Arquivo do mês: novembro 2025

Operações Letais, Mercados Bilionários (Parte 3): política criminal, saúde pública e o dia seguinte da legalização

Este texto é a Parte 3 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Na Parte 1, discuti a ordem de grandeza do mercado de drogas no Brasil; na Parte 2, simulei como a legalização da maconha poderia mexer no caixa das facções.

Agora, a pergunta muda: se a maconha for regulada, o que o Estado faz com essa oportunidade? Aqui entro em cenários de política criminal e saúde pública, para além da lógica puramente repressiva.

6. Três caminhos de política criminal depois da legalização

Legalizar a maconha não é, por si só, uma política de segurança pública; é apenas mudar uma peça importante no tabuleiro. O impacto real sobre violência, facções e sistema prisional vai depender de qual política criminal vem na sequência: manter a inércia, focar na macrocriminalidade ou integrar segurança, saúde e finanças leva a resultados muito diferentes usando o mesmo ponto de partida.

Foram construídos três cenários muito simples de política criminal, resumidos na Tabela 6:

  1. Cenário 1 – Inércia reativa
    • A lei muda, mas a prática não.
    • Continua-se gastando muita energia em varejo e “peixe pequeno”, agora menos com maconha e mais com cocaína e crack.
    • Resultado: o P&L cai 26% porque a maconha foi regulada, mas não cai muito além disso. Violência e encarceramento seguem altos.
  2. Cenário 2 – Foco em drogas pesadas e macrocriminalidade
    • Aproveita-se o “alívio” de recursos na maconha para redirecionar os esforços para:
      • rotas de cocaína;
      • laboratórios e depósitos de crack;
      • e, principalmente, lavagem de dinheiro.
    • A lógica deixa de ser “quantos presos” e passa a ser “quanto de prejuízo financeiro para as facções”.
    • Nesse cenário, é razoável imaginar o P&L de drogas caindo perto de 40%, com cocaína e crack perdendo espaço através da ação, principalmente, da Polícia Federal e polícias estaduais.
  3. Cenário 3 – Estratégia integrada Segurança + Saúde + Finanças
    • Mantém o foco duro do Cenário 2,
    • mas inclui dois braços a mais:
      • saúde, usando parte da arrecadação da maconha para tratar dependência, reduzir danos e cuidar de saúde mental em territórios vulneráveis;
      • sistema financeiro, com COAF, Receita Federal, Banco Central e órgãos reguladores atacando lavagem de dinheiro, empresas de fachada e instrumentos financeiros usados para esconder o dinheiro do crime.
    • Aqui não é só cortar receita, é também mexer na demanda (menos gente presa no ciclo crack–prisão–rua) e no “colchão” financeiro das organizações.

Tabela 6 – Três linhas de política criminal pós-legalização (visão comparada)

(Toda esta tabela é análise qualitativa da IA, inspirada em literatura sobre macrocriminalidade e políticas de drogas.)

IndicadorCenário 1 – InérciaCenário 2 – Foco macro (drogas pesadas)Cenário 3 – Integrado (Segurança + Saúde + Finanças)
Queda no P&L de drogas (base hoje)~26% (só maconha)~40%~40 – 45%
Queda no P&L com maconha~70%~70%~70%
Impacto em cocaína/crackPequenoAltoAlto
Redução de homicídiosBaixaMédiaMédia/Alta
Redução de internações / danos sociaisBaixaBaixa/MédiaAlta
Redução da população prisionalBaixaMédiaMédia/Alta
Ganho fiscal líquidoMédioMédio/AltoAlto
Complexidade de implementaçãoBaixaMédiaAlta

Na prática, os três cenários mostram que legalizar maconha é condição necessária, mas não suficiente. Se a política criminal não se recalibra, troca-se um tipo de guerra por outro. Se ela se recalibra bem, abre-se uma janela rara para:

  • tirar dinheiro do crime;
  • aliviar pressão sobre comunidades e sistema prisional;
  • e ainda financeiramente sustentar políticas de saúde e prevenção.

7. E a saúde? Não dá para varrer os riscos para debaixo do tapete

Qualquer conversa honesta sobre legalização precisa encarar o outro lado: quais são os riscos reais do consumo de maconha?

