Carta Aberta para a Revista dos Vegetarianos

Há três meses, a Revista dos Vegetarianos publicou uma matéria sobre a soja. Como eu e Claudia não concordamos com vários pontos, resolvemos enviar uma mensagem com nossos comentários. Mandamos o e-mail no dia 22-02-2015 e não recebemos qualquer retorno. Deste modo, decidimos publicar a íntegra de nossa mensagem para que os leitores da Revista dos Vegetarianos tenham um contraponto para as informações apresentadas naquela matéria.

Capa da Revista dos Vegetarianos, nº100

Capa da Revista dos Vegetarianos, nº100

Prezados senhores(as),

Minha esposa e eu somos ovo-lacto-vegetarianos e, por iniciativa dela, assinamos a Revista dos Vegetarianos. Costumo ler e confiar na veracidade e precisão dos conteúdos de seus artigos. Na última edição, esta credibilidade ficou abalada após ler a reportagem de capa apresentada como um “dossiê definitivo” sobre a soja. Em primeiro lugar, quase nada é “definitivo” com os avanços científicos atuais. Em segundo lugar, a reportagem apresenta erros e inconsistências que seriam evitados com a consulta de pesquisadores e técnicos da área.

Trabalhei vinte anos em uma empresa que fabricava produtos derivados de soja. Neste período, atuei em diferentes áreas como pesquisa, engenharia de processo, projetos, tecnologia e produção de óleo, lecitina, farinhas, proteína isolada, proteína concentrada e proteína texturizada de soja (PTS). Por este motivo, fiquei perplexo com a demonização que o PTS sofreu nesta reportagem.

Em relação ao ácido fítico, responsável pela indisponibilidade de ferro e zinco, a forma da preparação do PTS pode praticamente eliminar o problema. Pode-se hidratar a proteína com água acidulada com suco de limão ou vinagre de arroz. O pH ácido aumenta a solubilidade do ácido fítico e reduz a solubilidade das proteínas. Na sequência, a massa pode ser enxaguada e prensada entre as mãos. Com esta operação, o ácido fítico e os oligossacarídeos são eliminados. Isto normalmente é feito pelos vegetarianos.

Segredinho no preparo da Proteína Texturizada de Soja

A revista poderia fazer uma reportagem, mostrando o preparo correto do PTS.

Segundo o Dr. Luciano Giacaglia, “a soja é rica em fibras alimentares que dificultam a absorção de colesterol”. O PTS possui toda a fibra dietética da soja. Em outros produtos, como o leite de soja e o tofu, toda a fibra é removida, gerando um novo produto chamado okara. Ou seja, em relação ao consumo de fibras, o PTS é mais completo do que outros derivados de soja.

O PTS é apresentado como um “subproduto altamente manipulado industrialmente”. O PTS é um dos derivados de soja menos processados. Normalmente é produzido apenas usando farinha desengordurada de soja como matéria prima. Após misturar água e farinha, a massa passa por um extrusor, onde através de alta pressão e temperatura, a maior parte dos fatores antinutricionais, como o inibidor de tripsina, é inativada. Diferentemente do afirmado pelo Chef Flávio Passos na matéria, a maioria destes inibidores enzimáticos não resistem às condições de temperatura dos processos industriais e perdem suas atividades.

O principal motivo das fermentações no tubo digestivo não é a digestão incompleta das proteínas, como o Chef Flávio Passos afirmou, mas a incapacidade de nosso organismo de hidrolisar os oligossacarídeos presentes na soja como a estaquiose e a rafinose. Geralmente só quebramos polímeros de glicose, como o amido, ou dissacarídeos como a maltose, a sacarose (açúcar da cana) e, com mais dificuldade, a lactose (açúcar do leite). Os oligossacarídeos são fermentados pelas bactérias que vivem em nosso intestino, produzindo gases como o metano e o gás carbônico.

Resumindo, dizer, como está na legenda da foto da página 19, “carne de soja – apesar de versátil na culinária, ela não deveria ser consumida porque não é saudável” não tem apoio científico. Além disto, se for bem preparada, a grande maioria dos problemas listados na reportagem são eliminados.

