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Como Deixar o Etanol Brasileiro Ainda Mais Verde e Circular

O governo brasileiro estimulou a produção de etanol para combustível a partir da cana de açúcar através do ProÁlcool, programa iniciado em meados da década de 1970. Este programa foi revitalizado nos anos 2000.

Lançamento do Fiat 147 a álcool (Fonte: Anfavea)

O etanol hidratado pode ser utilizado como substituto da gasolina. E atualmente etanol anidro é adicionado na gasolina comum na proporção de 27%. Através da tecnologia “flex-fuel” (ou “dual-fuel”), a maior parte da frota de automóveis do Brasil pode usar qualquer proporção de etanol e gasolina como combustível.

Deste modo, há uma redução na queima de combustíveis fósseis, além da plantação de cana de açúcar absorver a maior parte do CO2 emitido pelos veículos, reduzindo assim os GHG (gases de efeito estufa) na atmosfera.

Muitas usinas produzem etanol e açúcar refinado ou apenas semirrefinado. O melaço, subproduto da produção de açúcar, pode também ser aproveitado para a produção de etanol.

O bagaço, sólido fibroso proveniente da extração dos açúcares, é usado como combustível nas caldeiras para produção de vapor de alta pressão. Este vapor alimenta turbinas para a geração de energia elétrica e o vapor de escape atende as demandas térmicas do processo. As cinzas da queima do bagaço possuem alto teor de nutrientes minerais, sendo compostadas com outros resíduos orgânicos da usina e usados como fertilizante no canavial.

Produção de energia elétrica a partir de bagaço de cana (Fonte: Unica)

A fermentação alcoólica gera aproximadamente 1 kg de CO2 por kg de etanol. Ou seja, há oportunidades para o desenvolvimento do uso desta corrente. Uma aplicação existente é a produção de carbonatos “verdes” a partir do CO2 da fermentação.

Na destilação, são produzidos grandes volumes de vinhaça. São gerados em torno de 12 litros de vinhaça por litro de etanol hidratado. Esta vinhaça possui grande quantidade de matéria orgânica (alto DQO – demanda química de oxigênio) e minerais, sendo utilizada integralmente para irrigação dos canaviais.

Fertirrigação de um canavial (Fonte: Embrapa)

Apesar de vários aspectos positivos da recuperação de resíduos deste processo para outros processos ou retorno para o solo, existem oportunidades a serem perseguidas.

No campo, a palha da cana de açúcar não é levada para a usina. Deste modo, sua função atual é proteção e nutrição do solo. Há oportunidade para usar parte desta matéria orgânica para produção de energia elétrica, biogás ou etanol de segunda geração (etanol celulósico).

A vinhaça pode ser pré-digerida anaerobicamente e produzir biogás rico em metano, antes de irrigar os canaviais. O biogás pode ser combustível para produção adicional de energia elétrica ou, após purificação, pode ser transformado em metano verde. Se houver um gasoduto próximo, este gás pode ser injetado na rede.

Sistema de geração de biogás (Fonte: Única)

Os caminhões, colhedoras e tratores utilizam óleo diesel como combustível. Ou seja, existe consumo de combustível fóssil para produção de combustível renovável. E o óleo diesel é um dos itens mais importantes no custeio do etanol. Estima-se que 5% de todo o diesel consumido no Brasil é utilizado no setor sucroenergético. Uma alternativa é a transformação dos motores dos caminhões em “dual-fuel” (diesel-metano). Outra opção poderia ser motores híbridos elétricos e a metano. Nestas opções, os caminhões seriam abastecidos na fila para descarregamento para a moenda de cana.

Outro ponto, pode ser a melhoria da eficiência térmica das usinas para aumentar a geração de energia elétrica para o grid. Existem correntes quentes de vapor de baixa pressão na evaporação de caldo de cana, normalmente, sem sistema reaproveitamento energético.

Além disso, também se poderia melhorar o aproveitamento interno da água para reduzir a captação de água limpa dos rios e poços.

Mesmo sem estas melhorias sugeridas, o etanol de cana no Brasil é muito mais eficiente do que o etanol de milho e estima-se que gere apenas 14% das emissões de CO2 em comparação com a gasolina.

Os principais produtos da usina, açúcar e etanol, podem ser matérias primas para obtenção de produtos verdes. O etanol, por exemplo, pode ser a matéria prima para produção de eteno (matéria prima para produção de plásticos) 100% renovável. O açúcar pode ser usado como fonte de alimento de microrganismos para a produção de inúmeras moléculas, desde ácidos orgânicos e polímeros a óleos alimentícios.

No que refere aos aspectos sociais, uma usina emprega centenas de pessoas, tornando-se um motor importante para a economia de pequenas cidades do interior do Brasil. As condições de trabalho melhoraram muito nas últimas duas décadas. Os impostos oriundos das atividades destas usinas ajudam a melhorar os serviços públicos de educação e saúde de pequenas cidades.

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Os Orgânicos e a Circularidade

A produção de vegetais (verduras, frutas, raízes e legumes) orgânicos possui algumas regras que facilitam a adoção da circularidade. A seguir estão listadas algumas diretrizes para a produção de produtos orgânicos:

  • Oferta de produtos saudáveis isentos de contaminantes.
  • Uso de boas práticas de manuseio e processamento com o propósito de manter a integridade orgânica e as qualidades vitais do produto.
  • Preservação da diversidade biológica dos ecossistemas naturais e a recomposição ou incremento da diversidade biológica dos ecossistemas modificados.
  • Emprego de produtos e processos que mantenham ou incrementem a fertilidade do solo e o equilíbrio da sua atividade biológica.
  • Adoção de práticas nas unidades de produção que contemplem o uso saudável do solo, da água e do ar.
  • Reciclagem de resíduos de origem orgânica, reduzindo ao mínimo possível o emprego de recursos naturais não renováveis.
  • Utilização de práticas de manejo produtivo que preservem as condições de bem-estar dos animais.
  • Estabelecimento de relações de trabalho baseadas no tratamento com justiça, dignidade e equidade, independentemente das formas de contrato de trabalho.
  • Incentivo à integração entre os diferentes participantes da rede de produção orgânica.
  • Regionalização da produção e do comércio dos produtos.

De acordo com estas premissas, não são utilizados fertilizantes químicos no processo. A fertilização é realizada através dos resíduos vegetais da própria fazenda, através de compostagem. Pode-se caracterizar este processo como recuperação. Se a quantidade de fertilizante orgânico obtida não for suficiente, pode-se importar resíduos animais e vegetais de localidades próximas e compostá-las junto com os resíduos próprios. O processamento dos resíduos externos caracteriza-se como reciclagem.

Compostagem aeróbia – Foto: Alexander Silva de Resende (site Embrapa.br)

Em relação às emissões de gases de efeito estufa, se a fazenda conservar ou aumentar a quantidade de matéria orgânica no solo potencialmente pode ser net zero ou net negative. Ou seja, o empreendimento estaria sequestrando carbono da atmosfera ao invés de emitir.

Uma questão interessante seria a substituição dos equipamentos movidos a óleo diesel por elétricos. Se a geração de energia elétrica for local através de painéis fotovoltaicos, seria ambientalmente ainda melhor.

Como não são usados inseticidas, a existência de insetos polinizadores, como as abelhas, é estimulada. E pragas e doenças podem ser evitadas através da associação de diferentes espécies vegetais. Há aumento de biodiversidade.

O recurso desafiador é o consumo de água. A fazenda pode implantar irrigação por gotejamento para reduzir em até 90% o consumo de água, entretanto ainda seria necessário aporte de água externa através de chuva ou abastecimento, por exemplo, através de um rio.

Se o regime de trabalho na fazenda não for sazonal, pode-se estabelecer relações de trabalho duradouras e justas com possibilidade de participação nos resultados econômicos do empreendimento.

Produtores e consumidores podem estar ligados através do modelo de agricultura apoiada pela Comunidade (CSA – Community-Supported Agriculture). Neste modelo socioeconômico alternativo, a comunidade subscreve a colheita de uma determinada propriedade ou grupo de propriedades agrícolas. A principal vantagem é a partilha dos riscos agrícolas.

Um ponto importante é referente às embalagens. Muitos produtos orgânicos são vendidos em embalagens oriundas de fontes não renováveis como bandejas de isopor, filmes e sacos plásticos. Por uma questão de coerência, seria importante reduzir o volume de embalagens e substituir os materiais por fontes renováveis, recicláveis e biodegradáveis. Neste caso, a sustentabilidade e circularidade dos alimentos orgânicos seriam melhoradas. Esta medida poderia ser regulada pelos Estados que determinariam um prazo para banir embalagens de matérias primas não renováveis ou de reciclagem difícil.

Muito plástico e isopor nas embalagens dos vegetais orgânicos nos supermercados

No próximo artigo desta série sobre circularidade, apresentarei o caso da indústria brasileira do açúcar e etanol e suas contribuições e oportunidades.

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Como Melhorar a Circularidade dos Bens de Consumo Rápido

Uma das áreas de ação da economia circular é formada pelos chamados bens de consumo de movimento rápido (FMCG – Fast-Moving Consumer Good). Dentro desta categoria de produtos não duráveis, podemos listar os alimentos frescos ou congelados (frutas, legumes e castanhas), os alimentos processados, as refeições prontas, as bebidas (águas engarrafadas, refrigerantes, cervejas e sucos), os produtos de panificação, os medicamentos vendidos sem receita médica (aspirina, analgésicos e outros), os produtos de limpeza, os cosméticos e os produtos de higiene pessoal.

A maior parte dos alimentos existentes no mercado atualmente sofrem, pelo menos, alguma forma de processamento. Muitas matérias primas são refinadas e as substâncias removidas tornam-se resíduos. Muitos dos materiais descartados ainda possuem valor nutricional. Em outros casos, o alimento integral apresenta características nutricionais melhores do que o alimento refinado.

Minha proposta tem quatro eixos.

1. Estudar o processo produtivo a fim de reduzir a geração de coprodutos e resíduos

O aumento da eficiência do processo traz benefícios econômicos, sociais e ambientais. A quantidade de matéria prima por unidade de produto produzido é reduzida, diminuindo as emissões de poluentes e resíduos enviados para aterros. Como existe um benefício econômico claro, a empresa pode criar um programa para focar na redução das perdas através de ferramentas como, por exemplo, Six Sigma, Lean Manufacturing e Kaizen. Normalmente esta alternativa apresenta várias ações de curto prazo de fácil execução (os chamados low hanging fruits em inglês) que trazem resultados rápidos para a empresa.

2. Encontrar aplicações para os coprodutos gerados no processo

Muitos resíduos tornam-se efluentes líquidos que exigem, muitas vezes, estações de tratamento caras e complexas. Estes custos devem ser considerados no preço de venda do produto. Se este material for aproveitado pela própria empresa ou comercializado para ser matéria prima de outra indústria, o custo final será reduzido, trazendo benefícios econômicos, sociais e ambientais. Esta alternativa exige desenvolvimento de processo ou, até mesmo, redesenho total do processo produtivo. Um exemplo deste tipo de abordagem é o aproveitamento do soro de leite proveniente da produção de queijo que apresenta uma série de aplicações na indústria de alimentos. Antes do desenvolvimento deste produto, o soro do leite causava poluição hídrica devido à sua alta concentração de matéria orgânica e de nitrogênio. Algumas empresas localizadas em zonas rurais usavam o soro como parte da alimentação de suínos.

Laticínios – leite, queijos e soro (abaixo à esquerda)

3. Criar linhas de produto integrais ou minimamente processados

A melhor alternativa seria colocar no mercado alimentos minimamente processados, onde seria garantido a ausência de patógenos, metais pesados e demais substâncias tóxicas. Estes produtos deveriam ser desenvolvidos desde os produtores de matérias primas até o consumidor final. Assim o desenvolvimento envolve toda a cadeia de valor da empresa. Existem diferentes tipos de leguminosas (feijões, lentilhas e grão de bico) e cereais que podem servir de alimento com mínimo processamento. Este terceiro item da proposta está alinhado com o movimento pelo “clean label” que busca por produtos apenas com ingredientes “reconhecíveis” pelo consumidor. A empresa que buscar este mercado pode viabilizar uma melhor remuneração para pequenos e médios agricultores, prover alimentos nutritivos aos consumidores, com menor impacto ambiental. Por causa do reconhecimento da sociedade, pode operar com margens maiores, trazendo sustentabilidade econômica para si e para toda a cadeia.

Diferentes tipos de feijões, ervilhas, lentilhas e grão-de-bico

4. Minimizar a quantidade de embalagens e facilitar a reciclagem

Os bens de consumo de movimento rápido (FMCG) também são conhecidos como bens de consumo embalados (CPG – consumer packaged goods). As embalagens são fatores muito importantes no processo de produção e, normalmente, são classificadas como primária, secundária e terciária.

A embalagem primária está em contato direto com o produto. Além de protegê-lo, apresenta informações importantes para os consumidores, como data de fabricação / validade, instruções de uso, lista dos ingredientes, dados nutricionais e presença de alergênicos.

Em alguns casos a embalagem primária não apresenta estas informações, sendo necessária uma embalagem secundária, geralmente de papel cartonado. Nestes casos, há aumento no volume de resíduos. Pigmentos coloridos e polímeros podem dificultar a reciclagem do material.

Os sistemas de logística e distribuição geralmente exigem embalagens secundárias e terciárias para maximizar a eficiência de estocagem, transporte e distribuição. Normalmente estas embalagens são de papelão ou filmes plásticos.

Seria fundamental ao projetar a embalagem pensar em dois fatores: facilidade de reciclagem e logística reversa. Embalagens multicamadas, por exemplo, possuem processos de reciclagem mais complexos e custosos.

[Packaging]

Embalagens primárias, secundárias e terciárias

No próximo artigo, aprofundarei esta abordagem no caso dos alimentos orgânicos.

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Quando o Aumento do PIB Empobrece o País?

Muitas pessoas definem o PIB, Produto Interno Bruto, como a soma das riquezas geradas por um país ou região durante um certo período. Esta definição é pobre, porque não considera o consumo do capital natural do país ou região.

Imagine a seguinte situação: uma empresa tinha um estoque de produtos acabados no valor de dez milhões de reais e o saldo de sua conta corrente, incluindo investimentos, era de um milhão de reais em 2022. Neste caso, seu ativo circulante era onze milhões de reais. No ano seguinte, esta empresa reduziu em 50% seu estoque. O faturamento gerado pela venda dos produtos em estoque foi de 5 milhões de reais. Praticamente todo o dinheiro foi usado para a subsistência da empresa. No final do ano, o saldo na conta corrente era dois milhões de reais. Ou seja, os ativos foram reduzidos em quatro milhões de reais. A tabela abaixo, onde todos os valores estão expressos em milhões de reais, explicita esta análise.

Tabela 1 – Evolução do Patrimônio de uma Empresa (valores em milhões de reais)

Fica claro que o patrimônio desta empresa encolheu em 4 milhões de reais em um ano. Se esta empresa mantiver esta tendência, ficará endividada em dois anos.