A Tabela 7 resume as principais evidências:

  • Efeitos agudos: vão do relaxamento e da “larica” até crises de ansiedade, paranoia e prejuízo de reflexos. Dirigir ou operar máquina sob efeito é perigoso.
  • Dependência: não é mito nem é igual a heroína. Algo como 1 em 10 usuários pode desenvolver dependência; o risco sobe se o uso começa cedo e é diário.
  • Saúde mental: uso frequente, com produtos de alta potência em THC, aumenta o risco de quadros psicóticos, especialmente em pessoas com vulnerabilidade genética.
  • Adolescentes: aqui o consenso é amplo. Cérebro em desenvolvimento mais uso regular é igual a mais problemas escolares, mais risco de dependência, mais chance de desfechos psiquiátricos adversos.
  • Pulmão e coração: fumar implica exposição à fumaça (bronquite, irritação) e aumenta frequência cardíaca e pressão por um tempo – o que importa em quem já tem doença cardiovascular.

Tabela 7 – Efeitos do consumo de maconha (resumo)

DimensãoEvidência principal
Efeitos agudosRelaxamento, alteração da percepção, aumento de apetite; mas também ansiedade, taquicardia, paranoia e piora de reflexos e coordenação.
DependênciaCerca de 1 em 10 usuários desenvolve algum grau de dependência; risco maior (aproximadamente 1 em 6) se iniciar na adolescência e usar com frequência.
Saúde mentalUso frequente (principalmente diário e com alta potência de THC) está associado a maior risco de psicose; relação dose–resposta documentada em meta-análises.
Ansiedade/depressãoAssociação bidirecional: pessoas com sofrimento psíquico tendem a usar mais, e uso pesado pode piorar sintomas em parte dos casos.
CogniçãoPrejuízos em atenção e memória de curto prazo; uso precoce e intenso pode associar-se a desempenho escolar pior e déficit cognitivo duradouro.
PulmãoFumar implica exposição a fumaça e produtos da combustão → risco de bronquite crônica e irritação de vias aéreas, similar em lógica ao tabaco.
CoraçãoAumento transitório de frequência cardíaca e pressão; cautela em pessoas com cardiopatias.
GravidezUso na gestação associado a possíveis efeitos adversos no desenvolvimento fetal e neurológico → recomendação geral é evitar.
AdolescentesConsenso de maior risco: cérebro em desenvolvimento, maior risco de dependência e de desfechos psiquiátricos adversos.

A Tabela 8 tenta traduzir isso em desenho regulatório:

  • Se adolescentes são mais vulneráveis, então faz sentido ter idade mínima e proibir marketing direcionado a jovens.
  • Se alta potência aumenta risco de psicose, então faz sentido limitar THC em produtos recreativos e exigir rotulagem clara.
  • Se fumar faz mal para o pulmão, então faz sentido permitir formas não combustíveis (óleos, comestíveis), com regulação rígida de dose.
  • Se gestantes e pessoas com histórico de psicose correm mais riscos, então faz sentido ter alertas específicos e protocolos de aconselhamento na rede de saúde.

Tabela 8 – Riscos e regulação (exemplos)

Risco identificadoMedida regulatória coerente
Maior risco em adolescentesIdade mínima (18 ou 21 anos), proibição de marketing para jovens.
Risco de psicose com uso    pesado / alta potênciaLimites de THC, rotulagem clara de concentração, avisos de risco.
Danos respiratórios ao fumarPermitir produtos não combustíveis (óleos, vaporização regulada, comestíveis) e informar riscos de fumar.
Dependência e uso problemáticoDestinar parte da arrecadação para prevenção e tratamento, triagem em atenção primária.
Risco para gestantesAdvertências específicas em rótulos e campanhas públicas direcionadas.

Em outras palavras: legalizar não é liberar geral. É trocar um mercado sem regras por um mercado com regras que incorporam o que a ciência sabe sobre riscos e danos.


8. Fechando a conta

Se você juntar as peças:

  • um mercado bilionário de drogas,
  • um aparato repressivo que mira desproporcionalmente o elo mais fraco,
  • operações letais como a do Rio,
  • e um conjunto de evidências sobre riscos e possibilidades de regulação da maconha,

a pergunta deixa de ser “legalizar é certo ou errado?” e passa a ser:

Que combinação de regulação, política criminal e atenção à saúde minimiza os danos e o poder econômico do crime organizado?