Gostaria de comentar outros problemas que encontrei na reportagem. A farinha de soja normalmente não é obtida através do processo aquoso descrito na página 20. Os dois principais produtos são obtidos através da moagem de soja descascada (farinha full fat) ou de farelo de soja desengordurado após e extração do óleo. Por sinal, a farinha desengordurada é a matéria prima do PTS.

Muitas fórmulas nutricionais para bebês são formuladas com proteína isolada de soja ao invés de extrato de soja (leite de soja). Desta forma, o ácido fítico e os oligossacarídeos são removidos do produto.

Na página 21, está escrito que o óleo de soja “pode ser hidrogenado para ser transformado em gordura vegetal hidrogenada, ou seja, margarina”. Existe um processo chamado interesterificação que não gera gordura trans. Estas gorduras atualmente são ingredientes para a produção de margarinas, solucionando este problema.

O Chef Flávio Passos também afirma que o edamame (soja verde) tem ômega-3, “algo que não se encontra no feijão maduro”. Na verdade, soja é uma das principais fontes vegetais de ômega-3. O óleo de soja (produzido a partir de soja madura) tem em torno de 7% de ácido linolênico (também conhecido como ALA, um dos principais ômegas-3 ao lado do EPA e DHA).

Normalmente, aqui em nossa casa, seguimos o conselho final da reportagem, procuramos variar o cardápio. Usamos diferentes tipos de feijões, lentilhas e grão de bico. Sabemos que a combinação de leguminosas (feijão, lentilha ou soja) com arroz supre nossa necessidade de aminoácidos essenciais. O que nos causou surpresa foi o radicalismo da reportagem contra o PTS que, como todo alimento, não deve ser consumido todos os dias.

Atenciosamente,

Vicente Manera Neto
Engenheiro Químico
Especialista em Tratamento de Resíduos Industriais
Mestre em Engenharia de Produção

Claudia Von Frihauf – assinante da Revista dos Vegetarianos
Engenheira Química
Mestranda em Engenharia Química – USP

8 Comentários

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8 Respostas para “Carta Aberta para a Revista dos Vegetarianos

  1. Luciano Giacaglia

    Prezados Vicente e Cláudia,
    Me perdoem pois somente agora tive a oportunidade de ler sua opinião a respeito do artigo sobre a soja na Revista dos Vegetarianos, para a qual fiz contribuição. Confesso que, como assíduo colaborador da revista (sem qualquer remuneração), fiquei um tanto perplexo com as colocações contrárias a PTS, no momento que o artigo foi publicado na íntegra. Eu concordo plenamente com suas excelentes ponderações, e se tivesse conhecimento do que seria publicado teria levantado a voz.
    Quando respondemos às solicitações da editora não temos idéia do resultado final da matéria e nem das posições de outros colaboradores, mas tão somente das nossas próprias posições. A Revista dos Vegetarianos, replica fielmente todas as minhas colocações (razão por eu continuar colaborando). Embora não podemos imaginar que todas as revistas contenham informações 100% fidedignas (alguma coisa sempre escapa), ela é a que apresenta a menor quantidade de dados pseudo-científicos e não se vende a interesses de grandes corporações. Uma outra revista que colaborei no passado, e que por questões pessoais não citarei o nome, quando eu os confrontei com “inverdades” publicadas, me responderam assim “Dr, você entende de ciência, e nós entendemos de vender revista”, e isso bastou para que nunca mais eu colaborasse com a mesma. Então, agradeço a sua boa vontade em responder aos editores, pois isso apenas aumenta o cuidado na edição final. Por vezes, eu mesmo já fiz comentários à eles alertando-os sobre equívocos em outras publicações. O problema é que não é fácil controlar a veracidade de todas as fontes de informação, mas talvez tivessem que contratar revisores científicos para correções do texto final. Por outro lado, isto encareceria todo o processo e o produto final.
    Abraços cordiais e parabéns pela causa em prol da verdade.
    Luciano Giacaglia

