancelem as restrições de circulação e abertura do comércio.

O Governo deveria redirecionar suas prioridades. Ninguém comenta que R$ 248,6 bilhões estão previstos no orçamento de 2020 para pagamento de dívidas com títulos públicos, conforme figura abaixo que copiei do Plano Anual de Financiamento / 2020 – Secretaria do Tesouro Nacional.

DPF - financiamento 2020

Necessidade de Financiamento 2020 [Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional http://sisweb.tesouro.gov.br/apex/cosis/thot/transparencia/arquivo/31541:1047266:inline:5040891138940]

Para ter ideia da magnitude dos gastos com o serviço da dívida pública federal, os gastos orçados para saúde e educação em 2020 são, respectivamente, R$ 136,5 bilhões e R$ 123,5 bilhões, segundo o Portal Transparência.

Ou seja, baixar a Selic ajuda a reduzir os juros; alongar o prazo de vencimento dos títulos que vencem em 2020 também ajudaria.

Para aqueles que ficaram curiosos para saber quais despesas primárias serão financiadas com novas dívidas, vejam o quadro abaixo.

Despesas-Primarias_2020

Despesas Primárias Cobertas por Emissão de Novos Títulos Públicos em 2020 [Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional]

Outros atores neste cenário complexo são os bancos. A soma dos lucros líquidos dos três principais bancos privados do Brasil (Itaú, Bradesco e Santander) foi R$ 63,35 bilhões em 2019. O Banco do Brasil lucrou R$ 18,16 bilhões; e a Caixa Econômica Federal, R$ 21,1 bilhões neste período.

Obviamente os dois bancos estatais poderiam zerar seus lucros através de créditos com juros baixos e carência para pagamento. E os bancos privados poderiam aceitar uma redução nas suas margens para evitar a quebradeira geral que voltaria para cima deles como um bumerangue.

Programas de renda mínima devem ser efetivados imediatamente para prover condições de sobrevivência aos mais pobres.

Para costurar um grande acordo entre o poder público, iniciativa privada e população, precisaríamos de um estadista, um verdadeiro líder que unisse todas estas forças em prol de bem de todos. Infelizmente Jair Bolsonaro não tem as menores condições de exercer este papel.

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