As tabelas e figuras das três partes deste artigo não dão uma resposta definitiva (nem poderiam), mas ajudam a fazer uma coisa que o debate público brasileiro raramente faz: colocar números na conversa, explicitar premissas, separar o que é dado do que é cenário, o que é convicção do que é evidência.

Se a gente continuar respondendo com a mesma lógica que produziu a operação mais letal da história recente, é provável que vejamos outras grandes operações, outras dezenas de mortos, e o varejo do tráfico funcionando como se nada tivesse acontecido.

Se a gente conseguir tirar a discussão apenas do gatilho e trazê-la também para a planilha e para o SUS, talvez não resolvamos o problema das drogas – mas teremos, pelo menos, parado de repetir a mesma guerra com as mesmas vítimas de sempre.


O que é dado e o que é estimativa da IA:

  • As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
  • O resumo dos efeitos de saúde da maconha (Tabela 7) é baseado em revisões sistemáticas e meta-análises recentes sobre cannabis, psicose, dependência e outros desfechos de saúde, além de relatórios do UNODC.
  • Todas as tabelas com rótulos “2025E”, “Brasil realista” e os cenários de política criminal (Tabelas 2, 3, 4, 5 e 6) são estimativas de IA, construídas a partir:
    • dos números de 2015,
    • da inflação (IPCA) acumulada,
    • de tendências globais descritas no World Drug Report e em estudos sobre mercados legais de cannabis (Canadá, Califórnia etc.).
  • Esses cenários não devem ser lidos como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza e efeitos relativos.

Fontes principais:

2 Comentários

Arquivado em Ética, Blog, Ciência, Economia, Geral, linkedin, Política, Saúde, Segurança

Operações Letais, Mercados Bilionários (Parte 2): cenários de legalização da maconha e o caixa das facções

Este texto é a Parte 2 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Na Parte 1, olhei para o tamanho do mercado de drogas no Brasil e para a distribuição de faturamento entre maconha, cocaína, crack e sintéticos.

Aqui, dou o passo seguinte: uso esses números para simular o que aconteceria com o caixa das facções se a maconha saísse (em parte) do mercado ilegal e fosse para um mercado legal e regulado.

3. O que aprendemos com Canadá, Califórnia e outros “laboratórios” de legalização?

Se o objetivo é tirar dinheiro do crime sem simplesmente trocar um tipo de guerra por outro, faz sentido olhar para quem já mexeu na peça “maconha” do tabuleiro. Canadá, alguns estados dos EUA e outros países funcionam como laboratórios avançados: neles, a maconha passou a ser vendida legalmente, com impostos, regras e, mesmo assim (ou por isso), o mercado ilegal não desapareceu por completo.

Aqui entram dois experimentos importantes:

  • Canadá, que legalizou em 2018 e, alguns anos depois, conseguiu que algo em torno de 70–80% do gasto em cannabis fosse para o mercado legal.
  • Califórnia, que também legalizou, mas, por uma combinação de impostos altos, burocracia e restrições locais, ainda vê cerca de 60% do consumo passando por canais ilegais.

A Tabela 3 resume três cenários, inspirados nesses casos:

  • Um Brasil que imita o “modelo Califórnia ineficiente”, no qual o mercado legal só consegue capturar uns 40% do gasto em maconha, mantendo um mercado ilícito gordo.
  • Um “modelo Canadá médio”, em que cerca de 75% do gasto em maconha vai para o legal.
  • E um cenário mais ambicioso, em que o país usa imposto mais baixo e ampla oferta para asfixiar o mercado ilegal da maconha, chegando a 85% de captura.

Tabela 3 – Cenários de legalização da maconha (captura de mercado e impostos)

(Todos os valores abaixo são estimativas de IA baseadas em benchmarks de Canadá e Califórnia.)

O interessante é notar que, mesmo com parâmetros conservadores, aparecem bilhões de reais por ano em vendas legais e algo entre 1 e 2 bilhões de reais em impostos.