O economista Thomas Piketty no seu livro “Uma Breve História da Igualdade” apresenta o seguinte exemplo:

“Um país que extraia 100 bilhões de euros de petróleo do seu solo gera um PIB adicional de 100 bilhões de euros. Em contrapartida, a Renda Nacional correspondente é nula, pois o estoque de capital natural foi reduzido na mesma proporção. Se além disso, escolhermos atribuir um valor negativo correspondente ao custo social das emissões de carbono geradas pela combustão do petróleo em questão, então obteremos uma Renda Nacional muito negativa.”

Ou seja, o PIB não considera nem a variação do estoque de capital natural, nem as externalidades negativas geradas pelas atividades econômicas.

Interação entre os Estoques de Capital Natural e a Atividade Econômica – Fonte: Reflections on the Role of Natural Capital for Economic Activity – European Comission, 2023

O Brasil é um país muito relevante em termos de área coberta por florestas e outros ecossistemas naturais, bem como pela produção de alimentos e de fibras para uso industrial.

Fica claro que a exportação de minérios se encaixa na mesma situação do exemplo do país exportador de petróleo apresentado por Piketty. Ou seja, a exportação de minério de ferro deve gerar uma Renda Nacional negativa, devido à redução do capital natural e aos impactos ambientais e sociais negativos.

O caso da exportação de commodities agrícolas é bem mais complexo. O sol é a fonte de energia para a fotossíntese e, consequentemente, para o crescimento vegetal. A energia do sol entra com custo zero no nosso cálculo de capital natural. No caso da água, sais minerais e matéria orgânica do solo, precisaríamos analisar os seus estoques antes e depois de cada safra. Se a área da plantação for oriunda de desmatamento de uma floresta nativa, evidentemente houve uma redução do capital natural.

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) elaborou em 2021 a primeira contabilidade do capital natural do país, como resultado do Projeto NCAVES (Natural Capital Accounting and Valuation of Ecosystem Services) da ONU. O relatório analisou diferentes áreas:

  • Cálculo das dimensões dos Ecossistemas: uso da terra por bioma.
  • Determinação das condições dos corpos hídricos.
  • Serviços dos ecossistemas.
  • Relato de espécies ameaçadas no Brasil.
  • Ativos ambientais individuais e cálculo dos recursos.
  • Aplicações de contabilidade econômica ambiental para obtenção de indicadores.
  • Discussão da combinação dos resultados entre os cálculos das dimensões, determinação das condições, serviços ecossistêmicos, relato das espécies ameaçadas para os seguintes biomas: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pampa e Pantanal.

Com base neste trabalho, se poderá calcular se há geração de riqueza em atividades econômicas importantes para o Brasil como, por exemplo, plantação de milho e soja para ração, ou criação de gado bovino em pastagens, ou plantação de eucaliptos para a produção de celulose. As discussões advindas da análise destes resultados podem gerar novas orientações para a economia do país. Deste modo, a melhoria contínua na qualidade dos dados é essencial para otimizar as tomadas de decisão.

Ecosystem Accounts for Brazil: Report of the NCAVES project | System of Environmental Economic Accountinghttps://seea.un.org/content/ecosystem-accounts-brazil-report-ncaves-project

No caso da agricultura, se o capital natural (água, solo, biodiversidade) está sendo preservado na propriedade, poderia haver redução de impostos e acesso a fontes de financiamento com juros mais baixos.

O próximo artigo apresentará alternativas para aumentar a circularidade dos produtos não duráveis, os chamados bens de consumo de movimento rápido.

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O Bilionário Lixo da Cidade de São Paulo

A população da cidade de São Paulo é de aproximadamente 12,2 milhões de habitantes em uma área de 1.526 Km². A questão do resíduo sólido urbano (RSU) é muito importante e complexa. De acordo com dados oficiais da Prefeitura de São Paulo, em 2019, foram geradas 3,84 milhões de toneladas de RSU. Este montante representa 0,87 Kg / habitante por dia. O custo anual total da operação ficou em torno de R$ 2,265 bilhões (US$ 575 milhões), R$ 589,42 (US$ 150) por tonelada de RSU ou R$ 184,91 (US$ 47) por habitante.

A figura abaixo apresenta de forma esquemática o ciclo da coleta do RSU, transbordo e disposição final em aterros sanitários na cidade de São Paulo.

Ciclo do RSU na cidade de São Paulo: coleta, transbordo e disposição final.

Fonte: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/spregula/residuos_solidos/residuos_solidos/domiciliar/index.php?p=4636 ]

Atualmente a cidade possui três aterros sanitários com captação de biogás em atividade, com início das operações entre 2008 e 2011. Em um destes aterros foi instalado um sistema de geração de eletricidade com capacidade instalada de 29,5 MW para aproveitamento do biogás. Em 2019, a geração estava em torno de 25 MW. Outros dois outros aterros sanitários desativados também possuem captação de biogás e geração de eletricidade de 20 MW em cada aterro.

Existe também um aterro para materiais inertes oriundos da construção civil. Este aterro recebeu 51 mil toneladas de resíduos em 2019, 180 mil toneladas foram enviadas para os aterros sanitários e apenas 33 mil toneladas foram recicladas.

Existe coleta de RSU em 100% dos domicílios da cidade. A coleta seletiva de material reciclável foi de apenas 80 mil toneladas (menos de 3% do total recolhido). Deste total, 40% foram reciclados, 32 mil toneladas. Os principais materiais recuperados foram plásticos (18,5 mil toneladas), papéis (9,2 mil toneladas), metais (1,7 mil toneladas) e outros materiais (2,8 mil toneladas).

O Índice de Recuperação de Resíduos (WRI em inglês) indica qual a proporção do resíduo foi reutilizada, reciclada ou recuperada para geração de energia em relação ao total do resíduo gerado no mesmo período. No caso de São Paulo, este índice é de apenas 0,84%.

A composição média do RSU no Brasil é a seguinte:

  • Matéria orgânica – 45%
  • Plásticos – 17%
  • Papel / papelão – 10%
  • Vidros – 2,7%
  • Metais – 2,3%
  • Outros materiais recicláveis – 7,0%
  • Rejeitos – 14%
  • Outros – < 2,0%

Sem considerar os “rejeitos” (materiais contaminados com matéria orgânica), 39% do total do RSU potencialmente poderia ser reutilizado ou reciclado. Atualmente na cidade de São Paulo, menos de 1% é reciclado. Deste modo, existe um enorme potencial a ser explorado. A criação de renda para catadores poderia ser estimulada e a necessidade de materiais virgens para diversas aplicações seria reduzida.

Para aumentar os índices de reciclagem, a participação da população é essencial. Com uma pequena fração do que é gasto atualmente na gestão do RSU na cidade de São Paulo, poder-se-ia investir na educação e conscientização da população para separar corretamente os resíduos recicláveis. Deste modo, a geração dos “rejeitos” seria reduzida e os materiais recicláveis não perderiam valor. Estas ações deveriam ser iniciadas nas escolas para que crianças e adolescentes liderem estas ações nas suas casas. A participação das ONGs também é muito importante para facilitar a conexão entre a população, catadores e recicladores.

A quantidade reciclada de material inerte da construção civil também poderia ser aumentada, ou, pelo menos, enviada para o aterro de materiais inertes, reduzindo a ocupação dos aterros sanitários.

Outro ponto, seria um melhor aproveitamento do material orgânico. Poderia ser empregado em processos de compostagem aeróbia com geração de fertilizante orgânico para agricultura. Outra forma de compostagem é a produção de larvas da mosca soldado preta (Hermetia illucens) que se alimentam da matéria orgânica, gerando fertilizante estável, e, após serem abatidas e secas, as larvas podem ser usadas como ração para aves e peixes.

O aterro ativo com captação de biogás para geração de energia elétrica processa em torno de 40% do total do RSU de São Paulo. Desde modo, seria possível gerar, pelo menos, mais 60 MW, aproveitando o biogás dos dois outros aterros ativos da cidade.

Usina Termoverde Caieiras – Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br

Outra alternativa seria a instalação de usinas do tipo WtE (Waste-to-Energy ou Resíduo para Energia) para a incineração dos resíduos para geração de eletricidade. Neste caso, se reduziria drasticamente o volume de resíduos a serem dispostos em aterros sanitários, mas haveria necessidade de rigoroso controle das emissões atmosféricas do sistema de incineração.

O próximo artigo será sobre as limitações do PIB (Produto Interno Bruto) em considerar o capital natural e as externalidades negativas geradas pelas atividades econômicas.

Sugestão de escrita diária
Você passa mais tempo pensando no futuro ou no passado? Por quê?

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Cuidado com os Rebotes da Economia Circular!

No início de dezembro, concluí o curso do MIT, Circular Economy: Transition for Future Sustainability. Quando participamos de um curso intenso como este, uma série de reflexões vem à tona e passamos a entender a importância de alguns temas nos quais nunca havíamos pensado a respeito. Hoje comentarei a questão dos efeitos negativos dos rebotes causados pelos aumentos de eficiência e como o Estado pode interferir para reduzi-los.

A economia circular busca o fechamento de ciclos de materiais, a extensão dos ciclos de vida dos produtos e a virtualização de produtos (transformação dos produtos em serviços). Deste modo, o consumo de matérias primas retiradas da natureza é reduzido e os danos ambientais são minimizados.

Diagrama da Economia Circular – Fonte: MIT Professional Education

Por outro lado, os aumentos de eficiência gerados por ações, baseadas nos princípios da economia circular, podem gerar aumento de consumo. Deste modo, os benefícios com a melhoria de eficiência podem ser reduzidos ou, até mesmo, anulados. Por exemplo, lâmpadas de LED consomem muito menos eletricidade em relação às lâmpadas incandescentes. Assim pode haver aumento no consumo de lâmpadas devido à redução do consumo energético específico. Se o aumento do consumo do produto mais eficiente for maior do que a economia pretendida pela medida de eficiência, então esse rebote aumenta o impacto ambiental em vez de reduzi-lo. Chamamos este efeito de rebote energético. Um efeito secundário, rebote indireto, ocorre quando os consumidores gastam o dinheiro economizado em energia em outros bens.

A figura abaixo apresenta de forma esquemática a diferença do consumo de recursos e geração de resíduos, considerando três situações: economia linear, economia circular e economia circular com rebote.

Perda dos Benefícios Economia Circular devido aos Rebotes

O rebote também pode ser direto. Neste caso, há aumento instantâneo da demanda do consumidor pelo mesmo produto ou serviço que teve seu preço reduzido, graças aos aumentos de eficiência.

No final, os aumentos na eficiência da produção ou do consumo são compensados pelo aumento dos níveis de produção e consumo. Os efeitos em toda a economia são imprevisíveis.

Para tornar o cenário mais complexo, existem os chamados efeitos transformacionais que se referem às mudanças nas preferências dos consumidores, avanços na tecnologia ou alterações na regulamentação devido a um aumento na eficiência energética. Por exemplo, energia solar mais barata pode estimular a adoção de novas tecnologias não empregadas anteriormente devido ao alto custo de operação. Neste caso, não houve a simples substituição do consumo de eletricidade de fonte fóssil por uma fonte renovável, houve aumento de consumo devido à redução do custo de energia.

Como evitar que os rebotes acabem com os ganhos da economia circular?

A economia circular não deve ser vista como a solução para as questões ambientais mundiais, mas é uma parte importante desta solução. Como apresentado neste artigo, pela lógica capitalista, os ganhos de eficiência obtidos podem ser convertidos em mais produção e consumo, se nenhuma medida for adotada.

Em primeiríssimo lugar, a mentalidade consumista deve ser substituída por uma consciência ecológica. As pessoas devem ser educadas para consumir o essencial, reduzindo os supérfluos e as compras por impulso.

Informações sobre a pegada ambiental dos produtos deveriam estar disponíveis da mesma forma que temos as informações sobre os ingredientes e valor nutricionais nas embalagens de alimentos. Produtos muito intensivos em energia deveriam ser mais pesadamente taxados do que os produtos mais amigos do meio ambiente. A figura abaixo mostra exemplos já usados em outros locais do mundo.

Um programa para monitorar e incentivar a melhoria da qualidade dos bens duráveis deveria ser implementado. Bens de qualidade inferior possuem vida útil menor, exigindo substituição. E mais recursos materiais e energéticos serão empregados na produção.

O incentivo para o fortalecimento do mercado secundário de equipamentos é outra medida importante. Deste modo, ao invés de adquirir um equipamento novo, o consumidor tem a opção de um equipamento usado, recondicionado e com garantia. Deste modo, a vida útil do equipamento é estendida.

A existência de um mercado secundário pode estimular os fabricantes de equipamentos a migrarem seu modelo de negócios para PaaS (Product as a Service), no qual o consumidor, em vez de comprar o produto, paga o fornecedor pela solução de um problema. Este tipo de serviço já é comum, por exemplo, no caso de softwares (SaaS – Software as a Service) e equipamentos de informática. Algumas empresas do ramo automobilístico também adotam este modelo.

Várias ações podem estimular a circularidade na economia. O mercado por si só não é capaz de estimular ações neste sentido. Desta forma, regulações devem ser introduzidas a fim de estimular a implementação de ações que favoreçam a circularidade dos processos. O papel do Estado é muito importante.

O investimento em tecnologia é fundamental para o desenvolvimento de novas soluções para os processos produtivos atuais. Pode-se citar algumas áreas de pesquisa:

  • busca de matérias primas renováveis para a produção de polímeros oriundo do petróleo;
  • desenvolvimento de processos mais eficientes e menos intensivos em energia;
  • desenvolvimento de design que favoreça as etapas de reuso, recuperação e reciclagem;
  • busca de alternativas para reduzir o conteúdo de matérias primas virgens para a fabricação de novos produtos.

Nos países em desenvolvimento, um elo fundamental para a economia circular são os catadores de produtos recicláveis como latas de alumínio, papéis e plásticos. A melhoria na remuneração e nas condições de trabalho pode ajudar a aumentar o volume de matérias primas recuperadas.

Outro ponto é a proibição de produtos de uso único de difícil reciclagem como, por exemplo, canudos, copos e pratos descartáveis.

Também pode-se aumentar a competitividade dos produtos reciclados através da redução dos seus impostos ou do aumento dos impostos sobre as matérias primas virgens (internalização das externalidades).

O Estado também pode taxar com alíquotas mais altas os produtos com maior impacto ambiental, desestimulando seu consumo. Da mesma forma, pode reduzir os impostos de produtos com maior durabilidade, além de estimular o mercado secundário de matérias primas. Assim o efeito dos rebotes podem ser minimizados.

Este foi o primeiro artigo desta série sobre economia circular. Na sequência, vou apresentar o caso bilionário do lixo da cidade de São Paulo. E outros artigos virão em seguida. Espero contribuir com boas reflexões para a construção de um mundo mais sustentável para as próximas gerações.

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A Revolta de Atlas – Ragnar Dannesjöld, Sonegação e Meritocracia

Chegamos ao terceiro artigo sobre o livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Hoje o assunto será o discurso do “pirata” Ragnar Danneskjöld sobre impostos e meritocracia.

