Este texto é a Parte 2 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Na Parte 1, olhei para o tamanho do mercado de drogas no Brasil e para a distribuição de faturamento entre maconha, cocaína, crack e sintéticos.
Aqui, dou o passo seguinte: uso esses números para simular o que aconteceria com o caixa das facções se a maconha saísse (em parte) do mercado ilegal e fosse para um mercado legal e regulado.
3. O que aprendemos com Canadá, Califórnia e outros “laboratórios” de legalização?
Se o objetivo é tirar dinheiro do crime sem simplesmente trocar um tipo de guerra por outro, faz sentido olhar para quem já mexeu na peça “maconha” do tabuleiro. Canadá, alguns estados dos EUA e outros países funcionam como laboratórios avançados: neles, a maconha passou a ser vendida legalmente, com impostos, regras e, mesmo assim (ou por isso), o mercado ilegal não desapareceu por completo.
Aqui entram dois experimentos importantes:
- Canadá, que legalizou em 2018 e, alguns anos depois, conseguiu que algo em torno de 70–80% do gasto em cannabis fosse para o mercado legal.
- Califórnia, que também legalizou, mas, por uma combinação de impostos altos, burocracia e restrições locais, ainda vê cerca de 60% do consumo passando por canais ilegais.
A Tabela 3 resume três cenários, inspirados nesses casos:
- Um Brasil que imita o “modelo Califórnia ineficiente”, no qual o mercado legal só consegue capturar uns 40% do gasto em maconha, mantendo um mercado ilícito gordo.
- Um “modelo Canadá médio”, em que cerca de 75% do gasto em maconha vai para o legal.
- E um cenário mais ambicioso, em que o país usa imposto mais baixo e ampla oferta para asfixiar o mercado ilegal da maconha, chegando a 85% de captura.
Tabela 3 – Cenários de legalização da maconha (captura de mercado e impostos)
(Todos os valores abaixo são estimativas de IA baseadas em benchmarks de Canadá e Califórnia.)
O interessante é notar que, mesmo com parâmetros conservadores, aparecem bilhões de reais por ano em vendas legais e algo entre 1 e 2 bilhões de reais em impostos.
Na Figura 3 (barras empilhadas legal x ilegal por cenário), vemos como cada desenho tributário e regulatório distribui o bolo entre Estado e crime.
4. Um “Brasil realista”: nem utopia, nem catástrofe
Em vez de imaginar um Brasil que vira Canadá amanhã, tentei traduzir isso para um trajeto mais plausível: como poderia ser a legalização da maconha ao longo de alguns anos aqui.
A Tabela 4 mostra um cenário em três marcos:
- Ano 0 – onde estamos hoje: tudo ilícito, R$ 12,5 bi de mercado de maconha, zero imposto, 100% do P&L na mão do crime.
- Ano 3 – legalização implantada, mas ainda cheia de atritos: redes legais concentradas nas capitais, muita gente ainda comprando nas bocas. Nesse ponto, algo como 45% do mercado já poderia estar no legal.
- Ano 7 – mercado maduro, com lojas e cooperativas espalhadas, imposto moderado e repressão focada no comércio ilegal: aqui é onde o cenário supõe 70% do gasto em maconha no mercado regulado.
Tabela 4 – Cenário “Brasil realista” (legalização da maconha em 3 marcos)
(Toda esta tabela é estimativa de IA, inspirada em dados de Canadá, Illinois-EUA e relatórios da Califórnia-EUA, adaptados ao contexto brasileiro.)
Reforçando, essa tabela é um exercício; não uma previsão. Mas ela ajuda a enxergar ordens de grandeza:
- Em sete anos, o faturamento ilegal com maconha cairia de 12,5 bilhões para 3,7 bilhões (uma redução de aproximadamente 70%).
- O Estado passaria a arrecadar algo como R$ 1,6 bilhão por ano só com impostos específicos sobre a maconha, fora IR, ISS etc.
- Boa parte da classe média urbana passaria a comprar em canais legais; o varejo ilegal ficaria concentrado em nichos e territórios mais vulneráveis.
A Figura 4 (gráfico de linha) mostra o crescimento do mercado legal e a queda do ilícito ao longo dos anos.
5. E como ficaria o “P&L do crime” com drogas como um todo?
Legalizar só a maconha não zera o tráfico, obviamente. Mas muda quanto e onde ele ganha.
Partindo do cenário 2025E do mercado de todas as drogas e aplicando o cenário “Brasil realista” apenas na maconha, a Tabela 5 mostra como ficaria o P&L das drogas ilícitas:
- O faturamento ilícito total com drogas cairia de R$ 33,35 bilhões para R$ 24,65 bilhões – uma redução de cerca de 26%.
- Só na maconha, o baque é muito maior: queda em torno de 70% na receita ilícita.
- A contrapartida é que o crime fica mais dependente de cocaína e crack: juntos, eles passam a representar quase 70% do mercado de drogas ilícitas.
Tabela 5 – P&L de drogas ilícitas antes e depois da legalização da maconha
(Coluna “Depois” = estimativa de IA com base no cenário Brasil realista.)
A Figura 5, com duas séries de barras (antes e depois), ajuda a enxergar a mudança:
- no “antes”, a maconha é a maior barra do gráfico;
- no “depois”, quem domina o ilícito são a cocaína e o crack.
Isso joga uma luz importante para o debate de política criminal: legalizar maconha mexe muito com o caixa, mas não resolve sozinho o problema da violência associada às drogas, que hoje está muito vinculada justamente à cocaína, ao crack e às armas.
Se a maconha regulada pode tirar até um terço do P&L das drogas ilícitas, o que o Estado faz com essa oportunidade? Mantém a lógica de operação letal, ou recalibra a política criminal para mirar no caixa das drogas pesadas, na lavagem de dinheiro e na saúde dos usuários? É isso que analiso na Parte 3.
O que é dado e o que é estimativa da IA:
- As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
- Todas as tabelas com rótulos “2025E” e “Brasil realista (Tabelas 2, 3, 4 e 5) são estimativas de IA, construídas a partir:
- dos números de 2015,
- da inflação (IPCA) acumulada,
- de tendências globais descritas no World Drug Report e em estudos sobre mercados legais de cannabis (Canadá, Califórnia etc.).
- Esses cenários não devem ser lidos como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza e efeitos relativos.
Fontes principais:
- Teixeira, Luciana da Silva (2016). Impacto econômico da legalização das drogas no Brasil. Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa. Repositório Câmara dos Deputados
- UNODC (2025). World Drug Report 2025. ONU – Escritório sobre Drogas e Crime_Relatório 2015
- UNODC (2020). In Focus – Cannabis Legalization. ONU – Escritório sobre Drogas e Crime_Cannabis
- Estatísticas oficiais do Canadá sobre cannabis (2018–2024). Health Canada / Statistics Canada. Canadá_Cannabis
- Relatórios sobre o mercado de cannabis na Califórnia. Department of Cannabis Control / “California Cannabis Market Outlook 2024”. California_Cannabis
- Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD (Análise Executiva da Questão de Drogas no Brasil). Serviços e Informações do Brasil