Na Figura 3 (barras empilhadas legal x ilegal por cenário), vemos como cada desenho tributário e regulatório distribui o bolo entre Estado e crime.


4. Um “Brasil realista”: nem utopia, nem catástrofe

Em vez de imaginar um Brasil que vira Canadá amanhã, tentei traduzir isso para um trajeto mais plausível: como poderia ser a legalização da maconha ao longo de alguns anos aqui.

A Tabela 4 mostra um cenário em três marcos:

  • Ano 0 – onde estamos hoje: tudo ilícito, R$ 12,5 bi de mercado de maconha, zero imposto, 100% do P&L na mão do crime.
  • Ano 3 – legalização implantada, mas ainda cheia de atritos: redes legais concentradas nas capitais, muita gente ainda comprando nas bocas. Nesse ponto, algo como 45% do mercado já poderia estar no legal.
  • Ano 7 – mercado maduro, com lojas e cooperativas espalhadas, imposto moderado e repressão focada no comércio ilegal: aqui é onde o cenário supõe 70% do gasto em maconha no mercado regulado.

Tabela 4 – Cenário “Brasil realista” (legalização da maconha em 3 marcos)

(Toda esta tabela é estimativa de IA, inspirada em dados de Canadá, Illinois-EUA e relatórios da Califórnia-EUA, adaptados ao contexto brasileiro.)

Reforçando, essa tabela é um exercício; não uma previsão. Mas ela ajuda a enxergar ordens de grandeza:

  • Em sete anos, o faturamento ilegal com maconha cairia de 12,5 bilhões para 3,7 bilhões (uma redução de aproximadamente 70%).
  • O Estado passaria a arrecadar algo como R$ 1,6 bilhão por ano só com impostos específicos sobre a maconha, fora IR, ISS etc.
  • Boa parte da classe média urbana passaria a comprar em canais legais; o varejo ilegal ficaria concentrado em nichos e territórios mais vulneráveis.

A Figura 4 (gráfico de linha) mostra o crescimento do mercado legal e a queda do ilícito ao longo dos anos.


5. E como ficaria o “P&L do crime” com drogas como um todo?

Legalizar só a maconha não zera o tráfico, obviamente. Mas muda quanto e onde ele ganha.

Partindo do cenário 2025E do mercado de todas as drogas e aplicando o cenário “Brasil realista” apenas na maconha, a Tabela 5 mostra como ficaria o P&L das drogas ilícitas:

  • O faturamento ilícito total com drogas cairia de R$ 33,35 bilhões para R$ 24,65 bilhões – uma redução de cerca de 26%.
  • Só na maconha, o baque é muito maior: queda em torno de 70% na receita ilícita.
  • A contrapartida é que o crime fica mais dependente de cocaína e crack: juntos, eles passam a representar quase 70% do mercado de drogas ilícitas.

Tabela 5 – P&L de drogas ilícitas antes e depois da legalização da maconha

(Coluna “Depois” = estimativa de IA com base no cenário Brasil realista.)

A Figura 5, com duas séries de barras (antes e depois), ajuda a enxergar a mudança:

  • no “antes”, a maconha é a maior barra do gráfico;
  • no “depois”, quem domina o ilícito são a cocaína e o crack.

Isso joga uma luz importante para o debate de política criminal: legalizar maconha mexe muito com o caixa, mas não resolve sozinho o problema da violência associada às drogas, que hoje está muito vinculada justamente à cocaína, ao crack e às armas.

Se a maconha regulada pode tirar até um terço do P&L das drogas ilícitas, o que o Estado faz com essa oportunidade? Mantém a lógica de operação letal, ou recalibra a política criminal para mirar no caixa das drogas pesadas, na lavagem de dinheiro e na saúde dos usuários? É isso que analiso na Parte 3.


O que é dado e o que é estimativa da IA:

  • As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
  • Todas as tabelas com rótulos “2025E” e “Brasil realista (Tabelas 2, 3, 4 e 5) são estimativas de IA, construídas a partir:
    • dos números de 2015,
    • da inflação (IPCA) acumulada,
    • de tendências globais descritas no World Drug Report e em estudos sobre mercados legais de cannabis (Canadá, Califórnia etc.).
  • Esses cenários não devem ser lidos como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza e efeitos relativos.

