No último sábado, eu e a Claudia fomos assistir à peça A Alma Imoral, com Clarice Niskier, baseada no livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Saí do teatro com aquela mistura boa de silêncio reflexivo e vontade de conversar — sinais de que algo tocou no lugar certo.
A montagem é um monólogo poderoso. Clarice fala de corpo e alma, tradição e transgressão, obediência e autenticidade, fidelidade e traição. Não é apologia à rebeldia inconsequente, é um convite à honestidade: o que ainda fazemos por dever, quando a alma já não está mais ali?
Alguns temas ficaram comigo:
- Tradição e transgressão. A peça propõe que a tradição só continua viva quando aceita ser “traída” — não no sentido de negar o passado, mas de renovar o sentido.
- Corpo e alma. O corpo preserva, organiza, dá forma. A alma inquieta, pergunta, desafia, atravessa. Um sem o outro é desequilíbrio.
- Dúvida e certeza. O texto valoriza a dúvida como motor ético. Não é hesitação improdutiva; é espaço de consciência.
- Fidelidade e traição. Não apenas ao pacto externo, mas à verdade interna. Às vezes, manter o pacto exige transformá-lo.
Destaco dois trechos que conversam entre si. Me atingiram com mais força por questões atuais da minha vida.
O rabino Zusya: ser quem se é
Há um momento em que surge a história do rabino Zusya (muitas vezes grafado “Zusha” ou “Sucia”).
“Por que estás tão irrequieto? – perguntou o discípulo ao rabino Zusya, ao vê-lo em seus momentos finais de vida.
— Tenho medo – respondeu Zusya.
— Medo de que, rabino?
— Medo do Tribunal Celeste.
— Tu? Um homem tão piedoso, cuja vida foi exemplar? Se tu tens medo, imagine nós, cheios de defeitos e imperfeições.
Rabino Zusya então diz:
— Não temo ser inquirido por não ter sido como o profeta Moisés, não deixei um legado de seu porte. Eu posso me defender, dizendo que não fui como Moisés, porque eu não sou Moisés. Nem temo que me cobrem ensinamentos como os de Maimônides, por eu não ter oferecido ao mundo a qualidade de sua obra e seu talento. Eu posso me defender, dizendo que eu não fui como Maimônides, porque eu não sou Maimônides. O que me apavora, neste momento, é que me venham indagar: Zusya, por que não foste Zusya?”
A questão é devastadora. A questão não é “por que não fomos grandes”, e sim por que não fomos nós. Por que deixamos a vida escorrer por papéis, expectativas e personagens que não nos servem mais?
Essa ideia conversa diretamente com Viktor Frankl. Para ele, o ser humano não busca primeiro prazer ou poder, mas sentido. E sentido é pessoal, original e intransferível — ninguém pode viver o nosso por nós. Como disse Nietzsche:
“Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.”
Zusya está dizendo o mesmo, de outra forma: o fracasso verdadeiro é falhar em ser quem somos. Ele teme ter sido “correto” sem ter sido autêntico. E Frankl nos lembra que a vida nos pergunta o tempo todo — e espera respostas em forma de escolhas e ações.
O Mar Vermelho: o passo que abre as águas
Outro trecho que me pegou foi a releitura da travessia do Mar Vermelho. Não como milagre pronto, mas como metáfora de coragem. O trecho fala de um hebreu que entrou no mar antes de ele se abrir. Só quando a água chegou à altura do seu peito, as águas se dividiram.
A cena desloca o foco: não é “o mar que se abre para eu passar”; sou eu que passo — e o mar responde. A alma transgride o medo, e o caminho aparece depois do passo.
Com Frankl, isso vira linguagem de responsabilidade: não temos garantias, temos liberdade para responder. Em cada situação, há uma tarefa que traz o sentido. Às vezes, é continuar. Em outras, é atravessar. Em quase todas, é assumir o risco do primeiro passo.
No trecho sobre o Mar Vermelho, o sentido se revela no movimento. Para Frankl, responder ao chamado único da situação é o centro da liberdade humana.
Entre Zusya e o Mar Vermelho: escolhas que nos fazem
Juntos, Zusya e o Mar Vermelho compõem um mapa simples:
- Quem sou eu, de fato? (autenticidade)
- O que a situação me pede agora? (responsabilidade)
- Qual passo é meu, mesmo sem garantias? (coragem)
A peça não entrega respostas prontas — “graças a Deus”. Ela faz outra coisa: abre espaço para as perguntas que nos interessam.
Uma reflexão pessoal: sobre mudar e enfrentar o desconhecido
Saí do teatro pensando nas minhas próprias travessias. Em quantas vezes adiei um passo esperando o mar abrir? Em quantas vezes fui “correto” quando precisava ser verdadeiro? Em quantas decisões, no trabalho e na vida a dois, a alma já sussurrava: “é por ali” — e eu pedia mais uma confirmação.
Não tenho grandes heróis internos (como Moisés ou Maimônides) à disposição, mas tenho um Zusya possível e alguns hebreus que adentraram o Mar Vermelho antes de se abrir: aqueles passos pequenos, quase invisíveis, que mudam a direção de uma história.
Se eu pudesse resumir o aprendizado da noite em uma linha, diria assim:
Coragem não é ausência de medo; é fidelidade serena ao que a alma já sabe.
O resto, a gente descobre andando — e o mar costuma colaborar com quem se compromete com o passo.
No sábado, a peça terminou; o assunto, não. E talvez seja esse o melhor efeito da arte: deixar a porta entreaberta para o próximo movimento — o nosso.
Se você já viu A Alma Imoral, me conte o que ficou com você. Se ainda não viu, recomendo. Dê tempo para a alma — e, na saída, deixe o corpo dar seu próximo passo.



