No início da manhã da quinta-feira passada, estava enchendo minha garrafa com água mineral no escritório quando ouvi uma voz:
– Bom dia, chefe!
Virei-me para ver quem havia me cumprimentado. Era o rapaz da limpeza. Na mesma hora, retribuí o sorriso e o cumprimento:
– Bom dia! Tudo bem contigo?
Há alguns meses, quando ele começou a trabalhar na área, percebi que ele não me dirigia o olhar e muito menos a palavra. Esta não era uma característica exclusiva daquele rapaz, todos os ajudantes de limpeza, independente de sexo e idade, agiam da mesma forma. Eu costumo quebrar o gelo, sempre que percebo a aproximação, cumprimento a pessoa, alcanço o cesto de lixo que fica sob a bancada de trabalho e agradeço ao receber o cesto vazio. Depois de alguns dias, eles passam a tomar a iniciativa do cumprimento e dão e retribuem sorrisos.
Pontes foram construídas sobre os desfiladeiros que nos separavam.
Aquele simples cumprimento do rapaz da limpeza ativou uma série de pensamentos e lembranças. Por que em determinadas situações as pessoas agem como se outras não existissem? Por que nos diversos ambientes em que convivemos existem “castas” com barreiras de comunicação entre elas?
A situação lembra a divisão das classes sociais que Aldous Huxley criou no seu livro “Admirável Mundo Novo”, ou uma forma de castas, como os dalits na Índia. Lembrei-me também da história do psicólogo Fernando Braga da Costa que durante alguns anos, pelo menos uma vez por semana, trabalhou como gari no campus da USP em São Paulo. Seu mestrado foi baseado nas suas observações e nos depoimentos destes trabalhadores, que conviviam com ele, sobre as situações de humilhação social pelas quais passavam cotidianamente. Na sequência o psicólogo publicou o livro “Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social”. Deste livro, transcrevo o chamado “episódio do uniforme”:
No intervalo entre aulas no Instituto de Psicologia, foi preciso que eu passasse por dentro do prédio daquela faculdade. Imaginei, então, que vestindo aquele uniforme ali incomum – calça, camisa e boné vermelhos – fosse chamar a atenção de toda a gente: colegas de classe, professores, curiosos.
Entramos pela porta principal, eu e o Antônio (um dos garis). Percorremos o piso térreo, as escadas e o primeiro andar. Não fui reconhecido. E as pessoas pelas quais passávamos não reagiam à nossa presença. Talvez apenas uma ou outra tenha se desviado de nós como nos desviamos de obstáculos, objetos. Nenhuma saudação corriqueira, um olhar, sequer um aceno de cabeça. Foi surpreendente. Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível, Antônio estava invisível. Saindo do prédio, estava inquieto; era perturbadora a anestesia dos outros, a percepção social neutralizada.
Por que não fui visto? Por que passei despercebido? Passei realmente despercebido? Que implicações teve o uso de um uniforme? Os uniformes podem valer como signos da posição social – posição de trabalho, posição hierárquica, posição de classe. Quantos outros signos foram produzidos e, carregados pelos garis, disparam desaparecimento público? Esse desaparecimento, essa invisibilidade, que não parecem físicos, como defini-los? Como são socialmente construídos? Como aparecem para os garis? Que aprender e pensar das interpretações dos próprios trabalhadores acerca deste fenômeno?
Em minha opinião, a lógica é terrível! As pessoas invisíveis só existem para servir as pessoas que se recusam a vê-las. Assim, elas deixam de ser pessoas e passam a ser coisas, máquinas que cumprem funções específicas, só isto. E quem fala com coisas é louco. O psicólogo Fernando complementa que aparecem apenas os uniformes e os lugares varridos e limpos.
Assista ao sensacional, impressionante e chocante curta-metragem de animação “El Empleo” do argentino Santiago “Bou” Grasso.
Se os subalternos são invisíveis para nós, por que nós não seríamos também invisíveis para outras pessoas que se acham superiores?
Olá!
Não é apenas o fato dele ser um servente que não é notado, como se fosse invisível. Muitas pessoas são invisíveis às outras pela indiferença, seja socio-economica, seja por padroes de beleza.
Eu li Aldous Huxley e até hoje seu livro é muito atual.
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Oi Sissym,
Concordo que os padrões de beleza também são outras causas de “invisibilidade”, mas a questão sócio-econômica é preponderante. Um feio bem vestido com certeza será notado. Pior que o caso dos serventes é o dos “invisíveis” sem-teto. Mais aterrador ainda é o caso das crianças dos semáforos que são invisíveis aos corações, mas visíveis como ameaças à segurança dos motoristas…
Realmente parece incrível que um livro sobre o futuro, com “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, escrito há 80 anos ainda seja tão atual. Esta é a magia das obras primas…
Abraço.
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