Ragnar Danneskjöld atua como um pirata que ataca os navios que transportam doações dos governos dos países ricos para países pobres. Segundo ele, estes bens são roubados dos produtores ricos pelos governos corruptos, através dos impostos. O resultado das pilhagens é vendido no mercado negro da Europa pelo maior preço possível e o ouro, oriundo destas operações, é depositado em contas secretas em nome de empresários, com base no imposto de renda pago por eles.

O navio do “pirata” não ataca embarcações privadas ou Marinha de Guerra dos países. Ele segue a lógica ultraliberal que apenas a segurança, interna e externa, é função do Estado e nada mais.

Danneskjöld odeia a figura Robin Hood que, segundo ele, é o símbolo da moralidade invertida que domina o mundo. Transcrevo o trecho abaixo, no qual Ayn Rand explicita, através de seu personagem, a sua forma de ver o mundo, usando a figura de Robin Hood como contraexemplo do seu pensamento.

“Diz-se que ele lutava contra governantes saqueadores e restituía às vítimas o que lhes fora saqueado, mas não é esse o significado da lenda que se criou. Ele é lembrado não como um defensor da propriedade, e sim como um defensor da necessidade; não como um defensor dos roubados, e sim como protetor dos pobres. Ele é tido como o primeiro homem que assumiu ares de virtude por fazer caridade com dinheiro que não era seu, por distribuir bens que não produzira, por fazer com que terceiros pagassem pelo luxo de sua piedade. Ele é o homem que se tornou símbolo da ideia de que a necessidade, não a realização, é a fonte dos direitos; que não temos que produzir, mas apenas de querer; que o que é merecido não cabe a nós, e sim o imerecido. Ele se tornou uma justificativa para todo medíocre que, incapaz de ganhar seu próprio sustento, exige o poder de despojar de suas propriedades os que são superiores a ele, proclamando sua intenção de dedicar a vida a seus inferiores roubando seus superiores.”

Ou seja, para Ayn Rand, os verdadeiros heróis são os ricos produtivos, porque criam valor para a sociedade com sua competência e seu trabalho. Os pobres, que não ganham o suficiente para seu sustento, são incompetentes e parasitas, porque se aproveitam da riqueza “roubada” dos ricos para sobreviver. Esta visão de mundo, nua e crua, é a defesa extrema da meritocracia social, na qual condena-se qualquer forma de redistribuição de renda ou altruísmo.

Eu concordo que as pessoas devam ser recompensadas de acordo com o resultado de suas atividades produtivas e com a capacidade de gerarem valor. Por outro lado, não podemos desprezar que existe uma parcela pequena da população que já larga muito à frente da maioria em termos de educação. Imagine agora um país que siga 100% a ideologia de Ayn Rand, capitalismo liberal laissez-faire. Neste lugar, o Estado não recolheria mais a maior parte dos impostos pagos pelos produtores ricos e os pobres teriam que custear, além de suas despesas básicas (alimentação, habitação, transporte e vestuário), saúde e educação. Como qualquer forma de altruísmo é condenável, quem não tivesse meios de subsistência estaria entregue à própria sorte. E se hoje já é muito difícil a ascensão social dos mais pobres, neste país seria praticamente impossível.

O curioso é que a autora parece desconhecer que uma ação social iniciada no governo do Presidente Roosevelt em 1944, o programa G.I. Bill, teve um enorme impacto econômico positivo nos Estados Unidos. O período de validade do programa, 1944-1956, é quase o mesmo em que Ayn Rand escreve “A Revolta de Atlas”, 1946-1956.

Presidente Roosevelt assinou a Lei do Programa G.I. Bill em 1944.

O programa G.I. Bill foi uma iniciativa do governo norte-americano para oferecer benefícios educacionais aos veteranos que serviram nas forças armadas durante a Segunda Guerra Mundial. Milhões de soldados americanos cursaram o ensino superior, técnico ou profissional, com custos subsidiados pelo governo. Este programa G.I. Bill foi considerado um dos maiores investimentos públicos em capital humano da história, e teve um impacto significativo na economia, na sociedade e na cultura dos Estados Unidos no pós-guerra. Infelizmente devido às leis de segregação racial vigentes nos estados sulistas norte-americanos, os negros não tiveram as mesmas benesses dos brancos. Assim a distância econômica e social entre brancos e negros aumentou naquele país.

Além de tentar destruir o mito de Robin Hood, Danneskjöld também defendia a sonegação de impostos. Por todos os motivos já expostos, ele considerava os impostos uma forma de roubo praticada pelo Estado. Ele resume sua missão no primeiro encontro com o industrial Hank Rearden assim:

“Bem, eu sou o homem que rouba dos pobres e dá para os ricos, ou, mais exatamente, que rouba dos pobres ladrões e devolve aos ricos produtivos.”

Se Danneskjöld e Ayn Rand conhecessem o sistema tributário brasileiro, talvez ficassem felizes ao descobrir que os mais pobres pagam mais impostos do que os mais ricos. O peso dos impostos sobre bens e serviços no Brasil é bem mais alto do que nos países da OCDE (42% do total arrecadado contra média de 32% em 2020), onerando os mais pobres. Mesmo no imposto de renda, os super-ricos pagam alíquota média menor do que os brasileiros da classe média, porque dividendos não são tributados no Brasil. Veja o gráfico abaixo do Portal G1 com dados de 2020 sobre alíquotas médias de imposto de renda por faixa de rendimento.

Diferentemente do discurso sobre dinheiro de Francisco D’Anconia, no qual eu concordo com a essência do seu conteúdo, considero o discurso de Ragnar Danneskjöld absurdo. Como procurei demonstrar neste artigo, mesmo os Estados Unidos na década de 1950 não seguiam este capitalismo ultraliberal. Se aplicássemos os postulados de Danneskjöld, não seria imoral juntar uma fortuna nababesca, enquanto milhares morrem de fome e doenças na mesma cidade.

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A Revolta de Atlas – Francisco D’Anconia e o Dinheiro

Como anunciei no artigo inaugural sobre a “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand, eu faria novas postagens sobre este livro. Resolvi iniciar por uma das minhas passagens favoritas, o discurso de Francisco D’Anconia sobre o dinheiro.

Francisco D’Anconia é um dos personagens principais do livro. Ele é o herdeiro de uma das maiores fortunas do mundo e é um empresário bem-sucedido que administra a empresa de mineração de cobre de sua família. Durante a festa de aniversário de casamento de outro personagem, o industrial Hank Rearden, ao ouvir alguns convidados falando mal do dinheiro, D’Anconia faz um discurso a favor.

Antes de entrar no discurso em si, gostaria de comentar as três funções do dinheiro: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. O dinheiro é usado como meio de troca para facilitar a compra e venda entre pessoas e empresas. Nos primórdios, o comércio era realizado através de escambo. Imagina como algumas transações eram complexas… O dinheiro é usado também como reserva de valor, permitindo que as pessoas e empresas economizem e guardem valor ao longo do tempo. Com esta reserva, pode-se realizar investimentos, como adquirir bens e serviços de valor mais elevado. O dinheiro também é usado como unidade de conta para facilitar a comparação de preços e valores. Assim, pode-se calcular o custo total de um produto para determinar seu preço mínimo de venda ou saber qual o custo de vida mensal de uma família.

D’Anconia afirma que o dinheiro é o meio de troca universal que permite que as pessoas possam realizar suas trocas de bens e serviços de maneira mais eficiente e produtiva. Esta primeira função do dinheiro é apresentada em detalhes e como a oferta e procura determinam os valores dos bens materiais e serviços. Como o dinheiro vale o mesmo na mão de cada indivíduo, sem intervenções dos governos, ele torna-se um símbolo da liberdade humana. Todas as transações são guiadas pelo livre-arbítrio. Deste modo, o dinheiro é apenas um instrumento, não é o mal em si mesmo. O verdadeiro problema são a forma e o propósito como as pessoas utilizam o dinheiro para obter poder e controle sobre outras pessoas.

D’Anconia enfatiza que a única forma de alcançar a verdadeira liberdade e prosperidade é através da produção e do comércio honestos, baseados em valores objetivos e não em manipulações políticas. Ele conclui seu discurso afirmando que deseja que as pessoas percebam que o dinheiro é um fator essencial na conquista da felicidade e da realização pessoal.

Concordo com esta linha de ver o dinheiro apenas como um meio ou instrumento. Realmente existe influência de algumas religiões e linhas de pensamento de esquerda que consideram o dinheiro como algo sujo ou impuro. Esta crença prejudica sensivelmente as vidas de muitas pessoas que, muitas vezes, se sentem culpadas ao receber dinheiro como justa contrapartida à venda de um produto ou serviço. Sentem culpa pela própria prosperidade.

O dinheiro é o sangue do tecido social. Ele é necessário para a economia funcionar, permitindo que as pessoas adquiram bens e serviços, invistam em empresas e poupem para o futuro. Na ausência de dinheiro, as relações sociais seriam significativamente afetadas, com impactos negativos na qualidade de vida das pessoas. Por isso, é fundamental garantir acesso igualitário ao dinheiro e promover sua circulação saudável na sociedade.

Por outro lado, Ayn Rand, através de seu personagem, tem uma visão utópica, pois não dá o devido peso às imperfeições do mercado com seus cartéis, lobbies e assimetria de informações, para a prática de produção e comércio honestos. Sem dúvida, estas imperfeições desequilibram a balança para o lado dos que possuem poder econômico ou político.

A seguir transcrevo uma parte muito interessante do discurso de D’Anconia.

“O dinheiro se baseia no axioma de que todo homem é proprietário de sua mente e de seu trabalho. O dinheiro não permite que nenhum poder prescreva o valor do seu trabalho, senão a escolha voluntária do homem que está disposto a trocar com você o valor do trabalho dele. O dinheiro permite que você obtenha em troca dos seus produtos e do seu trabalho aquilo que esses produtos e esse trabalho valem para os homens que os adquirem, nada mais que isso. O dinheiro só permite os negócios em que há benefício mútuo segundo o juízo das partes voluntárias. O dinheiro exige o reconhecimento de que os homens precisam trabalhar em benefício próprio, não em detrimento de si próprios. Para lucrar, não para perder. De que os homens não são bestas de carga, que não nascem para arcar com o ônus da miséria. De que lhes é preciso oferecer valores, não dores. De que o vínculo comum entre os homens não é a troca de sofrimentos, mas a troca de bens.”

Esta passagem defende o capitalismo consciente, onde se busca um equilíbrio entre as relações, um ganha-ganha, no qual o lado mais forte não explora ou deprecia o trabalho do lado mais fraco. O Liberalismo de Ayn Rand possui um fundo moral, onde a riqueza é obtida de forma ética, sem exploração dos funcionários das empresas.

Pilares do Capitalismo Consciente

“A riqueza é produto da capacidade humana de pensar.”

No tempo de Ayn Rand, o capitalismo financeiro não era tão importante. Ela não aprovaria o dinheiro oriundo de mera especulação financeira. A riqueza deveria ser a expressão da capacidade humana de pensar e agir na agricultura, na indústria ou nos serviços.

Neste contexto, “só o homem que não precisa da fortuna herdada merece herdá-la – aquele que faria sua fortuna de qualquer modo, mesmo sem herança”. Novamente Ayn Rand liga o dinheiro ao devido merecimento que é um fator importante para a felicidade e realização pessoal.

Destaco a parte final da música Money do Pink Floyd:

Money, it’s a crime
Share it fairly but don’t take a slice of my pie.
Money, so they say
Is the root of all evil today
But if you ask for a raise it’s no surprise that they’re
Giving none away

Acredito que o dinheiro em si não é a “raiz de todo o mal hoje”, mas sim a ambição cega por dinheiro e poder.

Nas próximas semanas, comentarei os discursos de outros personagens do livro “A Revolta de Atlas”.

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Introduzindo “A Revolta de Atlas” de Ayn Rand e Por Que os Conservadores Brasileiros Não Exaltam Sua Autora?

Enfim terminei a leitura das mais de 1.200 páginas do livro “A Revolta de Atlas” (Atlas Shrugged) de Ayn Rand. Este livro foi a última obra de ficção desta autora que após sua publicação passou a escrever livros apenas para divulgar sua própria filosofia, o Objetivismo. Ela iniciou a redação em 1946 e concluiu dez anos depois. Conta-se que ela demorou dois anos somente para finalizar o discurso de John Galt que apresenta as bases do Objetivismo. A primeira edição foi publicada nos Estados Unidos em outubro de 1957.

Este é o primeiro artigo de uma nova série que publicarei no blog. Diferentemente da série sobre o livro “As Seis Lições” de Ludwig Von Mises, iniciarei com algumas considerações sobre Ayn Rand e as razões que a impedem de ser popular entre os conservadores brasileiros.

Ayn Rand nasceu na Rússia em 1905, antes da Revolução Bolchevique, cresceu sob o regime comunista soviético, viajou ainda jovem para visitar parentes nos Estados Unidos e nunca mais voltou para seu país de origem. Sua filosofia privilegia o individualismo, o egoísmo e a razão em detrimento dos sentimentos. Ela considera o altruísmo definitivamente um mal.

Ayn Rand

Deste modo, ela tornou-se um ícone do Liberalismo clássico, defendendo o Estado mínimo que teria como função somente e tão somente a segurança (interna e externa do país) e a Justiça. E tudo mais seria realizado pela iniciativa privada. Ou seja, não é função do Estado cuidar, por exemplo, de educação, saúde, assistência social, saneamento básico e infraestrutura básica. O sucesso dos indivíduos, obtido através de um competente esforço egoísta, traria prosperidade para toda sociedade. Os Estados Unidos seriam o melhor exemplo deste modelo. Como podemos perceber suas ideias estão muito bem alinhadas aos pensamentos do economista liberal austríaco Ludwig Von Mises.

Rand escreveu seu livro para defender seus pontos de vista e o Objetivismo. Na reta final do livro, há o longo discurso de 70 páginas do personagem principal, John Galt, sobre o racionalismo, egoísmo e toda a filosofia. Além deste extenso texto, em outras passagens personagens abordam inúmeras questões sensíveis: Francisco d’Anconia fala sobre o dinheiro; o “pirata” Ragnar Danneskjöld define-se como um anti-Robin Hood e defende a meritocracia; Ellis Wyatt defende a riqueza. Analisarei estes discursos nos próximos artigos.

O livro trata da reação de empresários, cientistas e artistas que desaparecem em um ambiente de intervenção estatal crescente nos Estados Unidos do futuro. Está divido em três partes com dez capítulos cada. Em alguns capítulos a história prende e a leitura é fluida; em outras, a leitura é maçante. Existem repetições exaustivas de algumas situações, como se a autora quisesse gravar em nossas mentes sua concepção de mundo. Seguramente poderia haver um bom enxugamento no conteúdo do livro.

Pode-se afirmar que o livro possui quatro personagens principais: três masculinas – John Galt, Francisco d’Anconia e Hank Rearden) – e uma feminina, Dagny Taggart. Dagny era a vice-presidente de operações (hoje chamaríamos COO) da ferrovia Taggart Transcontinental. Ela era uma mulher independente, competente, ética e determinada. Incrivelmente Dagny teve relacionamentos amorosos com os três personagens principais masculinos. Desconfio que Dagny seja alter ego de Ayn Rand…

Em meados da década de 1950, Rand teve um caso amoroso com o psicanalista Nathaniel Branden, vinte e cinco anos mais jovem do que ela. Segundo algumas informações, seus cônjuges tinham conhecimento do fato. Ou seja, Ayn Rand não se encaixa no padrão princesa que se casa com o príncipe encantado para formar uma “família tradicional”.

