Este texto é a Parte 1 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Aqui, eu olho para os números do mercado de drogas no Brasil e tento responder: de que tamanho é esse negócio? Nas Partes 2 e 3, entro em cenários de legalização da maconha, impacto no caixa das facções e opções de política criminal e de saúde pública.
No fim de outubro de 2025, o Rio de Janeiro assistiu à operação policial mais letal da história do país. Em poucas horas, a Operação Contenção, realizada principalmente nos complexos da Penha e do Alemão, deixou 121 mortos, entre eles quatro policiais e mais de uma centena de pessoas classificadas como “suspeitos” pelas autoridades. A ação superou inclusive o massacre do Carandiru, em 1992, e ganhou repercussão internacional, com questionamentos de organizações de direitos humanos sobre proporcionalidade, legalidade e respeito à vida.
Independentemente da leitura política de cada um sobre essa operação específica, um dado salta aos olhos: estamos repetindo a mesma receita há décadas. Entram centenas de agentes, helicópteros, caveirões, dezenas de mortos, apreensões de armas e drogas… E, alguns meses depois, o comércio de drogas segue funcionando, as facções seguem lucrando e a vida cotidiana das comunidades volta ao “normal” de sempre – com medo, tiroteio e precariedade. Moradores relatam que, depois da fumaça, sobram casas destruídas, escolas fechadas, gente traumatizada e nenhuma mudança estrutural.
Quando olhamos para o problema só pela lente da “guerra ao tráfico”, a conta parece simples: é matar ou morrer, polícia contra bandidos. Mas, do ponto de vista econômico, não estamos falando de meia dúzia de “aviõezinhos”: estamos falando de um mercado bilionário, com cadeias de suprimento, logística, finanças, gestão de risco e diversificação de portfólio. Ao focar quase toda a energia em “peixes pequenos” – o varejo da boca, o jovem armado na esquina – o Estado ataca justamente o elo mais substituível da cadeia. O que não é tocado com a mesma força é o P&L do crime (P&L é o relatório financeiro que detalha as receitas, custos e despesas de uma empresa) – a estrutura que permite que o negócio continue lucrando, recrutando e se reinventando.
Esta série de artigos parte dessa constatação incômoda: se tratamos drogas apenas como problema de polícia, a polícia vira, sozinha, a política de drogas. E os resultados estão aí, em operações como a do Rio: muita gente morta, pouca mudança estrutural. Em vez disso, proponho olhar para o tráfico como o que ele também é – um grande negócio – e perguntar: quanto fatura esse mercado no Brasil? Onde está o grosso do dinheiro? O que aconteceria se uma parte importante desse faturamento saísse da ilegalidade?
A partir de dados públicos de 2015 sobre o mercado de drogas ilícitas no Brasil e de experiências de países e estados norte-americanos que legalizaram a maconha, construo, com ajuda de IA, alguns cenários exploratórios:
- como pode estar hoje a distribuição de faturamento entre maconha, cocaína, crack e sintéticos;
- o que mudaria se a maconha fosse legalizada em um cenário “Brasil realista”;
- e como diferentes desenhos de política criminal podem reduzir (ou não) o caixa das facções.
Por fim, não dá para falar de legalização ignorando a saúde pública: a maconha tem riscos reais, especialmente em adolescentes e pessoas vulneráveis a transtornos mentais, ao mesmo tempo em que políticas bem desenhadas podem reduzir danos, regular a potência dos produtos e financiar prevenção e tratamento. A ideia aqui não é fazer apologia nem demonização, mas tirar a discussão apenas do gatilho e levar para a planilha, o ambulatório e o planejamento de longo prazo. A operação no Rio mostra com brutalidade o que acontece quando a resposta é praticamente só bala. A partir daqui, sigo por outro caminho, usando números, cenários de regulação e evidências de saúde pública para imaginar que país teríamos se o alvo fosse menos o gatilho e mais o desenho da política de drogas.