Fontes principais:

Deixe um comentário

Arquivado em Ética, Blog, Economia, Geral, linkedin, Política, Saúde, Segurança

Operações Letais, Mercados Bilionários (Parte 1): quanto vale o tráfico de drogas no Brasil?

Este texto é a Parte 1 da série “Operações letais, mercados bilionários: por que só bala não resolve o tráfico de drogas”. Aqui, eu olho para os números do mercado de drogas no Brasil e tento responder: de que tamanho é esse negócio? Nas Partes 2 e 3, entro em cenários de legalização da maconha, impacto no caixa das facções e opções de política criminal e de saúde pública.

No fim de outubro de 2025, o Rio de Janeiro assistiu à operação policial mais letal da história do país. Em poucas horas, a Operação Contenção, realizada principalmente nos complexos da Penha e do Alemão, deixou 121 mortos, entre eles quatro policiais e mais de uma centena de pessoas classificadas como “suspeitos” pelas autoridades. A ação superou inclusive o massacre do Carandiru, em 1992, e ganhou repercussão internacional, com questionamentos de organizações de direitos humanos sobre proporcionalidade, legalidade e respeito à vida.

Independentemente da leitura política de cada um sobre essa operação específica, um dado salta aos olhos: estamos repetindo a mesma receita há décadas. Entram centenas de agentes, helicópteros, caveirões, dezenas de mortos, apreensões de armas e drogas… E, alguns meses depois, o comércio de drogas segue funcionando, as facções seguem lucrando e a vida cotidiana das comunidades volta ao “normal” de sempre – com medo, tiroteio e precariedade. Moradores relatam que, depois da fumaça, sobram casas destruídas, escolas fechadas, gente traumatizada e nenhuma mudança estrutural.

Quando olhamos para o problema só pela lente da “guerra ao tráfico”, a conta parece simples: é matar ou morrer, polícia contra bandidos. Mas, do ponto de vista econômico, não estamos falando de meia dúzia de “aviõezinhos”: estamos falando de um mercado bilionário, com cadeias de suprimento, logística, finanças, gestão de risco e diversificação de portfólio. Ao focar quase toda a energia em “peixes pequenos” – o varejo da boca, o jovem armado na esquina – o Estado ataca justamente o elo mais substituível da cadeia. O que não é tocado com a mesma força é o P&L do crime (P&L é o relatório financeiro que detalha as receitas, custos e despesas de uma empresa) – a estrutura que permite que o negócio continue lucrando, recrutando e se reinventando.

Esta série de artigos parte dessa constatação incômoda: se tratamos drogas apenas como problema de polícia, a polícia vira, sozinha, a política de drogas. E os resultados estão aí, em operações como a do Rio: muita gente morta, pouca mudança estrutural. Em vez disso, proponho olhar para o tráfico como o que ele também é – um grande negócio – e perguntar: quanto fatura esse mercado no Brasil? Onde está o grosso do dinheiro? O que aconteceria se uma parte importante desse faturamento saísse da ilegalidade?

A partir de dados públicos de 2015 sobre o mercado de drogas ilícitas no Brasil e de experiências de países e estados norte-americanos que legalizaram a maconha, construo, com ajuda de IA, alguns cenários exploratórios:

  • como pode estar hoje a distribuição de faturamento entre maconha, cocaína, crack e sintéticos;
  • o que mudaria se a maconha fosse legalizada em um cenário “Brasil realista”;
  • e como diferentes desenhos de política criminal podem reduzir (ou não) o caixa das facções.

Por fim, não dá para falar de legalização ignorando a saúde pública: a maconha tem riscos reais, especialmente em adolescentes e pessoas vulneráveis a transtornos mentais, ao mesmo tempo em que políticas bem desenhadas podem reduzir danos, regular a potência dos produtos e financiar prevenção e tratamento. A ideia aqui não é fazer apologia nem demonização, mas tirar a discussão apenas do gatilho e levar para a planilha, o ambulatório e o planejamento de longo prazo. A operação no Rio mostra com brutalidade o que acontece quando a resposta é praticamente só bala. A partir daqui, sigo por outro caminho, usando números, cenários de regulação e evidências de saúde pública para imaginar que país teríamos se o alvo fosse menos o gatilho e mais o desenho da política de drogas.