Ayn Rand e seu marido no casamento de Nathaniel Branden (Fonte: The New York Times)

Além disso, ela era ateia, considerava que havia apenas uma vida. Deste modo, considerava que havia apenas esta vida para o homem buscar seu “maior propósito moral”: alcançar sua própria felicidade.

Também era contra a proibição do aborto por restringir a opção das mulheres e a busca pela felicidade. O embrião não teria direitos inicialmente, o direito à vida só iniciaria a partir do nascimento. E era favorável a descriminalização das drogas por defender o direito de escolha dos indivíduos.

Sua visão sobre as religiões era extremamente negativa. Dizia que os “místicos do espírito” (religiosos) pedem que o sofrimento presente seja suportado para receber a compensação em outra dimensão. Defendia a completa separação entre Estado e religião. Para exemplificar a coerência de suas posições, Rand se recusou a votar no liberal Ronald Reagan para presidente dos Estados Unidos, na década de 1980, devido a sua posição antiaborto e a favor da religião.

Ex-Presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan

No livro, durante o longo discurso de John Galt, há uma passagem sobre a não-violência que transcrevo abaixo.

“Tudo está aberto à discordância, menos um ato mau, o ato que homem nenhum pode cometer contra os outros, aprovar nem perdoar. Enquanto os homens quiserem viver em comunidade, nenhum homem pode tomar a iniciativa – estão me ouvindo? –, nenhum homem pode tomar a iniciativa de usar a força física contra os outros.

Interpor a ameaça da destruição física entre o homem e sua percepção da realidade é negar e paralisar seu meio de sobrevivência. Forçá-lo a agir contra seu discernimento é como forçá-lo a agir contra sua própria visão. Todo aquele que, com qualquer objetivo e em qualquer grau, tome a iniciativa de lançar mão da força, é um assassino que parte da premissa da morte, mais ainda do que o assassino propriamente dito: a premissa de destruir a capacidade de viver do homem.

Não venham me dizer que sua mente os convenceu de que vocês têm o direito de forçar minha mente A força e a mente são coisas opostas. A moralidade termina onde começa a força da arma”.

Sem dúvida, além da violência física, todas as formas de coação, chantagem e assédios são condenadas.

Assim fica difícil para os conservadores brasileiros exaltarem Ayn Rand, porque ela era uma mulher defensora da liberação sexual, a favor do aborto, antirreligiosa, a favor da descriminalização das drogas e defensora ampla da não-violência.

Outro ponto é a separação entre o público e o privado. Nas páginas da “Revolta de Atlas”, existem inúmeros casos de empresários que buscam privilégios através de suas relações com o Governo. Este tipo de conluio é execrado por Rand. Em um Estado mínimo, as empresas deveriam vencer a competição no mercado exclusivamente através de seus próprios méritos, sem ajudas ou reservas de mercado. Nós sabemos como muitos empresários brasileiros atuam com lobbies no Executivo e no Legislativo para favorecer seus negócios, restringindo a livre concorrência, são os falsos liberais.

Nos próximos artigos, abordarei outros pontos como as mensagens subliminares do livro, o Objetivismo, o egoísmo ético e o Liberalismo Laissez-faire de Rand.

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Ludwig Von Mises e seu Liberalismo Cadillac Eldorado – Lições 5 e 6

Hoje encerraremos nossa jornada pelo livro “As Seis Lições” (Economic Policy: Thoughts for Today and Tomorrow) baseado em seis palestras de Ludwig Von Mises ministradas em Buenos Aires em 1959.

Nos dois artigos anteriores, apresentei as quatro primeiras lições sobre o capitalismo, o socialismo, o intervencionismo e a inflação. Hoje apresentarei as duas últimas lições que tratam sobre o investimento estrangeiro e política & ideias.

Encerrarei com um comentário com minha impressão geral sobre a visão de Ludwig von Mises e a aplicabilidade de seus pensamentos no mundo atual.

Quinta Lição – O Investimento Estrangeiro

Mises reconhece as diferenças expressivas nas remunerações dos trabalhadores ao redor do mundo. Nos países mais desenvolvidos, os trabalhadores recebem maiores salários devido às condições mais favoráveis dos seus países em termos de tecnologia de produção. Ele deixa claro que isto não quer dizer que os trabalhadores e empresários de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento sejam inferiores aos dos países desenvolvidos, porque um trabalhador que utiliza ferramentas mais modernas produzirá mais do que outro que emprega ferramentas obsoletas. Deste modo, o custo adicionado pelo trabalho por unidade de produto será menor nos países desenvolvidos, graças às tecnologias mais eficientes e a maior produtividade. A origem desta diferenciação está na acumulação de capitais que permitem maiores investimentos em equipamentos mais modernos e eficientes, gerando um ciclo virtuoso.

Como a Grã-Bretanha foi pioneira na formação de poupança interna, o processo de desenvolvimento ocorreu inicialmente neste país. No século XIX, capitalistas da Grã-Bretanha iniciam investimentos externos, principalmente, em países da Europa continental e nos Estados Unidos, em áreas como gás e ferrovias. Este processo acelerou a transferência de tecnologia para estes países que também se capitalizaram e se desenvolveram economicamente,

Mises defende com veemência os investimentos como mecanismos de desenvolvimento de países mais atrasados economicamente e na construção de importantes obras ao redor do mundo.

Certamente sem estes investimentos, os países mais pobres estariam condenados a permanecerem eternamente nesta condição. Por outro lado, sempre é importante verificar quais concessões foram aceitas pelos governos locais para receber estes investimentos.

Mises citou que, na segunda metade do século XIX, não havia risco de expropriação de investimentos estrangeiros, mas, progressivamente, a ameaça começou a crescer, em especial, nos países em desenvolvimento. Em alguns casos, ocorreu uma “expropriação indireta”, através de empecilhos para investimentos e discriminação tributária, levando os capitalistas estrangeiros a liquidarem seus negócios no país.

Considero importante verificar se na origem do investimento estrangeiro não houve um favorecimento exagerado em relação aos capitalistas locais. Neste caso, a simples equiparação tributária ou legal poderia ser encarada como hostilidade devido à perda dos privilégios.

Mises apresenta o exemplo da elevada carga tributária americana no final da década de 50 que taxava o lucro da empresa e os dividendos distribuídos aos acionistas. Curiosamente, os dividendos são isentos de tributação no Brasil. A lógica de Mises é que se o lucro fosse menos tributado, aumentaria a poupança interna e estimularia novos investimentos. Vejo que, no caso brasileiro, poder-se-ia reduzir a tributação dos lucros das empresas e passar a tributar os dividendos, evitando perda de arrecadação e estimulando as empresas a reinvestirem seus lucros.

Mises sugere que, para evitar ingerências dos governos dos países, com alteração em regras, o melhor seria retirar os investimentos estrangeiros da jurisdição nacional. Neste caso, um órgão internacional, como a ONU (duramente criticada por Mises), teria esta incumbência. Eu vejo este ponto como uma surpreendente convergência com as ideias atuais de Yuval Harari que sugere que uma série de questões transfronteriças sejam tratadas por organismos internacionais (Globalismo). Evidentemente, entramos em uma discussão sobre a perda da soberania nacional.

Mises enfatiza que a acumulação de capital é o principal fator que diferencia os países em desenvolvimento de países desenvolvidos, como os Estados Unidos. E a única forma das camadas populares sentirem confiança no sistema econômico para criar poupança é através da estabilidade da moeda. Ou seja, a inflação é absolutamente inadmissível.

A industrialização, segundo Mises, é a condição essencial para o desenvolvimento do país, o que só é possível através da acumulação e investimento em capitais. Medidas como controle de câmbio (que impedem importações), piso salarial e protecionismo não ajudam a desenvolver o país. O sindicalismo também não ajuda a criar riqueza, apenas desemprego duradouro.

Concordo com Mises que o investimento de capital per capita é a chave para o desenvolvimento do país. Por outro lado, sua visão em relação ao sindicalismo, parte do princípio de que os capitalistas não maximizarão seus lucros através do arrocho salarial. Se os salários reais não aumentarem, não há possibilidade de desenvolver o país. Sempre lembrando de que a poupança acumulada pelos capitalistas atualmente pode ser investida maciçamente no mercado financeiro ao invés de atividades produtivas.

Mises conclui esta quinta lição, comentando que, como há restrições à migração de pessoas, a saída para melhorar o padrão de vida dos países mais pobres é a migração de capitais. Ainda afirma que não existem atalhos, apesar de lenta, esta é a única forma de atingir este equilíbrio.

Eu concluo com a constatação que hoje a distância entre ricos e pobres aumenta na maioria dos países. Indicadores como PIB e renda per capita não refletem a melhoria da condição de vida dos mais pobres em cada país. A questão não será resolvida através do livre mercado, mas através da atuação responsável do Estado nas áreas de educação, saúde e assistência social. Não podemos esperar indefinidamente pelo equilíbrio entre os países e pela redução das desigualdades. Como disse Keynes, “a longo prazo, todos estaremos mortos”.

John Maynard Keynes

Sexta Lição – Política e Ideias

Mises coloca que até o princípio do século XIX, a política buscava discutir os grandes problemas do país. Assim as pessoas se organizavam em partidos de acordo com suas afinidades ideológicas e visão de mundo. As discussões buscavam convencer outros grupos a seguirem determinada linha de pensamento. Assim, Mises apoia sua visão de não-intervenção do governo na economia no pressuposto de que todos os cidadãos tivessem como objetivo político o bem-estar de toda nação.

A visão de Mises, no final da década de 50 do século XX, é que os partidos políticos clássicos foram substituídos por grupos de pressão. No caso dos Estados Unidos, representantes de determinados grupos (por exemplo agronegócio, petróleo, mineração) podiam estar tanto no Partido Democrata, quanto Republicanos. Para viabilizar sua ação, cada grupo se alia a outros grupos para garantir a aprovação de sua pauta. Deste modo, os interesses do país não relegados a um segundo plano. Mises enxerga esta ação, conhecida atualmente como lobby, como nefasta para a democracia e um dos principais motivos do intervencionismo governamental na economia. Assim elevam-se os gastos públicos, sem o crescimento correspondente da arrecadação pela dificuldade da criação de novos impostos.

Mises também critica a postura do representante de um distrito eleitoral de pautar sua ação apenas nas necessidades do seu distrito, sem considerar o impacto na situação do país como um todo.

Eu concordo com vários pontos desta explicação de Mises sobre a democracia representativa. O principal problema é que esta análise prova que o laissez-faire absoluto, transforma o poderio econômico no absolutismo francês dos séculos XVII e XVIII.

“L’État c’est moi” (O Estado sou eu)

Luís XIV, rei da França de 1643 a 1715

No Brasil atual, grupos de pressão com interesses aparentemente desconexos, como agronegócio, segurança pública e conservadores em relação aos costumes (principalmente evangélicos), apoiam-se mutuamente nas votações para terem seus interesses específicos aprovados no Congressos Nacional. Assim se criou a bancada suprapartidária BBB (boi, bala e Bíblia) com membros de vários partidos diferentes.

Deste modo, grupos com pouco peso econômico não conseguem representação expressiva e ficam alijados da política nacional. Por este motivo, defendo financiamento 100% público das campanhas eleitorais.

Mises defende a liberdade e é abertamente contrário à ditadura. Deste modo, a ditadura não é uma alternativa para os problemas da democracia.

Mises descreve que o intervencionismo e a inflação foram as causas da decadência do Império Romano. Muitos historiadores apresentam que a crise foi inicialmente causada pela redução no número de escravos, com a consequente redução da disponibilidade de mão de obra para a produção de alimentos. Assim os preços dos alimentos subiram e houve tabelamento dos preços máximos. Ou seja, a intervenção do governo romano foi na consequência ao invés de incentivar o aumento da produção de alimentos por homens livres. Quando iniciou o êxodo urbano, houve queda na arrecadação de impostos, com a consequente diminuição do poderio do exército romano.

“Tudo o que ocorre na sociedade de nossos dias é fruto de ideias, sejam elas boas, sejam elas más. Faz-se necessário combater as más ideias. Devemos lutar contra tudo o que não é bom na vida pública.”

Ludwig von Mises

Mises afirma que se deve lutar principalmente contra confiscos de propriedade, controle de preços e inflação.

Cadillac Eldorado 1959

Comentários Finais

Mises era, acima de tudo, um defensor das liberdades individuais. Podemos defini-lo como um libertário. Deste modo, defende a liberdade cultural e a menor interferência possível do Estado sobre o cidadão. Por um lado, esta postura é elogiável, entretanto pode levar a duas consequências que considero indesejáveis:

– o Estado mínimo que não garante educação e saúde aos mais pobres;

– a exacerbação do individualismo.

Neste segundo caso, o “direito de ser tolo” (defendido por Mises) esbarra no direito da comunidade. Em tempos de pandemia, se várias pessoas optarem tolamente por não se vacinar, o vírus poderá sofrer mutações e reduzir a eficiência das vacinas, prejudicando toda a população. Ou seja, neste caso, o “direito de ser tolo” não pode ser permitido.

Ao longo da leitura dos três artigos sobre o livro “As Seis Lições”, pode-se ver que concordei com uma série de pontos apresentados por Mises, por exemplo, sobre as causas inflação, o fracasso do tabelamento de preços e a importância dos investimentos estrangeiros.

Também impressiona a análise de Mises, há sessenta anos, sobre os danos causados pelos lobbies na democracia representativa. A descrição é muito atual. Ele não apresenta respostas de como reverter este mal, mas descarta qualquer forma de ditadura como solução. Lamentavelmente, esta não é a posturas de muitos “liberais” brasileiros que flertam com o autoritarismo.

Afinal por que comparei o liberalismo econômico de Mises a um Cadillac Eldorado 1959 (ano das seis palestras na Argentina)?

Em 1959, a indústria era a mola propulsora do capitalismo. Assim alguns pressupostos ingênuos de Mises baseados em conceitos de microeconomia e desregulação do mercado podiam parecer atuais como um flamejante Cadillac Eldorado em 1959.

Hoje com o crescimento descomunal da especulação, devido à desregulação do mercado financeiro, trocamos o capitalismo industrial pelo capitalismo financeiro. Eu diria que, se um Cadillac Eldorado 1959 se deslocasse por uma rua movimentada de alguma metrópole, muito admirariam o carro, mas a maioria entenderia que o tempo daquele automóvel já passou. Ele virou uma peça de museu. Assim é o liberalismo de Mises que não aceita que o Estado deve apoiar os mais pobres. Não coloca como as principais funções do Estado, além da segurança interna e externa, a educação e a saúde. Um liberalismo que deixa os pobres à própria sorte e os responsabiliza pelas dificuldades na vida. Acredita que algum dia, talvez através da “mão invisível” de Adam Smith, tudo melhore apenas pela ação dos capitalistas, sem qualquer ação estatal para tentar reduzir o abismo que separa ricos e pobres.