1. Quanto dinheiro gira no mercado de drogas no Brasil?
Antes de discutir legalização, saúde pública ou política criminal, vale encarar a pergunta mais básica (e mais incômoda) de todas: quanto vale o tráfico de drogas no Brasil? A resposta não é trivial, mas os dados de 2015 já nos dão uma boa ordem de grandeza para entender o tamanho desse mercado e quem são seus “campeões de faturamento”.
A Tabela 1 traz a melhor estimativa pública que temos do mercado interno de drogas ilícitas no Brasil, feita a partir de dados de 2015. É um retrato tirado há 10 anos, mas ainda é o único que fecha a conta com metodologia explícita: número de usuários, quantidade média consumida e preço de rua.
Tabela 1 – Mercado interno de drogas ilícitas no Brasil em 2015
Dados de Luciana Teixeira (Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, 2016) – valores nominais de 2015
O ponto principal não é discutir a segunda casa decimal, mas a ordem de grandeza:
- Estamos falando de um mercado de cerca de R$ 14,5 bilhões/ano, só considerando maconha, cocaína, crack e ecstasy.
- A maconha aparece como o maior faturamento, com algo perto de 40% do total.
- Cocaína e crack, somados, respondem por mais da metade do bolo restante.
Ao transformar a Tabela 1 em um gráfico de pizza (Figura 1), a imagem é simples: um terço maconha, um terço cocaína, um quinto crack, um pedaço menor de ecstasy.
Este é o P&L básico do varejo de drogas no Brasil há dez anos.
2. E hoje, como isso pode estar?
A segunda pergunta óbvia é: “Ok, 2015 passou faz tempo. Como pode estar isso em 2025?”
O problema: ninguém refez essa conta com a mesma qualidade metodológica. Em vez de inventar um “dado novo”, eu preferi construir um cenário exploratório: pegar a base de 2015 e projetar para 2025 usando:
- a inflação acumulada nesse período,
- tendências globais e nacionais (mais cannabis, boom de cocaína, sintéticos em alta),
- e mantendo o padrão de consumo físico médio por pessoa.
O resultado está na Tabela 2. É importante lembrá-la como um modelo de IA, não um relatório do IBGE.
Tabela 2 – Cenário exploratório 2025E do mercado ilícito de drogas no Brasil
(Toda a coluna “2025E” é estimativa de IA, a partir da base 2015 + IPCA + tendências globais.)
Algumas ideias chave para ler essa tabela:
- Em valores nominais, o “mercado de drogas” pode estar na casa de R$ 33 bilhões/ano, basicamente o dobro de 2015, puxado por inflação e aumento moderado de consumidores.
- A maconha seguiria relevante, mas perdendo um pouco de participação para cocaína e sintéticos.
- Drogas sintéticas, praticamente invisíveis na conta de 2015, ganham um pedaço pequeno, mas crescente.
Se você montar a Figura 2 (barras com faturamento 2015 x 2025E para cada droga), a mensagem visual é: as barras de todas as drogas crescem, mas a de cocaína cresce de forma especialmente preocupante.
Na Parte 2, eu parto desses números e os transformo em um cenário de política pública: simulo o que aconteceria com o caixa das facções, a arrecadação do Estado e o sistema de saúde se a maconha saísse (em parte) do mercado ilegal e fosse tratada como um produto regulado.
O que é dado e o que é estimativa da IA:
- As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
- A Tabela 2 com rótulo “2025E”, “é estimativa de IA, construída a partir:
- dos números de 2015,
- da inflação (IPCA) acumulada,
- de tendências globais descritas no World Drug Report.
- Esse cenário não deve ser lido como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza.
Fontes principais:
- Teixeira, Luciana da Silva (2016). Impacto econômico da legalização das drogas no Brasil. Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa. Repositório Câmara dos Deputados
- UNODC (2025). World Drug Report 2025. ONU – Escritório sobre Drogas e Crime_Relatório 2015
- Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD (Análise Executiva da Questão de Drogas no Brasil). Serviços e Informações do Brasil