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    • Dr. Luciano Giacaglia,
      Grato pelo comentário em nosso blog. Apesar do nosso espanto com a reportagem, seguimos assinantes por considerar a “Revista dos Vegetarianos” o melhor veículo do segmento. As suas informações, neste artigo, foram as mais corretas e fico feliz que não houve alterações no conteúdo. O ponto central da minha crítica foi a inexistência do contraponto às opiniões do chef Flávio Passos. O bom jornalismo exige que, nos casos da existência de fortes opiniões negativas sobre determinado assunto, o outro lado seja ouvido. Isto demostra a independência de uma publicação. Temos dúvidas sobre a independência da “Revista dos Vegetarianos”, neste caso, porque a Puravida, de propriedade de Flávio Passos, era anunciante da revista na época.
      Ficamos muito felizes com seu comentário.
      Abraços,
      Claudia e Vicente

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  2. Paulo Luiz Mendonça.

    O ser humano, eterno defensor dos animais.

    O amor pelos animais devotados pelos humanos me deixa perplexo e até emocionado, há uma dedicação estremada pelos animais de estimação. Hoje temos veterinários, hospitais, clinicas de recuperação, medicamentos e até plano de saúde para os bichinhos. Por outro lado fico mais perplexo e indignado com a falta do mesmo tratamento aos bovinos, suínos, caprinos e ovinos, estes pobres animais os humanos os matam e come sua carne não se importando com os gritos de dor na hora do abate.
    Animais que caem na graça do ser humano tem todo privilégio, são os chamados de animais de estimação, os pobres coitados dos demais, são criados alimentados e cuidados só por interesse, eles são abatidos e levados para a mesa para serem devorados como alimento. Será que alguém já pensou nisso pelo menos uma vês na vida.

    Paulo Luiz Mendonça.

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  3. Katia Helena Lipp-Nissinen

    Olá Vicente.

    Parabéns!
    Aqui no Sul, tenho ficado perpleza com a ‘demonização’ das qualidades nutricionais da soja em geral. Além de estudar, me criei tomando leite de soja, dentre outras preparações, preparados pela minha mãe que era vegetariana e macrobiótica já nas décadas de 50-70. Um bom trabalho para vocês!
    Abraço,
    Katia H. Lipp Nissinen

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    • Kátia, grato pelo comentário!
      Sempre houve mitos em relação à soja, especialmente sobre o enfraquecimento dos ossos. Toda esta demonização é oriunda da falta de informação ou da “má ciência”. Nós devemos sempre divulgar conhecimento para aqueles nos cercam para romper esta cadeia perversa.
      Abraço,
      Vicente

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  4. Olá Vicente!

    Muita interessante sua postagem.
    Duvido que a revista irá responder seu e-mail pois, deste modo, eles estariam admitindo um erro grave e teriam que se retratar publicamente.
    Porém discordo com o final do seu post. A combinação de leguminosas, mesmo que em grande quantidade e variedade não supre nossa necessidade de aminoácidos essenciais, infelizmente, obtidos somente através da carne. A combinação de arroz e feijão tem sim todos os aminoácidos essenciais, mas não em quantidade suficiente nem próxima da carne. Fora que as proteínas obtidas pelos vegetais e pelas leguminosas não são tao bem absorvidas pelo organismo quanto às da carne.
    Abraço!

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    • Suelen,

      Grato pelo comentário!

      Ratifico minha informação – a mistura de arroz e feijão tem todos os aminoácidos essenciais que necessitamos. Além disto, a absorção das proteínas é avaliada através do índice PDCAAS (Protein Digestibility Corrected Amino Acid Score), onde a caseína do leite, a proteína do ovo e a proteína isolada de soja têm escore 1,00. Por exemplo, a carne bovina tem escore 0,92; o feijão preto, 0,75; e o glúten de trigo, 0,25.

      A questão principal é o motivo que te faz ser vegetariano. Se a razão for ética (respeito aos animais ou ambiental), sabemos que os cuidados com a alimentação devem ser redobrados. Quem consegue balancear bem a alimentação, pode ser tão saudável quanto alguém que come moderadamente carne, além de salada, frutas, legumes e cereais. Existem atletas e cientistas veganos. Se houvesse algum problema com esta forma de alimentação, eles não teriam o desempenho profissional demonstrado.

      Abraço!

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