Ou seja, se a ideia de Mises der errado, perderemos décadas. Prefiro que o Estado invista em educação e saúde para os mais pobres e atue na geração de empregos e distribuição de renda. Se estas ações não funcionarem, ao menos ficará um legado de melhor educação e saúde para o povo.

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Ludwig Von Mises e seu Liberalismo Cadillac Eldorado – Lições 3 e 4

Continuamos com nosso passeio pelo livro “As Seis Lições” (Economic Policy: Thoughts for Today and Tomorrow) baseado em seis palestras de Ludwig Von Mises ministradas em Buenos Aires em 1959.

No primeiro artigo, apresentei as duas primeiras lições sobre o capitalismo e o socialismo. Hoje apresentarei a terceira e a quarta lições sobre intervencionismo e a inflação.

Terceira Lição – O Intervencionismo

Mises considera que as únicas funções do Estado, em uma economia de livre mercado, são a segurança interna e a defesa de agressões externas. As demais funções seriam da iniciativa privada.

Também considera que, no momento em estas palestras foram proferidas, não existiam livres mercados e sim “economias mistas”. Uma das razões desta constatação é a existência de empresas estatais. Mises considera a questão do tratamento do déficit como fundamental para comparar uma empresa administrada pelo Estado de outra administrada pela iniciativa privada. No caso da estatal, o governo pode suportar o déficit através da tributação da sociedade. Se o aumento da carga tributária não for suficiente, pode haver, inclusive, inflação. No caso da iniciativa privada, esta situação não pode perdurar por muito tempo sob pena do encerramento das atividades da empresa deficitária. Mises não considera, nesta proposição, as empresas de interesse social.

Mises define o intervencionismo como qualquer atividade que o Estado executa fora das atividades relacionadas à segurança interna e externa. Um dos exemplos apresentados foi o tabelamento de preços. Na sequência, ele explica, de maneira muito lógica e didática, as razões que levam ao fracasso todas as tentativas dos governos de tabelar preço. Inevitavelmente, esta prática leva ao aumento do consumo e à diminuição da oferta do item com preço tabelado. A oferta diminui pela redução do lucro ou, até mesmo, a existência de prejuízos auferidos pelos produtores. Assim os governos podem estabelecer racionamento deste produto ou tabelar os preços dos insumos deste produto, afetando toda a cadeia produtiva. O problema maior desta explicação de Mises é a ausência de uma solução que permita que os mais pobres tenham acesso ao leite (exemplo apresentado por Mises no livro). Esta é uma lógica perversa onde o mercado só oferece produtos de primeira necessidade aos que podem pagar e o Estado não deve interferir, buscando melhorar o acesso destes itens às camadas mais pobres da população.

Mises argumenta que, devido ao fracasso do tabelamento de preço de uma área específica, o governo passaria a controlar todos os preços, os reajustes de salário e as taxas de juros. Assim, o país caminharia para o socialismo. O mais interessante é que, no período do regime militar no Brasil, havia o Conselho Interministerial de Preços (CIP) que tabelava o preço de vários itens como eletricidade e combustíveis. Além disso, o câmbio era fixo, os juros eram controlados e havia monopólios estatais em áreas como energia elétrica, petróleo e telecomunicações. Ou seja, segundo a definição de Mises, o governo militar brasileiro era socialista. Pelos mesmos motivos, ele define a Alemanha de Hitler como socialista. Mises também parece não entender a diferença da administração de um país em um tempo de paz ou em um tempo de guerra, onde o governo precisa definir o que deve ser produzido para suportar os esforços de guerra.

Ele também critica o controle dos aluguéis residenciais, comentando que este expediente desincentiva famílias a mudarem para casas menores após a saída dos filhos mais velhos e desestimulam a construção de novas moradias.

Mises não acredita na viabilidade de uma terceira via, entre o capitalismo e o socialismo. Qualquer tentativa, levaria inevitavelmente ao socialismo. Ou seja, qualquer espécie de controle do governo para evitar a formação de cartéis, trustes e monopólios privados seriam práticas socialistas. A economia deveria seguir solta sem interferência dos governos. Como Mises veria a crise do Subprime de 2007?

Ele termina esta aula, criticando os poderes da burocracia e de um poder “legitimado” por algo divino.

“Haveria um remédio contra tudo isso? Eu diria que sim. Há um remédio. E esse remédio é a força dos cidadãos: cabe-lhes impedir a implantação de um regime tão autoritário que se arrogue de uma sabedoria superior à do cidadão comum. Esta é a diferença fundamental entre a liberdade e a servidão. ”

Ludwig von Mises

Podemos fazer o paralelo com a frase “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.”?

Inflação e a perda do valor da moeda

Quarta Lição – A Inflação

Mises considera que a inflação é causada pela expansão da quantidade de dinheiro em circulação ao invés do aumento de preços. Neste caso, quando se imprime mais dinheiro, o poder de compra por unidade monetária se reduz na mesma proporção, causando aumento dos preços de produtos e serviços.

Todos novos gastos de um governo devem estar cobertos pelo aumento de arrecadação através de novos tributos ou incremento nas taxas dos tributos existentes. Deste modo, não há impressão de novo papel-moeda e aumento da inflação. Mises resume seu pensamento dizendo que “não é o modo como o dinheiro é gasto, é antes o modo como é obtido pelo governo que dá lugar a esta consequência que chamamos inflação”.

Esta visão monetarista é a atualmente a mais aceita pelos economistas e serve de base para o controle da inflação em órgãos internacionais como o FMI. Mises afirma que muitos governos preferem imprimir dinheiro, gerando inflação, do que partir para uma medida impopular como aumentar impostos.

Mises coloca que a expressão “nível de preços” é imprecisa e não deveria ser usada, porque cada produto ou serviço tem uma dinâmica diferente no que se refere ao aumento ou à diminuição de seus preços. Da mesma forma, a inflação atinge diferentemente os grupos que compõe a sociedade. Alguns grupos podem ter aumento de renda antes do início do processo inflacionário, enquanto que outros só terão reajustes salariais quando a maioria dos produtos e serviços já tiverem seus preços majorados. Deste modo, sempre existirão pessoas beneficiadas pela inflação. A análise de Mises não leva em consideração os ganhos oriundos de especulação financeira.

Mises afirma que a inflação não pode subsistir por muito tempo, sob pena de causar o colapso da moeda. Cita como exemplo o caso alemão do entreguerras, em 1914 um dólar valia 4,20 marcos alemães; nove anos depois, um dólar estava cotado a 4,2 trilhões de marcos. Ou seja, o marco perdeu totalmente seu valor, devido ao processo inflacionário, e foi necessário estabelecer uma nova moeda.

Mises, assim como os outros membros da escola austríaca de economia, defende o padrão-ouro da moeda. Ou seja, o papel-moeda teria valor real lastreado em reservas, no Banco Central do país. de metais preciosos, especialmente ouro e prata. Deste modo, o governo não poderia emitir mais moeda sem ter reserva equivalente em ouro.

No livro, é citada uma frase atribuída ao presidente americano Grover Cleveland ao vetar a ajuda a uma comunidade atingida por uma catástrofe: “É dever do cidadão manter o governo, mas não é dever do governo manter os cidadãos”. Mises arremata que “estas são palavras que todo estadista deveria escrever numa parede de seu gabinete, para mostrar aos que viessem pedir dinheiro”.

Mises cita uma frase do economista inglês John Maynard Keynes: “A longo prazo, todos estaremos mortos.”. Em minha opinião, a concepção de Mises é extremamente dogmática e não considera que, em momentos excepcionais, o governo pode endividar-se para evitar colapsos econômicos ou sociais.

No Brasil, no final de 2016, foi promulgada a emenda constitucional do teto de gastos públicos (PEC 55/2016). Esta lei limita o aumento dos gastos do governo, impedindo o aumento do endividamento. O que fazer em um momento de pandemia, quando milhares de pessoas perdem renda? Se pensarmos unicamente através da ótica liberal de Mises, “não é dever do governo manter os cidadãos”.

Mises defende que os salários deveriam flutuar de acordo com o poder de compra da moeda do país em mercados desregulamentados. Ou seja, se a moeda se valoriza, o poder aquisitivo dos salários cresceria e causaria inflação devido ao aumento do consumo. Deste modo, ele é um inimigo dos sindicatos por defenderem ganhos salariais aos trabalhadores, considera-os um segundo poder logo abaixo dos governos e critica os métodos violentos que empregavam na época.

Mises afirma que a moeda supervalorizada e os salários mais altos reduzem a competitividade do país e aumentam o desemprego. Ele apresenta a desvalorização da moeda como uma das ações do governo para reduzir este problema. O problema desta prática é a diminuição do poder de compra dos salários. Ele também é crítico de qualquer forma de indexação dos salários à inflação.

Nesta palestra, Mises critica abertamente Keynes, dizendo que ele prefere enganar os trabalhadores, evitando falar a verdade sobre desemprego, salário, valor da moeda (Keynes era contrário ao padrão-ouro) e inflação.

Para finalizar esta lição, Mises afirma que só é possível obter o pleno emprego em um mercado de trabalho livre, no qual os salários flutuem conforme a demanda por mão de obra. Ou seja, em caso de redução da demanda, os salários seriam reduzidos (como qualquer bem ou serviço à venda) para manter o pleno emprego. Devido a impossibilidade de os salários flutuarem livremente, os governos optam por uma política inflacionária. Se esta política funcionar no curto prazo e a inflação for um mal no longo prazo, os trabalhadores só seriam beneficiados em um sistema de livre mercado, sem a presença do governo ou de sindicatos. A função do governo seria somente a de manter o equilíbrio orçamentário.

Em minha opinião, Mises simplifica demais a situação e desconsidera a tendência individual da maximização dos lucros e a assimetria de poder entre os capitalistas e os trabalhadores. Atualmente, com a automação, postos de trabalhos são destruídos em nome da competitividade. Como ficaríamos em um mercado livre, onde os trabalhadores desempregados não são assistidos pelo Estado?

No próximo artigo, apresentarei as duas últimas lições que tratam sobre o investimento estrangeiro e política & ideias.

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Ludwig Von Mises e seu Liberalismo Cadillac Eldorado – Lições 1 e 2

Em um mundo cada vez mais polarizado, precisamos buscar pensamentos cada vez mais plurais. Ler livros, completamente desarmado, com ideias diferentes das suas é fundamental neste momento. Com este princípio em mente, li o livro “As Seis Lições” (Economic Policy: Thoughts for Today and Tomorrow) baseado em seis palestras de Ludwig Von Mises ministradas em Buenos Aires em 1959.

As lições correspondem a palestras apresentadas em dias consecutivos.

Neste primeiro artigo, apresentarei as duas primeiras lições sobre o capitalismo e o socialismo.

Primeira Lição – O Capitalismo

Mises defende enfaticamente a evolução da condição de vida dos mais pobres com a passagem do feudalismo rural para o capitalismo industrial. Por outro lado, fica claro que todo o seu pensamento é baseado no capitalismo industrial, onde o setor financeiro é apenas uma engrenagem para favorecer o crescimento da indústria e consumo.

Em 1950, 28% do PIB americano vinha da produção industrial e apenas 11% vinha da área financeira. Após a desregulamentação do setor na década de 70, cresceu o montante de investimentos de alto risco, impulsionando este setor que passou a representar 21% do PIB americano contra 11% da produção industrial.”

Fonte: Réquiem para o Sonho Americano, Noam Chomsky, março 2017

Mises coloca os consumidores como únicos agentes para servir de bússola para as empresas de cada ramo de atividade. Ou seja, parece não imaginar que as empresas possam induzir as pessoas a consumirem bens que não estariam dispostas a adquirir, através da propaganda.

Mises também defende que as poupanças dos capitalistas beneficiam os trabalhadores. Em minha opinião, isto é verdade quando há reinvestimentos produtivos, geração de novos empregos e aumento de salários. Se a poupança for aplicada em especulação, isto não ocorre.

“Quanto mais se eleva o capital investido por indivíduo, mais próspero se torna o país”

Ludwig Von Mises

Se for investimento produtivo, também concordo. O problema é que vivemos na era do capitalismo não-produtivo ou especulativo.

Com relação à recuperação da Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, Mises afirmou que “houve tão somente a aplicação dos princípios da economia do livre mercado”. Esta afirmação não condiz com a história. Os Estados Unidos, com o objetivo de bloquear o aumento da influência da União Soviética na Europa, desenvolveu o Plano Marshall para promover a recuperação dos países europeus. A orientação deste plano era majoritariamente keynesiana, onde o Estado tem um importante papel na economia, através de investimentos em períodos de retração. O governo norte-americano fez parcerias com os partidos sociais-democratas europeus ao invés de partidos conservadores, criando as bases para a formação de Estados de bem-estar social. Deste modo, havia redistribuição de riquezas e redução de desigualdades sociais. Estas políticas geraram um grande crescimento nos países desenvolvidos do ocidente, com melhoria das condições de vida acompanhada por um boom populacional.

Ludwig von Mises

Segunda Lição – O Socialismo

Mises é a favor das liberdades econômica e individuais. Considera o livre mercado essencial para garantir a liberdade de expressão e demais direitos sociais.

Ele não considera as distorções do mercado como monopólios privados, oligopólios e cartéis no seu pensamento. Coloca os consumidores como únicos agentes para servir de bússola para as empresas de cada ramo de atividade.

Como Mises encarou a análise de Theodor Adorno sobre a influência da indústria cultural no consumismo?

Ele defende o “direito de ser tolo”. Cita o exemplo do fracasso da Lei Seca nos Estados Unidos. Em última análise, a liberação das drogas seria apoiada por este pensamento. A inexistência de censura também seria apoiada por este pensamento. Liberdade significa “liberdade para errar”. Apesar de libertária, esta posição também coloca os interesses de cada indivíduo acima dos interesses da coletividade. Um exemplo atual seria a recusa de ser vacinado contra Covid. Se este “direito de ser tolo” fosse aceito, a erradicação da varíola não teria ocorrido.

Mises considera que, antes da implantação do capitalismo, não havia mobilidade social. Os filhos dos nobres seriam nobres e manteriam seus privilégios. Os filhos dos servos seriam servos e manteriam suas desvantagens sociais. Deste modo, o capitalismo trouxe a possibilidade da mobilidade social e “as pessoas só podem culpar a si mesmas se não chegam a alcançar a posição que almejam”. Este trecho que destaquei da fala de Mises lembra muito as declarações de muitos liberais brasileiros na defesa da meritocracia. Mises e seus discípulos brasileiros desconsideram a assimetria em relação às oportunidades entre as classes sociais. Afinal, quem nasce em uma família rica estudará nas melhores escolas e universidades, consequentemente, terá muito mais chances na vida. Este fato reduz a mobilidade entre classes sociais.

Por outro lado, Mises afirma que o sistema socialista proíbe a liberdade para a escolha da carreira. Não sei qual é a sua fonte de informação que apoia esta conclusão.

Considera o planejamento (central, único, feito pelo governo) um sinônimo de socialismo e comunismo. Defende que todos tenham a liberdade para planejar a própria vida. Neste capítulo, Mises também desconsidera o keynesianismo como uma forma de capitalismo.

