Já imaginou se o príncipe Hamlet da Dinamarca, personagem principal da magistral peça de William Shakespeare, não fosse um ser humano? E se ele fosse o ovo de uma ave, ou a semente de uma árvore ou uma simples pedra?
Para relembrar, há alguns anos escrevi um artigo sobre Hamlet, a versão de Millôr Fernandes para o famoso monólogo “Ser ou Não Ser” está apresentada na sequência.

Hamlet e Horácio no cemitério de Eugène Delacroix
Ser ou não ser – eis a questão
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra um mar de angústias –
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono – dizem – extinguir
Dores do coração e mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer – dormir –
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sonho da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Não obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mundo, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis.
Podendo ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal? Quem aguentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão porque o terror de alguma coisa após a morte –
O pais não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar os males que já temos,
A fugirmos para outro que desconhecemos?
E assim a reflexão faz todos nós covardes.
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento,
E empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas demais, saem de seu caminho,
Perdem o nome de ação.
Se Hamlet fosse um ovo, poderia ser assim seu famoso monólogo:
Ser ou não ser – eis a questão
Ser mineral ou ovo?
Enquanto sou simples ovo, sou como mineral, meu relógio está parado – sem riscos,
Mas diferente dos minerais, posso me transformar!
Com ar ou sem ar – eis a questão
Sem ar, o tempo não existe,
Com ar, o cronômetro dispara…
Não serei mais ovo,
Serei uma ave!
Toda água que preciso para me transformar em ave já está dentro de mim,
Quando estiver pronta bicarei o invólucro mineral que me protege – a casca,
Colocarei minha cabeça para fora e inspirarei o ar para meus pulmões pela primeira vez.
Depois ao expirar, emitirei o primeiro som da minha vida.
Inspirarei e expirarei de forma rítmica enquanto viver.
Aprenderei a suprir meu próprio alimento.
Caçarei animalzinhos menores e fugirei dos meus predadores.
Alternarei períodos de sono com períodos de vigília.
Crescerei e procriarei.
Colocarei ovos que poderão gerar aves semelhantes a mim.
Seguirei meus instintos todos os dias.
Sentirei o mundo ao meu redor.
Até o dia em que perderei minhas forças, envelhecerei.
Me tornarei presa fácil e, um dia, expirarei pela última vez.
Terei morrido!
Meus restos voltarão para a terra e uma parte voltará a ser mineral.
Mas se alguns dos ovos que botei, ao longo da minha vida, virarem aves,
Todo o ciclo da vida recomeça e esta história poderá ser recontada.
E se fosse uma semente?
Ser ou não ser – eis a questão
Ser mineral ou planta?
Enquanto sou simples semente, sou como mineral, meu relógio está parado – sem riscos,
Mas diferente dos minerais, posso me transformar!
Com água ou sem água – eis a questão
Sem água, o tempo não existe,
Com água, o cronômetro dispara…
Não serei mais semente,
Primeiro virarei broto,
Crescerão raízes, caule e folhas,
Minhas raízes buscarão na terra a água e os minerais que preciso,
Minhas raízes chegarão até a rocha-mãe e a desintegrarei lenta e carinhosamente,
A água e os minerais absorvidos pelas raízes formarão a seiva bruta,
Que subirá, através do xilema, pelo meu caule até minhas folhas.
De dia o sol iluminará minhas folhas,
Absorverei o gás carbônico do ar
E, através do milagre da fotossíntese, liberarei oxigênio e produzirei açúcares.
Através do floema mandarei para baixo esta nova seiva nutritiva.
Crescerei um pouco a cada dia.
No final de cada ciclo, florescerei e frutificarei.
Farei sementes iguais à que eu fui um dia.
E voltarei a crescer até um dia em que pararei de crescer e morrerei.
O tempo, materializado em meu corpo, estará encerrado para mim.
Voltarei a ser mineral, voltarei para a terra…
Mas minhas sementes, se receberem água, contarão de novo esta história.
Mas tudo seria mais simples, se Hamlet fosse uma pedra:
Ser ou não ser – eis a questão,
Simples, apenas ser…
E suportar tudo – eternamente,
Ser pisoteada por homens e animais,
Despencar da encosta de uma montanha,
Ser chibatada pelas águas do mar ou de um rio,
Ou lavada gentilmente pela chuva,
Ser erodida pelos ventos,
Ou partida pela violência de um raio.
Passar os tempos no alto de uma montanha,
No fundo de um rio,
Ou nas profundezas da terra, onde as raízes de plantas roubam meus minerais.
Se eu for totalmente fragmentada, desintegrada,
Continuo a ser a mesma, porque sou apenas a soma de minhas partes.
Tenho a eternidade.