1. Quanto dinheiro gira no mercado de drogas no Brasil?

Antes de discutir legalização, saúde pública ou política criminal, vale encarar a pergunta mais básica (e mais incômoda) de todas: quanto vale o tráfico de drogas no Brasil? A resposta não é trivial, mas os dados de 2015 já nos dão uma boa ordem de grandeza para entender o tamanho desse mercado e quem são seus “campeões de faturamento”.

A Tabela 1 traz a melhor estimativa pública que temos do mercado interno de drogas ilícitas no Brasil, feita a partir de dados de 2015. É um retrato tirado há 10 anos, mas ainda é o único que fecha a conta com metodologia explícita: número de usuários, quantidade média consumida e preço de rua.

Tabela 1 – Mercado interno de drogas ilícitas no Brasil em 2015

Dados de Luciana Teixeira (Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, 2016) – valores nominais de 2015

O ponto principal não é discutir a segunda casa decimal, mas a ordem de grandeza:

  • Estamos falando de um mercado de cerca de R$ 14,5 bilhões/ano, só considerando maconha, cocaína, crack e ecstasy.
  • A maconha aparece como o maior faturamento, com algo perto de 40% do total.
  • Cocaína e crack, somados, respondem por mais da metade do bolo restante.

Ao transformar a Tabela 1 em um gráfico de pizza (Figura 1), a imagem é simples: um terço maconha, um terço cocaína, um quinto crack, um pedaço menor de ecstasy.

Este é o P&L básico do varejo de drogas no Brasil há dez anos.


2. E hoje, como isso pode estar?

A segunda pergunta óbvia é: “Ok, 2015 passou faz tempo. Como pode estar isso em 2025?”

O problema: ninguém refez essa conta com a mesma qualidade metodológica. Em vez de inventar um “dado novo”, eu preferi construir um cenário exploratório: pegar a base de 2015 e projetar para 2025 usando:

  • a inflação acumulada nesse período,
  • tendências globais e nacionais (mais cannabis, boom de cocaína, sintéticos em alta),
  • e mantendo o padrão de consumo físico médio por pessoa.

O resultado está na Tabela 2. É importante lembrá-la como um modelo de IA, não um relatório do IBGE.

Tabela 2 – Cenário exploratório 2025E do mercado ilícito de drogas no Brasil

(Toda a coluna “2025E” é estimativa de IA, a partir da base 2015 + IPCA + tendências globais.)

Algumas ideias chave para ler essa tabela:

  • Em valores nominais, o “mercado de drogas” pode estar na casa de R$ 33 bilhões/ano, basicamente o dobro de 2015, puxado por inflação e aumento moderado de consumidores.
  • A maconha seguiria relevante, mas perdendo um pouco de participação para cocaína e sintéticos.
  • Drogas sintéticas, praticamente invisíveis na conta de 2015, ganham um pedaço pequeno, mas crescente.

Se você montar a Figura 2 (barras com faturamento 2015 x 2025E para cada droga), a mensagem visual é: as barras de todas as drogas crescem, mas a de cocaína cresce de forma especialmente preocupante.

Na Parte 2, eu parto desses números e os transformo em um cenário de política pública: simulo o que aconteceria com o caixa das facções, a arrecadação do Estado e o sistema de saúde se a maconha saísse (em parte) do mercado ilegal e fosse tratada como um produto regulado.


O que é dado e o que é estimativa da IA:

  • As tabelas com valores de 2015 (Tabela 1) são baseadas no estudo de Luciana Teixeira para a Câmara dos Deputados, que estimou um mercado de R$ 14,5 bilhões para maconha, cocaína, crack e ecstasy no Brasil em 2015.
  • A Tabela 2 com rótulo “2025E”, “é estimativa de IA, construída a partir:
    • dos números de 2015,
    • da inflação (IPCA) acumulada,
    • de tendências globais descritas no World Drug Report.
  • Esse cenário não deve ser lido como “previsão oficial”, mas como um exercício para ajudar a pensar ordens de grandeza.

Fontes principais:

Deixe um comentário

Arquivado em Ética, Blog, Economia, Geral, linkedin, Política, Saúde, Segurança