Ele também critica duramente a ajuda do Estado a artistas. Considera uma forma de socialismo.

Mises também considera impossível o cálculo econômico dos custos de bens e serviços no sistema socialista pela ausência do mercado.

Ele finaliza esta lição, considerando que uma das provas da superioridade do capitalismo é a condição média de vida muito melhor nos Estados Unidos em comparação à União Soviética. Outro ponto está relacionado ao maior dinamismo do capitalismo americano em relação ao socialismo soviético, medido através do maior número de invenções e inovações.

Esta comparação é muito simplista, se considerarmos que a palestra de Mises aconteceu 42 anos após a Revolução Russa e 14 anos após o final da Segunda Guerra Mundial, onde a União Soviética sofreu muitas baixas. Como comparar com os Estados Unidos, um país que já era uma potência econômica há mais de um século? Por outro lado, concordo com a questão do maior dinamismo do capitalismo. Ao visar o lucro, as inovações são muito mais frequentes no capitalismo, além da indução do consumismo para acelerar o crescimento econômico.

No próximo artigo, apresentarei a terceira e quarta lições que tratam sobre o intervencionismo e a inflação.

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Os Arquitetos da Ordem Contra os Engenheiros do Caos

Na semana passada, eu li o livro “Engenheiros do Caos” de Giuliano Da Empoli. Após a leitura, ficam muito claras algumas das razões da crise da democracia representativa e como políticos populistas ascenderam ao poder em vários países do ocidente.

Giuliano Da Empoli e Os Engenheiros do Caos

No final de 2016, escrevi o artigo “As Surpresas de 2016, as Bolhas e o Algoritmo da Felicidade de Mark Zuckerberg”, onde comentei os resultados de três eleições: vitória do Brexit, vitória de Donald Trump nos Estados Unidos e a rejeição do acordo de paz com as Farc na Colômbia. Apresentei como uma das explicações as bolhas criadas pelos algoritmos das redes sociais como o Facebook e o Twitter. Relendo o artigo, vejo que todo seu conteúdo estava correto, mas faltava uma peça importante para complementá-lo. O escândalo da Cambridge Analytica, que veio à tona em 2018, explica como foram mobilizados os eleitores do Brexit e de Trump.

Em primeiro lugar, as pessoas estão cada vez mais frustradas com suas próprias vidas. Uma parcela expressiva da população, incluindo os países desenvolvidos, trabalha somente para a subsistência das suas famílias. Isto acaba gerando muita decepção e frustração. Esta situação é gerada principalmente pelo sistema econômico vigente, baseado no consumismo, na maximização de lucros e na concentração cada vez maior de renda. Os políticos populistas passaram a culpar a política tradicional, baseada na democracia representativa, por esta situação. Na Europa e nos Estados Unidos, os imigrantes também foram acusados de roubar os empregos dos locais. Deste modo, a transformação da frustração em raiva foi estimulada e canalizada para estes alvos preferenciais.

No Brasil, além dos políticos tradicionais, os alvos principais são a Esquerda (em especial Lula e o Partido dos Trabalhadores) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

De acordo com Da Empoli, a política tradicional procura agregar diferentes grupos com suas propostas. Assim, o discurso é feito para agradar o maior número possível de pessoas, tendo que haver uma certa coerência. Esta nova forma de comunicar, através das redes sociais, pode criar mensagens sob medida para cada bolha, conforme os dados e postagens coletados de cada usuário, sem compromisso com a consistência global da campanha política. No Brexit, foram disparadas quase um bilhão de mensagens personalizadas. Para protetores dos animais, foi enviada mensagem sobre as regulações europeias que ameaçam os direitos dos animais; para os caçadores, mensagem sobre as regulações europeias que, ao contrário, protegem os animais.

Vivemos em um mundo onde a velocidade da conexão é cada vez maior. Qualquer instabilidade ou lentidão causa irritação do usuário. Não lembramos que há alguns anos não tínhamos verdadeiros computadores na palma da mão que podem solucionar inúmeras demandas. Como dizia o comediante americano Louis C.K.:

“Everything is amazing right now and nobody is happy.”

Mas por que, apesar de tudo ser incrível, ninguém está feliz? Pode-se queimar horas do nosso tempo nas redes sociais, mas não se tem paciência para esperar alguns segundos para carregar uma página de um site qualquer.

Louis C.K.

Todo mundo se acostumou a fazer tudo de forma incrivelmente rápida com poucos cliques. Como aceitar todo o rito para aprovar uma emenda na Constituição do país. Fica fácil para um líder populista afirmar que o Congresso tem que trabalhar ou que tudo é muito demorado. Por exemplo, resumidamente, o processo brasileiro funciona da seguinte forma:

  • o projeto de emenda constitucional (PEC) deve ser a enviado inicialmente para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para analisar se a proposta não altera alguma cláusula pétrea;
  • depois de passar pela CCJ, deve ser aprovada em dois turnos na Câmara e no Senado por três quintos dos parlamentares;
  • se houver alterações na PEC, devem ser aprovadas nas duas casas legislativas para seguirem adiante;
  • finalmente, a PEC segue para sanção presidencial;
  • em caso de vetos parciais ou total, o projeto volta para o Congresso que pode derrubá-los.

Após todo este processo, alguma das partes ainda pode recorrer ao STF e pedir a inconstitucionalidade da lei.

Este processo pode demorar meses. Por outro lado, existe tempo para análise, discussão e participação da sociedade civil. Pode parecer excessivo, mas este é um dos preços pagos por vivermos em um Estado democrático e de direito.

Viktor Orbán é o primeiro-ministro da Hungria há dez anos. Ele conseguiu alterar a Constituição do país para acelerar os procedimentos para aprovação das leis, reduzindo o tempo de tramitação para algumas horas, além de centralizar o poder, devido a submissão da Justiça ao controle do Executivo. Ou seja, claramente, a Hungria perdeu características de um Estado democrático e de direito.

Em 30 de março de 2020, o parlamento húngaro dominado pelo partido de Orbán aprovou o estado de emergência para o combate da Covid-19, permitindo que ele governasse o país através de decretos. Esta situação só foi revogada em meados de junho, mas entrou nova em vigor há um mês, segundo justificativa oficial, para combater a segunda onda de Covid-19.

É Bolsonaro… Enquanto você pensa em plantar o trigo, teu colega húngaro de extrema-direita já está decorando o bolo.

Viktor Orbán com Jair Bolsonaro (Fonte: Marcos Correa / AFP)

Como combater a ação destes “engenheiros do caos” que, de acordo com o subtítulo do livro de Giuliano Da Empoli, através da utilização de fake news, teorias da conspiração e algoritmos estão disseminando ódio, medo e influenciando eleições?

Qualquer solução definitiva de um problema deve atacar suas causas. Soluções paliativas têm baixa eficácia e prazo de validade curto. A principal ação deveria acontecer no âmbito de cada indivíduo para que o ódio não encontre terreno fértil para crescer e multiplicar-se entre os contatos da sua rede de relacionamentos. A sociedade também deveria ter uma postura mais empática e solidária. As minorias, pessoas e grupos em dificuldades deveriam ser protegidos e apoiados pelos governos e sociedades em geral.

Se você está pensando que isto parece utópico e, talvez, nunca aconteça, pode estar certo. Eu diria que estas mudanças realmente podem demorar muitos anos. Enquanto isso, se poderia mudar o ambiente regulatório para evitar a propagação de fake news e declarações preconceituosas na Internet. Os adversários destas medidas de controle clamam pela liberdade de expressão e pelo fim do politicamente correto. Cada blog ou canal do YouTube infrator retirado do ar apenas alimentam a certeza que existe um complô para prejudicar àqueles que lutam contra o sistema. E mais ódio é alimentado…

Por que não criamos os “arquitetos da ordem”? Assim também seria possível enviar mensagens específicas para as pessoas, onde informações de qualidade ajudariam a espalhar amor e consciência.

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Carta Aberta para a Nova Esquerda Brasileira

A esquerda brasileira perdeu o rumo e morreu. Foi soterrada pela avalanche causada pela chegada ao poder da aliança dos neoliberais com a ultradireita. Por outro lado, engana-se quem pensa que este processo é irreversível. A esquerda brasileira pode voltar a ter um papel importante na política brasileira desde que faça as escolhas corretas.

Quando Karl Marx escreveu “O Capital”, estava clara a ascensão do proletariado industrial na Europa. Formou-se uma grande massa operária, trabalhando longas jornadas, muitas vezes em condições insalubres, sem direitos e com baixa remuneração.

A esquerda apresentou-se como uma alternativa aos explorados do século XIX e início do século XX. Uma série de revoluções levaram a esquerda ao poder em diversos países antes da metade do século passado, sendo a União Soviética a maior referência.

Meninos trabalhadores em uma mina de carvão nos Estados Unidos em 1900 (Fonte: www.motherjones.com)

O Comunismo Soviético morreu no final dos anos 80. Simbolicamente a data que aparece na sua lápide é 9 de novembro de 1989, quando o Muro de Berlim foi derrubado pelo povo.

Por outro lado, o Liberalismo também está morto! Morreu entre as duas Grandes Guerras Mundiais do século passado. Na sua lápide, aparece a data da morte – 24 de outubro de 1929, dia conhecido como Black Thursday, quando a Bolsa de New York quebrou.

Até os anos 70, antes da crise do petróleo, ninguém voltou a falar seriamente em liberalismo. O Estado tinha um papel importante na regulação da economia. Com a ascensão de Thatcher no Reino Unido e Reagan nos Estados Unidos, a direita e os neoliberais se fortalecem e começa o processo de desregulamentação da economia com o favorecimento de grandes conglomerados econômicos. Assim, o capitalismo financeiro e grandes empresas multinacionais tornam-se, muitas vezes, mais poderosos do que Estados.

O que vemos hoje aqui no Brasil (e na maior parte do planeta) é a compra do setor político pelo setor econômico: leis são alteradas, isenções fiscais acertadas, grandes obras definidas, enquanto que os interesses da sociedade são relegados ao segundo plano. Simultaneamente, as ideias de que a economia deve ser desregulamentada e direitos previdenciários e trabalhistas suprimidos são vendidas como se fossem benéficas para a sociedade, mas só favorecem os muito ricos, porque o setor econômico também compra a mídia e a cultura.

Atualmente há mais informação disponível do jamais se sonhou durante a história da humanidade. Por outro lado, analisa-se menos e pensa-se menos sobre estas informações. Primeiro compartilha-se, depois ofende-se com quem argumentou contra. E nunca a veracidade das informações é verificada antes do compartilhamento, simplesmente porque apoiam convicções pessoais.

Se a proposta da esquerda brasileira for retirar a família Bolsonaro do poder, só posso afirmar que isso é muito pouco. Setores liberais e lavajatistas da extrema direita também podem defender a mesma bandeira.

A Nova Esquerda brasileira deve unir-se e preparar uma proposta clara para o país.

Antes de mais nada, deve-se ter ampla liberdade e proteção para as minorias. A democracia não é a ditadura da maioria. Na democracia, diferentemente da ditadura, quem é ou pensa diferente tem seus direitos garantidos.

O Brasil já oferece a universalização da educação até os 17 anos às crianças e jovens. É chegado o momento de universalizar a educação de qualidade que forme seres humanos livres. Servos acreditam que só há um modo de pensar ou expressar-se através da cultura, rejeitam a diversidade. Quem é livre não precisa de líderes messiânicos na política ou na religião. Além disto, saúde também se aprende, educação é que realmente cura. A medicina atual busca prioritariamente a cura das doenças e menos a salutogênese ou promoção da saúde. Pessoas educadas, com hábitos saudáveis, reduzem a demanda aos serviços de saúde.

A busca pela economia circular pode colocar o Brasil na vanguarda do mundo pela abundância de recursos naturais disponíveis. Por exemplo, o Brasil possui uma baixa geração de energia elétrica através de painéis solares apesar de contar com um potencial incrível. Se compararmos com a Alemanha, a pior região do Brasil é melhor do que a região mais favorável da Alemanha, país europeu líder na aplicação desta tecnologia. Através de investimentos em tecnologia, poder-se-ia fazer o ciclo completo: produção, uso, desmontagem, recuperação de metais e componentes para a produção de novos painéis. Veja a figura abaixo.

Economia circular (Fonte: Parlamento Europeu)

Outro ponto importante é o auxílio às comunidades em áreas de preservação para o desenvolvimento de negócios sustentáveis (econômica, social e ambientalmente). Assim estas comunidades ajudariam na preservação dos ecossistemas, através do ecoturismo, artesanato e atividades extrativas sustentáveis.

Iniciativas sociais, cooperativas e pequenas empresas devem ser incentivadas e protegidas. Treinamentos específicos devem ser oferecidos para empreendedores e cooperativados. Deste modo, poder-se-ia criar uma porta de saída digna para os beneficiários do Bolsa Família.

O desenvolvimento econômico não deve ser jamais dissociado do desenvolvimento social e da preservação ou recuperação do meio ambiente!

A segurança pública é uma das maiores preocupações da população, especialmente nos grandes centros urbanos do país. Deve haver uma discussão profunda de como mitigar suas consequências. Não se pode simplesmente dizer que é uma questão social e será resolvida somente por esta via.

Para finalizar, a Nova Esquerda deve evitar práticas nefastas como o clientelismo e fisiologismo político. A transparência deve ser uma das posturas mais importantes da administração pública. Como diz o velho provérbio romano:

– “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.

Como a mulher de César, um político (especialmente de esquerda) deveria estar acima de qualquer suspeita. Relações não ortodoxas entre o público e o privado devem ser evitadas.

Podemos dividir a atividade humana em três setores: político-jurídico, econômico e cultural-social. Estes setores deveriam ser totalmente independentes. O setor econômico deve financiar os dois outros setores através dos impostos transparentemente.

Devemos separar totalmente estes três setores para termos um futuro mais justo e sustentável. Seguindo o ideário da Revolução Francesa, queremos ter Liberdade na cultura, Igualdade na política e Fraternidade na economia.

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Minha Teoria da Conspiração e Meu Apelo para Bolsonaro

Adoramos teorias da conspiração! Afinal elas mexem com nossa imaginação… Baseado nos fatos das últimas semanas, também criei a minha.

A minha teoria da conspiração começa com a contaminação de Bolsonaro pelo novo coronavírus na sua última viagem aos Estados Unidos no início de março. Dificilmente ele escaparia do vírus, quando mais de vinte pessoas (alguns assessores diretos) receberam resultados positivos. Os seus sintomas provavelmente foram leves e este é o motivo de ele achar que a COVID-19 é uma “gripezinha” ou “resfriadinho”. O desprezo do presidente pela ciência torna sua experiência pessoal mais relevante do que a opinião de todos os infectologistas do planeta.

Agora vamos aos fatos das últimas duas semanas…

No dia 24/03, Bolsonaro fez o lamentável discurso em que minimizou a gravidade da doença. Atacou prefeitos e governadores que proibiram aglomerações e recomendaram o isolamento social. Ele criou a histeria em relação ao desemprego e à fome. No domingo passado, ele circulou pelo Distrito Federal. Visitou uma farmácia, uma padaria; conversou com ambulantes; tirou selfies… Gerou aglomerações, fez tudo o que seu ministro da saúde desaconselha para a população em geral.

Quando Bolsonaro anunciou que faria um novo pronunciamento na noite da terça-feira passada, temi que ele anunciasse a abertura do comércio em todo o país. Poderia se configurar um grande conflito popular sem precedentes na história do Brasil. Para minha surpresa, a fala foi moderada com algumas pequenas alfinetadas e omissão de uma parte importante da fala do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, referente à convocação dos países a desenvolverem políticas que forneçam proteção econômica às pessoas que não possam receber ou trabalhar devido à pandemia da COVID-19. No final do pronunciamento, Bolsonaro arremata com uma frase conciliadora.

“Agradeço e reafirmo a importância da colaboração e a necessária união de todos num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos: parlamento, Judiciário, governadores, prefeitos e sociedade”.

Entretanto, nos dias seguintes, fez postagens inadequadas nas redes sociais. E deu uma entrevista na Rádio Jovem Pan, onde criticou abertamente governadores, especialmente João Dória. Pediu mais humildade e afirmou que o ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, deveria ouvi-lo mais. Para finalizar, disse que tem um decreto pronto para reabrir o comércio.

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Minha teoria da conspiração termina com a tentativa de Bolsonaro de cooptar os militares para radicalizar ou, até mesmo, dar um autogolpe. A maioria dos militares consultados deve ter aconselhado o presidente a “baixar a bola”. Então veio o pronunciamento do dia 31/03, onde fez um recuo em relação ao fim do isolamento social.

O problema é que Bolsonaro não se controla (nem ninguém o controla) e voltou para o ataque. Após 28 anos como deputado federal, fazendo críticas à democracia e elogios à ditadura, ele demonstrou não ter a menor habilidade para a negociação.

Negociação é fundamental na política. Não estou falando do toma lá, dá cá. Estou falando de pensar no bem comum e como é possível ceder para evitar conflitos desnecessários que atrasem a implantação de medidas essenciais.

Bolsonaro, você é o presidente de:

– brasileiros de direita e de esquerda;
– neoliberais e socialistas;
– antipetistas e petistas;
– evangélicos e ateus;
– ignorantes e sábios;
– negadores e seguidores dos conhecimentos científicos;
– brasileiros livres e de presos;
– brasileiros novos e idosos;
– ricos e de pobres;
– heterossexuais e LGBTQIA+;
– pessoas sãs e doentes.

Você não é presidente apenas de seus eleitores ou das pessoas que simpatiza! Você é presidente de todos os brasileiros!

E agora vem meu apelo…

Todos os brasileiros devem se unir para superar esta enorme crise com o menor número de mortes e sofrimento possíveis, independentemente de suas diferenças. Quem deve liderar este esforço é o Presidente da República, coordenado com os governadores estaduais. Deve-se evitar um colapso no sistema de saúde e na economia do país. Só com negociação e bom senso, baseado no melhor conhecimento científico disponível, isto será possível. O Estado deve ajudar os mais carentes, redirecionando suas prioridades imediatamente.

Se você, Jair Bolsonaro, não está à altura desta missão renuncie, se licencie, ou, pelo menos, delegue a autoridade para alguém capaz de assumi-la. Não crie entraves. Não é momento para politização da crise com os governadores João Dória ou Wilson Witzel.

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O Triste Clown e seu All-In

No dia 24 de março, recebi um presente amargo de Jair Bolsonaro, um discurso no qual ele pediu para a vida voltar à normalidade. O racional (se podemos chamar assim no caso do Bolsonaro) é, se a economia do país parar, mais pessoas serão prejudicadas do que as seriam com a COVID-19. A venda desta ideia está claramente baseada na ética utilitarista que busca a maximização do bem-estar.

No poker, chamamos “all-in” quando o jogador aposta todas suas fichas em uma rodada. Bolsonaro, na terça-feira passada, fez um all-in. O problema desta aposta é que ela vai na contramão das recomendações dos cientistas de todo o mundo. Ou seja, a probabilidade de ele estar certo é muito baixa. E pior, mas muito pior mesmo, se ele estiver errado (o que deverá acontecer), a consequência não será apenas sua “eliminação do jogo”, mas a morte de centenas de milhares de pessoas no Brasil.

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Bolsonaro com o Comediante Carioca

Em um artigo no Financial Times, Yuval Harari, o autor de Sapiens, deixou claro qual é a melhor opção nesta crise.

“Nos próximos dias, cada um de nós deve optar por confiar em dados científicos e especialistas em saúde, em detrimento de teorias infundadas da conspiração e de políticos egoístas.”

Acredito que a maioria da população brasileira não concorda com a posição de Bolsonaro, mas isso não é suficiente. Bolsonaro, em seu discurso, abriu a “Caixa de Pandora” e todos seus seguidores (25 a 30% dos brasileiros) passaram a pressionar pela volta à normalidade, encampando suas teorias conspiratórias sobre a Imprensa, a Esquerda e seus adversários políticos. Se o isolamento social for encerrado, a consequência deverá ser desastrosa – centenas de milhares de brasileiros mortos.

A minimização das mortes divulgadas em vídeos de Luciano Hang (dono da Havan), Junior Durski (dono do Madero), Alexandre Guerra (filho do dono do Giraffas) e Roberto Justus é um verdadeiro absurdo. Declarações como estas estimulam a histeria das pessoas em relação às perdas de emprego e renda. Nos últimos dias, carreatas aconteceram em cidades brasileiras pedindo que os prefeitos cancelem as restrições de circulação e abertura do comércio.

O Governo deveria redirecionar suas prioridades. Ninguém comenta que R$ 248,6 bilhões estão previstos no orçamento de 2020 para pagamento de dívidas com títulos públicos, conforme figura abaixo que copiei do Plano Anual de Financiamento / 2020 – Secretaria do Tesouro Nacional.

DPF - financiamento 2020

Necessidade de Financiamento 2020 [Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional http://sisweb.tesouro.gov.br/apex/cosis/thot/transparencia/arquivo/31541:1047266:inline:5040891138940]

Para ter ideia da magnitude dos gastos com o serviço da dívida pública federal, os gastos orçados para saúde e educação em 2020 são, respectivamente, R$ 136,5 bilhões e R$ 123,5 bilhões, segundo o Portal Transparência.

Ou seja, baixar a Selic ajuda a reduzir os juros; alongar o prazo de vencimento dos títulos que vencem em 2020 também ajudaria.

Para aqueles que ficaram curiosos para saber quais despesas primárias serão financiadas com novas dívidas, vejam o quadro abaixo.

Despesas-Primarias_2020

Despesas Primárias Cobertas por Emissão de Novos Títulos Públicos em 2020 [Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional]

Outros atores neste cenário complexo são os bancos. A soma dos lucros líquidos dos três principais bancos privados do Brasil (Itaú, Bradesco e Santander) foi R$ 63,35 bilhões em 2019. O Banco do Brasil lucrou R$ 18,16 bilhões; e a Caixa Econômica Federal, R$ 21,1 bilhões neste período.

Obviamente os dois bancos estatais poderiam zerar seus lucros através de créditos com juros baixos e carência para pagamento. E os bancos privados poderiam aceitar uma redução nas suas margens para evitar a quebradeira geral que voltaria para cima deles como um bumerangue.

Programas de renda mínima devem ser efetivados imediatamente para prover condições de sobrevivência aos mais pobres.

Para costurar um grande acordo entre o poder público, iniciativa privada e população, precisaríamos de um estadista, um verdadeiro líder que unisse todas estas forças em prol de bem de todos. Infelizmente Jair Bolsonaro não tem as menores condições de exercer este papel.

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O Mundo é uma Grande Diversão e Bolsonaro é Nosso Showman

A palavra diversão veio do latim divertere, que significa desviar ou voltar-se em outra direção. Ou seja, virar a cabeça para outro lado para não olhar para suas preocupações. Os militares, por exemplo, usam a palavra diversão no sentido de mudar o foco de atenção do inimigo.

Em Roma, a expressão pão e circo (panem et circenses em latim) surgiu durante o período da República. O pão representa o suprimento dos bens materiais e o circo a diversão.

Jair Bolsonaro, nos seus tempos de deputado federal, sempre se posicionou de modo polêmico e usou estas polêmicas como forma de promoção pessoal. A maioria dos brasileiros imaginava que, como presidente, ele moderaria o tom das suas declarações, mas não é o estamos presenciando.

Eu poderia escrever uma longa lista de ações e frases do atual presidente do Brasil, mas isto seria exaustivo… Daria um livro infinitamente mais denso do que o satírico “Por Que Bolsonaro Merece Respeito, Confiança e Dignidade?”. Neste artigo, citarei apenas algumas para pontuar meu raciocínio.

Livro_Bolsonaro

As alterações propostas nas leis de trânsito foram consideradas absurdas por todos especialistas. Afinal aumentar a pontuação para cassação de CNH de 20 para 40 pontos e acabar com os radares móveis nas estradas só favorecem os maus motoristas. E o que falar sobre o fim da obrigatoriedade das cadeirinhas para condução de crianças em automóveis?

A liberação da posse e porte de armas já era um ponto esperado no governo Bolsonaro. Entre idas e vindas de emissões e revogações de decretos presidenciais, destacaria itens como o incrível aumento da quantidade permitida de munição a ser comprada anualmente, brechas legais para a compra de fuzis e a liberação para adolescentes entre 14 e 18 anos ter aulas de tiro.

E a grande celeuma em relação à Amazônia? O estopim foi a divulgação do aumento no ritmo do desmatamento na região, baseados em dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Bolsonaro disparou esta declaração, apresentada abaixo, sobre o Inpe.

“A questão do Inpe, eu tenho a convicção que os dados são mentirosos. Até mandei ver quem é o cara que está na frente do Inpe. Ele vai ter que vir se explicar aqui em Brasília esses dados aí que passaram pra imprensa do mundo todo, que pelo nosso sentimento não condiz com a verdade. Até parece que ele está à serviço de alguma ONG, que é muito comum.”

A resposta do ex-diretor do Inpe, Ricardo Galvão, foi contundente.

“A primeira coisa que eu posso dizer é que o sr. Jair Bolsonaro precisa entender que um presidente da República não pode falar em público, principalmente em uma entrevista coletiva para a imprensa, como se estivesse em uma conversa de botequim. Ele fez comentários impróprios e sem nenhum embasamento e fez ataques inaceitáveis não somente a mim, mas a pessoas que trabalham pela ciência desse País. Ele disse estar convicto de que os dados do Inpe são mentirosos. Mais do que ofensivo a mim, isso foi muito ofensivo à instituição. (…) Fiquei realmente aborrecido, porque na minha opinião ele fez comigo o mesmo jogo que fez com Joaquim Levy (que pediu demissão do BNDES após também ser criticado em público por Bolsonaro). Ele tomou uma atitude pusilânime, covarde, de fazer uma declaração em público talvez esperando que peça demissão, mas eu não vou fazer isso. Eu espero que ele me chame a Brasília para eu explicar o dado e que ele tenha coragem de repetir, olhando frente a frente, nos meus olhos. Eu sou um senhor de 71 anos, membro da Academia Brasileira de Ciências, não vou aceitar uma ofensa desse tipo. Ele que tenha coragem de, frente a frente, justificar o que ele está fazendo. É uma ofensa de botequim. Não vou responder a ele e ele que me chame pessoalmente e tenha coragem de me dizer cara a cara isso.”

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Ricardo Galvão

Bolsonaro despreza as questões ambientais, inclusive já afirmou que elas importam “só aos veganos que comem só vegetais”. Como resultado das ações (ou falta delas), a Alemanha e a Noruega congelaram suas contribuições ao Fundo Amazônia, totalizando um prejuízo de 288 milhões de reais. Só a Noruega, doou 3,2 bilhões de reais para a preservação da Amazônia nos últimos dez anos. Para coroar, Bolsonaro mandou a seguinte mensagem para a primeira-ministra alemã:

“Eu queria até mandar um recado para a senhora querida Angela Merkel, que suspendeu 80 milhões de dólares para a Amazônia. Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, ok? Lá está precisando muito mais do que aqui”.

Alguns dias depois, também mandou um recado para a Noruega.

“A Noruega não é aquela que mata baleia lá em cima, no Polo Norte, não? Que explora petróleo também lá? Não tem nada a oferecer para nós. Pega a grana e ajuda a Angela Merkel a reflorestar a Alemanha.”

Vou pular a história do cocô…

Outra faceta (poderia ser “fasceta”) é o caráter autoritário e o culto à ditadura militar brasileira. Sobre este assunto, destaco duas frases recentes. A primeira é sobre o Coronel Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI no início dos anos 70 (período mais duro da ditadura), acusado de chefiar pessoalmente, de forma sádica, várias sessões de tortura.

“É um herói nacional que evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer.”

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Eduardo Bolsonaro, vestindo uma camiseta em homenagem ao Coronel Brilhante Ustra.

Para atacar o atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, fez uma frase em que deu a entender que sabe o que aconteceu com o pai de Felipe, desaparecido em 1974.

“Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu durante o período militar, conto para ele.”

Vou pular também a indicação do seu filho, Eduardo Bolsonaro, para a embaixada do Brasil nos Estados Unidos…

Para concluir esta seleção de frases, no final do mês de julho, Bolsonaro fez a seguinte declaração:

“Sou assim mesmo. Não tem estratégia. Se eu estivesse preocupado com (a eleição de) 2022, não dava essas declarações.”

Talvez ele não tenha realmente uma estratégia. Ou talvez, sua estratégia seja continuar agradando seus fiéis eleitores. Eu, particularmente, acredito que ele, consciente ou inconscientemente, está inserido numa estratégia maior e mais elaborada. Ele é o responsável pela diversão para o que está acontecendo no país. Ele é o showman. A recuperação da economia patina. Reformas passam pelo Congresso Nacional com o rótulo de imprescindíveis para a salvação do país. Quem discutiu com a profundidade devida o impacto da reforma da Previdência Social sobre os mais pobres? Trabalhadores braçais com baixa escolaridade conseguirão se aposentar aos 65 anos? A viúvas pobres conseguirão sobreviver dignamente com pensões inferiores a um salário mínimo? Só ouvíamos que era preciso economizar um trilhão de reais. Por quê? Veremos milhões de idosos sem teto, morando nas ruas das cidades brasileiras, nos próximos dez ou vinte anos, se nada for feito. Mas só discutíamos as declarações e propostas absurdas de Bolsonaro.

Alguém sabe alguma coisa sobre a minirreforma trabalhista, contida na chamada Medida Provisória da Liberdade Econômica? E sobre a permissão de mineração nas terras indígenas? E assim por diante…

Para contrapor uma crítica direta à sua pessoa, ao seu governo ou a um resultado ruim de alguma política pública, Bolsonaro geralmente apoia sua resposta em, pelo menos, uma falácia lógica. E lá vem aquela ladainha de falar do Lula, do PT ou da esquerda…

Bolsonaro reiteradamente exprime uma opinião de que as minorias devem se submeter à vontade da maioria. Prega, desta forma, uma espécie de ditadura da maioria. Assim quer acabar com a esquerda (“esquerdalha”, segundo seu vocabulário) ou quer retirar direitos dos índios à demarcação de terras. O seu viés autoritarista lhe impede de compreender que, em regimes democráticos, as minorias desamparadas devem ser protegidas independentemente do desejo da maioria.

Não é sem motivo que Bolsonaro se autodefine como o personagem de desenhos animados Johnny Bravo. Eu assistia este desenho no canal Cartoon Network com meu filho Leonardo no início dos anos 2000. Johnny Bravo era um loiro musculoso, pouquíssimo inteligente e completamente “sem noção”. Está bem, Bolsonaro não é loiro, nem musculoso…

Bolsonaro_Johnny-Bravo

Eric Hobsbawm, no seu livro Era dos Extremos, apresenta uma associação da direita liberal com o fascismo entre as duas Grandes Guerras Mundiais para evitar a expansão do comunismo soviético em alguns países europeus. Na sequência a extrema direita traiu os liberais. Os nazistas de Hitler se apoderaram da Alemanha; e os fascistas de Mussolini, da Itália.

Desta vez, minha impressão é que os neoliberais usarão toda a força de Jair Bolsonaro para atrair os holofotes para seus disparates, enquanto fazem as reformas que julgam corretas. Se em um determinado momento, ele atrapalhar mais do que ajudar, será escolhido algum motivo para afastá-lo através de um processo de impeachment. Não tiraram Dilma devido a pedaladas fiscais?

Enquanto isso, assistiremos a ataques contra a universidade pública, aos órgãos de proteção ambientais, aos direitos dos trabalhadores mais pobres…

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As Três Formas Modernas de Escravidão

Hoje em dia se discute muito sobre a escravidão moderna. Este artigo não trata de formas de escravidão como crianças em plantações de cacau na África, nem outras formas que acontecem em propriedades rurais brasileiras. Eu gostaria de abordar os tipos mais sutis de escravidão – aqueles nos quais as pessoas não percebem que se tornaram escravas. As principais causas são econômicas. Selecionei três formas que julgo as principais.

A primeira forma é o consumismo. O consumismo é a base do capitalismo. Atualmente todas as pessoas são bombardeadas por propagandas. Nas redes sociais, são influenciadas pela ostentação de outra pessoa através de uma foto ou uma história e passam a acreditar que têm a obrigação de consumir. Passam a desejar roupas e relógios de grife, os últimos modelos de automóveis ou celulares e assim por diante. Isto tudo tem um preço. Ao adquirir mercadorias de marcas famosas, paga-se um preço alto. A marca traz status para a pessoa. E é exatamente isto que a pessoa deseja comprar. Com o passar do tempo, se não houver condições econômicas de manter este padrão de consumo, a pessoa vai “evoluir” para a segunda forma de escravidão que é a dívida.

A dívida é a forma mais perversa, porque a pessoa realmente fica escrava de instituições financeiras ou agiotas. Ela fica sem alternativas de conseguir outra coisa que não seja juntar dinheiro para pagar aquela dívida que, muitas vezes, é impagável, porque os juros correm mais rápido do que a capacidade de ganhar dinheiro. Esta é uma situação terrível.

No Brasil, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) acompanha o endividamento da população mensalmente através da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC). Em janeiro de 2019, 60,1% das famílias brasileiras possuíam dívidas; 22,9% tinham contas em atraso; e pior, 9,1% das famílias brasileiras admitem que não terão condições para pagar suas dívidas. A maior parte destas famílias apresentam renda abaixo de 10 salários mínimos mensais. O quadro abaixo resume esta situação.

PEIC_ jan-2019

O mais grave é o endividamento justamente no tipo de dívida com juros mais altos, cartão de crédito – juros 11,52% ao mês (270,03% ao ano) em janeiro de 2019. Vale ressaltar que a inflação anual oficial em 2018 fechou em 3,75%. O gráfico abaixo apresenta as principais formas de endividamento das famílias brasileiras.

PEIC_ jan-2019_principais-tipos-divida

Se você quiser baixar os principais resultados do PEIC de janeiro de 2019, basta clicar no link abaixo.

peic_janeiro_2019

Borrowing money makes you a slave of the lender

Menos terrível do que as duas formas anteriores é a acumulação. Esta situação está muito em voga no mundo, porque muito se discute sobre aposentadoria e previdência social em diversos países. Deste modo, cria-se um medo de que as pessoas não conseguirão manter o mesmo padrão de vida anterior à aposentadoria. Então faz-se de tudo para acumular recursos até o momento da aposentadoria. Isto, muitas vezes, pode gerar enormes sacrifícios pessoais.

Qualquer uma das três formas está baseada no princípio de que a vida é assim mesmo e não há outras opções para administrá-la. Assim, deve-se continuar em um trabalho que, muitas vezes, se detesta para garantir o próprio sustento e ganhar dinheiro para o consumo, pagar dívidas, acumular para uma aposentadoria futura ou, pior, deixar para os herdeiros.

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Este é um ponto importante que as pessoas deveriam pensar a respeito. O que realmente querem para suas vidas? Quais são suas necessidades? Quais são realmente seus objetivos? Senão fica muito fácil cair nesta armadilha.

 

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Metade do Esgoto Sanitário do Brasil Não É Sequer Coletado

Este blog aborda todos os assuntos que interessam seus autores. Meu filho, Leonardo Klein Manera, é estudante de engenharia hídrica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e escreveu uma análise muito interessante sobre a situação do saneamento básico no Brasil. Vale à pena a leitura nestes tempos em discutimos o tamanho e as atribuições do Estado.

O Brasil apresenta notória precariedade nos parâmetros que dizem respeito ao saneamento básico. Mesmo sendo serviço extremamente fundamental, segundo estudo do Instituto Trata Brasil divulgado em 2018, de todo o esgoto gerado no país, 55% não é tratado. Cerca de 48% do total do esgoto sequer é coletado (Fonte: Sistema Nacional de Informações Saneamento, 2016), tendo como destino fossas e rios. Concomitantemente, cerca de 35 milhões de habitantes ainda não possuem acesso a abastecimento de água potável. É evidente a necessidade nacional por melhorias nos serviços prestados.

Segundo a teoria sociológica do Estado de Bem-Estar Social, o governo é o provedor responsável por atender às necessidades básicas da população – saúde, educação, segurança, economia. O saneamento também é serviço que deve ser garantido satisfatoriamente pelo Estado, inclusive por tratar-se de questão de saúde pública e desenvolvimento econômico. Contudo, não é o que se constata ao observar cidades como a de Ananindeua no Pará. O município com meio milhão de habitantes possui um dos piores índices de saneamento no país, contando com 30% da população abastecida com água e apenas 0,75% do esgoto coletado.

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Esgoto a céu aberto em Ananindeua no Pará (Fonte: site G1)

Historicamente o esgoto não recebe a devida atenção dos governantes, talvez por falta de prioridade nas políticas públicas, por representar custo mais elevado de operação e maior dificuldade para se obter infraestrutura adequada. Por conseguinte, espera-se maior atenção para este serviço. A Lei 11.445/2007 determina as diretrizes do saneamento básico e estabelece que os municípios deverão apresentar plano de saneamento. A medida que passará a vigorar em 31 de dezembro de 2019 obriga os municípios a apresentarem o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) para terem acesso aos recursos destinados pela União.

O que se constata atualmente como propostas de melhorias são metas virtualmente utópicas. Em 2014, o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) determinou um conjunto de metas e objetivos que inclui alguns dos Objetivos do Milênio (ONU), como a redução da proporção de habitantes sem acesso a saneamento básico e água, a melhoria das condições de vida da população que vive em zonas degradadas e a universalização das estruturas de saneamento básico em todo o país. O Brasil vislumbrava a universalização dos precários serviços de saneamento para 2033. Essa meta fora readequada recentemente por não ser possível viabiliza-la. A nova meta já prevê que só após 2050 e com investimento superior a R$500 bilhões estes serviços seriam universais. Mas qual será a nova prorrogação e o novo acréscimo de custo para esta meta?

Atualmente – segundo pesquisa divulgada pelo IBGE em 2018 – 61,8% dos municípios do país não possuem políticas que envolvam saneamento. Acredito que através de estudos e planos em escalas pequenas (municípios) o Estado pode tornar viável o cumprimento de metas de curto, médio e longo prazos para que no futuro se possa atingir índices de saneamento básico que sejam o mais próximo possível de universal.

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2017 – O Ano que Ainda Não Terminou em Alguns Sons e Imagens

Parece que temos mais histórias para contar em alguns anos do que em outros. O ano de 2017 está entre os mais ricos em novas experiências da minha vida. Na manhã do dia 14 de janeiro, tive uma fratura grave na tíbia e fíbula da perna direita, jogando um inocente futebol com minhas filhas e uma colega da mais velha no quintal da minha casa. Dois vizinhos, Fernando e Toni, me levaram ao Hospital São Luiz no Morumbi. Minha fratura foi reduzida e no dia seguinte fui operado.

Gravei este áudio com a narração do acidente em estilo de transmissão pelo rádio de um jogo de futebol e coloquei algumas fotos do quintal de casa.

A radiografia abaixo mostra o tamanho do estrago. Agora tenho uma haste metálica dentro da tíbia fixada por dois parafusos na altura do joelho e por outros dois no tornozelo. Além disto, tenho duas placas fixadas por seis parafusos na lateral da perna próximo ao tornozelo que ajudaram na consolidação da fíbula.

Fratura_15-01-2017

Pelo menos não precisei engessar a perna, usei uma imobilização removível chamada Robofoot que eu tirava para dormir, tomar banho ou quando estava sentado na sala.

Com menos de uma semana, passei a tomar banho sozinho sem qualquer ajuda. Dois meses depois, já subia escadas.

Passei por vários momentos no processo de recuperação. Desde os tempos iniciais em que não podia encostar o pé no chão aprendi a andar de muletas até a hora tive que largá-las, no final de abril. Para isto fiz muita fisioterapia, com longas sessões de exercícios e choques. Tive que reaprender a andar.

Para ajudar na recuperação comecei com caminhadas na metade de junho e depois com corridas leves. A figura abaixo mostra minha primeira caminhada mais longa.

Runkeeper_17-06-2017

Peguei gosto pelas corridas e perdi mais ou menos 6 quilos em um ano, minha saúde melhorou. Um dia depois de completar 52 anos, participei pela primeira vez de uma corrida de rua.

foto 25-03-2018

Comecei a estudar Antroposofia em um curso de formação da pedagogia Waldorf. Uma vontade de dar aulas de química para pré-adolescentes e adolescentes começou a crescer dentro de mim… O futuro dirá se concretizarei esta vontade.

Durante o curso, junto com aulas teóricas, temos aulas de arte. Sempre me considerei um grande nada como artista. Tinha certeza absoluta da minha incompetência para todas as formas de artes. Com o transcorrer das atividades de modelagem em argila consegui superar esta certeza negativa e saíram algumas peças, como o “Urso” e o “Tio Gervásio”, cujo resultados finais me agradaram.

Urso_argila

Tio Gervasio

O curso de Antroposofia era no Sítio das Fontes em Jaguariúna. Lembro-me de um sábado que eu e alguns colegas acordamos bem cedo para ver o nascer do sol no equinócio da primavera. Repare que na segunda foto aparecem dois sóis.

Equinocio-1

Equinocio-2

No período que fiquei em casa, aproveitei as horas economizadas por não pegar a Rodovia Raposo Tavares nos deslocamentos até o escritório em São Paulo para ler mais e ver filmes e documentários.

No documentário “The Corporation”, havia participação destacada de Ray Anderson, fundador e ex-presidente da Interface, um dos maiores fabricantes mundiais de carpete modular para aplicações comerciais e residenciais. Ele era conhecido nos círculos ambientais por sua posição avançada e progressiva sobre ecologia industrial e sustentabilidade. Em um de seus depoimentos, ele citou dois livros que ajudaram a moldar seu pensamento, “A Ecologia do Comércio” de Paul Hawken e “Ismael” de Daniel Quinn. Descobri que tinha o livro Ismael em casa. Li e fiquei impressionado com a visão de Quinn sobre como o ser humano está destruindo o planeta, através da agricultura.

thecorporation

O pensamento de Quinn baseia-se na premissa que as populações de animais entram em equilíbrio com a disponibilidade de alimentos na região em que vivem. Se a disponibilidade aumenta, a população aumenta; na sequência, isto causa uma redução da disponibilidade de alimentos e a população diminui. Ou seja, na natureza, existe um equilíbrio dinâmico entre alimentação e crescimento populacional.

Daniel Quinn

Daniel Quinn

O ser humano quebrou este equilíbrio através da agricultura. Invadiu áreas, destruiu ecossistemas e matou outros animais que competiam pela mesma fonte de alimentos. Quanto maior se tornava a disponibilidade de alimentos, mais rapidamente cresciam as populações humanas. Consequentemente mais alimentos eram necessários, aumentavam-se as áreas para agricultura, novos ecossistemas eram destruídos, novas espécies eram extintas. Ao invés do equilíbrio dinâmico de outrora, temos hoje uma espiral ascendente de destruição causada pela agricultura em nível planetário. Tudo isto é agravado pelo consumismo que estimula o consumo de alimentos e bens de forma insustentável.

Como tornar a ação humana mais sadia para o planeta? Comecei a estudar agricultura e como, suas práticas ajudam a mudar clima da Terra e a destruir o solo, as reservas de água doce e a biodiversidade. Tentei então imaginar como as diversas vertentes da agricultura orgânica poderiam ajudar a recuperar o meio ambiente ao mesmo tempo que alimentam a população humana. Fiz um curso de agricultura biodinâmica.

Escrevi um trabalho sobre o assunto. Propus alternativas onde novas tecnologias digitais e robótica ajudariam a agricultura, evitando a aplicação massiva de fertilizantes sintéticos, pesticidas e herbicidas nas lavouras. Quando o trabalho estava pronto para ser apresentado, fui informado que minha área na empresa, inovação global, seria extinta. Após reflexões e sonhos reveladores, achei melhor sair e reativar a empresa de consultoria que a Claudia fundou e entrei de sócio em 2008. A ideia de deixar a empresa, onde trabalho há quase oito anos, já estava em maturação desde o período em que fiquei recuperando-me da fratura em casa.

Recentemente esbarrei numa frase do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard:

“A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para frente.”

Soren_Kierkegaard

Soren Kierkegaard

Na época, não entendi porque quebrei a perna. Hoje percebo que precisava parar e pensar. Minha ligação com nossa filha menor, Luiza, cresceu. Não podia mais ser levado pela vida como aconteceu nos dois ou três últimos anos. Não podia mais viver, acumulando reservas, sem ousar com a justificativa que precisava garantir a estabilidade da minha família. Preciso construir um novo caminho e continuo contando com o amor e apoio da minha família nesta construção.

Daqui a alguns anos, quero parar (de maneira menos dramática) e olhar para trás e entender o sentido das mudanças de 2017 e 2018. Depois voltarei a seguir em frente certo que tudo fez sentido nesta jornada incrível que chamamos de vida.

 

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